23 de nov. de 2013

A fábrica de chocolate e o teatro de resistência

“Fábrica de Chocolate” mostra um fato corriqueiro durante a ditadura militar, nos anos 70. Um preso político morre em uma sessão de tortura em uma delegacia. Seus carrascos montam uma cena para tentar mostrar que se tratou de suicídio. A vítima é um operário de uma fábrica de chocolate. Seu crime, a organização da luta dos trabalhadores por melhores salários e condições de trabalho.

Dirigida por Luiz Furlanetto, o texto foi escrito por Mário Prata logo após a morte de Vladmir Herzog, em 1975. O jornalista militante do Partido Comunista morreu num quartel do Exército, em São Paulo após ser torturado. Os responsáveis alegavam suicídio, apesar dos evidentes sinais de espancamentos.

O cenário da peça é uma sala mal iluminada e cheia de instrumentos e substâncias usados nas sessões de torturas. Os métodos cruéis e a frieza dos carrascos são ainda mais assustadores porque não se pode dizer que ficaram no passado. A morte do pedreiro Amarildo por policiais militares foi apenas mais uma de uma série que nunca foi suspensa. Só deixou de vitimar militantes de partidos políticos de esquerda.

A peça esteve em cartaz até o início de novembro na Casa de Cultura Laura Alvim, Rio de Janeiro. A trama é pesada, mas deveria ser reproduzida em escolas, universidades, associações de bairros, sindicatos. A força da atuação do excelente elenco e a atualidade dos crimes de que trata certamente tocariam o público. Despertariam um importante debate sobre a necessidade de fortalecer a resistência popular contra a covarde repressão do Estado.

Por outro lado, já passou a hora de voltarmos a apostar no teatro alternativo de resistência. O movimento popular e sindical e a militância política combativa precisariam retomar esse importante instrumento em suas lutas. Diante da ditadura da grande mídia, atividades artísticas organizadas nas próprias comunidades e locais de trabalho seria fundamental na luta contra-hegemônica por justiça social e liberdade.

7 de nov. de 2013

Grande imprensa vandaliza a notícia

O vandalismo não sai das páginas dos grandes jornais. Mas não se trata das justas reações populares à violência policial. O vandalismo em questão tem como vítima fatal as notícias sobre as atuais manifestações populares.

Há muitas décadas, sabemos que não existe uma única e absoluta verdade em jornalismo. Não há fatos imunes a interpretações interessadas. Até os chefões da grande imprensa são incapazes de negar isso. Mas não abrem mão de apresentar apenas a sua versão dos fatos. Vejamos alguns exemplos desse jornalismo poderoso, mas rasteiro.

“’Quem roubou não era amigo do Douglas, era bandido’, diz pai de jovem morto por PM”. Este é o título de entrevista feita por Felipe Souza com José Rodrigues, pai de Douglas Rodrigues, jovem morto pela PM na periferia de São Paulo. Foi publicada pela Folha de S. Paulo, em 30/10/2013.

A frase do entrevistado refere-se a atos como caminhões e ônibus incendiados, motoristas roubados e lojas saqueadas durante manifestações contra a morte de seu filho. Até aí, tudo bem. O pai do garoto realmente mostrou total desacordo em relação ao que aconteceu.

Mas José Rodrigues também fez outras observações muito importantes. Por exemplo:

Aqui na rua colocaram fogo em pneus e por aqui ficou. E policiais dando tiro, bombas de gás lacrimogêneo. Estourou uma perto de mim que eu não conseguia nem respirar. Tem colega todo marcado [de bala de borracha].

Esta informação poderia ter inspirado o título da entrevista, por exemplo. Afinal, não satisfeitos em matar um jovem, os policiais ainda reprimiram manifestações de protesto contra o crime.

No final do depoimento, perguntado se seu filho teria sofrido o mesmo fosse morador de bairro nobre, Rodrigues foi taxativo: “Com certeza não. O policial ia pensar duas vezes antes de atirar”.

Esta última frase também seria muito mais relevante para figurar como título da entrevista. Mas a escolha editorial preferiu juntar as palavras “bandido” e “roubo” à realização de manifestações.

Outro exemplo vem de O Estado de São Paulo. Em 14/07, o jornal estampou a manchete “Manifestantes queimam mais de 300 carros em protestos na França”. Na França, queimar automóveis é coisa de “manifestantes”. Aqui, atos muito semelhantes são obra de vândalos, criminosos, bandidos etc. E, como ficou convencionado, vândalos, criminosos, bandidos, devem ser tratados na base do cassetete e do tiro.

Enquanto isso, os grandes jornais reclamam em coro: seus profissionais também estão sendo vítimas da violência dos vândalos! Mas esta não chega a ser nem meia verdade. É o que mostrou matéria do site “Comunique-se” em 29/10: “Polícia é responsável por 75% das agressões a jornalistas, revela levantamento da Abraji [Associação Brasileia de Jornalismo Investigativo]”. Um quarto da verdade torna-se a verdade inteira quando interessa à grande imprensa.

Por fim, o Globo publicou, em 30/10, o editorial “Vandalismo, democracia e fascismo”. Deu uma verdadeira lição de distorção conservadora em favor dos interesses mais poderosos do País.

O texto começa dizendo que houve “queda no apoio às manifestações” devido à ação dos black blocs. Realmente, pesquisa Datafolha teria mostrado uma diminuição de 89% para 66% desde junho na aprovação popular aos protestos. Mas a interpretação dos números deveria ser bem diferente. Apesar de todo o bombardeio da grande imprensa contra a resistência dos manifestantes à violência policial, pelo menos 2/3 dos entrevistados continuam a apoiá-los.

O editorial cobra firme combate do Estado às ações de “vandalismo”. Toma o cuidado de alertar para que se procure manter um “baixo grau de letalidade”. Mas como vidraças, lixeiras, ônibus e viaturas não podem ser ameaçados, a ocorrência de mortes é considerada um “risco que está presente”.

“Entre as imagens que ficarão destes tempos”, diz o texto, estaria a foto do coronel da PM paulista “sendo espancado por black blocs”. Ou seja, as centenas de imagens de manifestantes sendo linchados por hordas de policiais permanecerão nas redes virtuais, distantes da enorme audiência desconectada.

O Globo manifesta espanto diante do apoio de “professores sindicalistas” aos black blocs. Como se a decisão tivesse sido aprovada por uma dúzia de lideranças e não por milhares de grevistas, testemunhas e principais vítimas da violência policial nas manifestações. O espanto que a decisão causou no Globo é mais uma medalha que os professores ganharam em sua luta por dignidade.

Por fim, o texto chama de fascismo a “prática de perseguir e agredir fisicamente” aqueles que são considerados inimigos. A descrição serve para as ações da polícia, não para o comportamento de suas vítimas. E o editorial do Globo se revela como a crônica que justifica o caráter fascista de toda essa violência.

É famosa a frase atribuída ao senador americano Hiram Johnson: “numa guerra, a primeira vítima é a verdade”. Não estamos em guerra. Só há um lado atirando para matar e é o braço armado do Estado. Mas a verdade já sucumbiu nas páginas dos grandes jornais.