16 de abr. de 2006

Os inteligentes quadrinhos italianos

Que tal um gibi de estórias policiais cuja personagem principal cita Durkheim para afirmar que o crime é um fato social? Ou um gibi de aventuras do velho oeste que mostra como os “heróis” americanos massacraram os indígenas. São os sofisticados e inteligentes quadrinhos italianos.


Os gibis mais vendidos são geralmente feitos em formato grande, coloridos, com heróis cheios de super-poderes, vilões monstruosos e estórias em que bem e mal são resultado de opções morais. Não é caso dos gibis que vamos comentar abaixo. Eles são publicados em formato pequeno, em branco e preto, e procuram explicar a maldade do ponto de vista histórico e social.


Pra começar, que tal um gibi de estórias policiais cuja personagem principal cita Durkheim para afirmar que o crime é um fato social? E se em outra aventura houver uma citação de Paulo Freire, que consta em um documento dos índios iroqueses apresentada em uma conferência da ONU, em 1977? Estamos falando de “Aventuras de uma criminóloga”, história em quadrinhos que tem como heroína Julia Kendall. Ela é criação do talentoso roteirista italiano Giancarlo Berardi.


Junto com o desenhista Ivo Milazzo, Berardi ficou famoso pela criação do caubói politicamente correto, Ken Parker (clique aqui para saber mais sobre Parker). E tal como nas tramas que inventou para Parker, Berardi procura dar à Julia um perfil  progressista. Alguém que não se dobra a idéias conservadoras sobre as razões que levam alguém a cometer crimes. E diante do pior assassino em série, tenta compreender as razões psicológicas e sociais que o levaram a cometer seus atos terríveis.


Agora, imagine um gibi de aventuras do velho oeste que denuncia a corrupção envolvendo agentes governamentais atuando em reservas indígenas, por exemplo. Mostrando toda a sujeira dos “heróis” brancos norte-americanos. Uma trama em que democratas e republicanos, nortistas e sulistas tem lá suas brigas, mas se entendiam muito bem na hora de garantir lucros pela exploração e massacre de indígenas. Trata-se de “Mágico Vento”. Uma revista de HQ criada pelo também italiano Gianfranco Manfredi. O personagem principal do gibi é Ned Ellis. Um soldado que foi o único a sobreviver a um massacre que o deixou desmemoriado e com poderes místicos. Por isso, recebeu dos índios Sioux que o resgataram o nome que dá título ao gibi.


Mas ao contrário do que muitos podem pensar, as aventuras de Júlia e Ned não são chatas. Tanto Berardi como Manfredi conseguem dar às estórias que escrevem um ritmo digno dos melhores filmes de ação e suspense.


As duas publicações são editadas na Itália pela Bonelli e, no Brasil, pela Mythos. As duas editoras também são responsáveis por outros títulos de boa qualidade. É o caso de Dylan Dog, um detetive muito peculiar. Ele se dedica a investigar casos ligados ao sobrenatural. Presta seus serviços no combate a vampiros, lobisomens, fantasmas e alienígenas. Mas é outro herói cujas estórias também abordam a violência doméstica, racismo, autoritarismo etc. Outra característica que o iguala à criminóloga e ao soldado místico é seu auxiliar. Dylan Dog tem como parceiro de aventuras nada menos do que Groucho Marx, sempre pronto a soltar as piadas mais infames. A parceira de Júlia, por sua vez, é uma empregada chamada Emily, cujo tipo físico lembra o da atriz Woopi Goldberg. Emily protege a patroa como se fosse sua filha mas nunca deixa de fazer seus discursos furiosos e engraçados contra o racismo dos brancos e o machismo dos homens. Já Ned Ellis tem como aliado fiel ninguém mais do que Edgar Allan Poe, cujo o amor pela bebida só é superado pela revolta contra as injustiças.


Um problema que poderia ser levantado contra nossos heróis é o fato de nenhum deles viver suas aventuras na Itália. As estórias de Julia e Ellis se ambientam nos Estados Unidos. Dylan atua na Inglaterra. Pode ser fruto de colonialismo. Mas, também é uma forma de falar mais universalmente. Quer coisa mais universal do que bangue-bangue e tramas policiais e de terror? E tudo isso em quadrinhos?


Em seu auge, os limites do Império Romano eram os mesmos do mundo conhecido pelos europeus. No mundo do século 20, os limites geográficos dos novos e antigos impérios capitalistas ficaram bem definidos. Mas a dominação cultural da língua e dos usos anglo-saxões ultrapassaram as fronteiras e atingem o planeta inteiro. Os artistas italianos podem estar seguindo a velha máxima imposta por seus ancestrais: “Quando em Roma, faça como os romanos”. É uma forma de resistir. Usar os bonitos cenários deles para deixar ver os pilares podres que os sustentam: uma sociedade doente que leva seus integrantes a cometer crimes bárbaros. Heróis que não passaram de assassinos dos povos e dos animais originais das terras americanas.