26 de fev. de 2011

Folha: de rabo preso com a ditadura de plantão

A Folha de S. Paulo acaba de completar 90 anos. Aproveitou para confessar seu apoio ao regime militar. Na verdade, comemora a vitória do Projeto Folha, em que trocou seu apoio à ditadura política pela fé na ditadura econômica.

A Folha de S. Paulo completou 90 anos no sábado, dia 19 de fevereiro. Nascido em 1921, o jornal só ganhou o nome atual em 1931. Até então, era Folha da Noite. De 1986 a 2010 foi a publicação jornalística de maior circulação do País. Perdeu o primeiro lugar para o tablóide mineiro Super Notícia. Mas, sem dúvida segue sendo um dos mais influentes no País.

Relembrando sua história, o jornal fez uma confissão rara em sua edição do dia 20/02. Assumiu claramente seu apoio ao golpe militar de 1964. Disse que sua redação foi entregue jornalistas “entusiasmados com a linha dura militar” como parte de uma reação da empresa “à atuação clandestina” de militantes da Ação Libertadora Nacional (ALN) nas dependências do próprio jornal. Uma desculpa mais que esfarrapada.

Quanto ao uso de suas caminhonetes de entrega de jornal por agentes da repressão, a Folha atribui o relato a denúncias de presos políticos e não as confirma. Mesmo assim, surpreende a admissão do papel do jornal no apoio à ditadura. Ou não?

Na verdade, esse repentino ataque de franqueza nada tem de contraditório. A Folha fez um movimento inteligente no início dos anos 1980. Pressentindo a crise do regime militar, trocou seu apoio à ditadura dos generais pela militância pela ditadura do mercado. Essa guinada recebeu o nome de Projeto Folha. O próprio histórico publicado no jornal ajuda a esclarecer:
A Folha foi o jornal que mais se associou às Diretas. Seu engajamento é anterior ao das principais lideranças de oposição que, em fins de 1983, ainda não formavam uma frente compacta, deixando prevalecer os interesses partidários. Nessa altura, quando o movimento mal conseguia encher uma praça, o jornal criticou o sectarismo dos políticos e o silêncio da imprensa.
Ou seja, sentindo as dificuldades do governo dos generais para se manter no poder, a Folha cobrava da classe dominante unidade em torno de outro projeto. O movimento das Diretas teria sido o “o apogeu do consenso suprapartidário das oposições”. Mas, uma vez derrotada a emenda que propunha eleições diretas para presidente, “cada partido tratou de traçar sua própria estratégia”.

“Respondendo a essa fragmentação, continua o texto da Folha, a direção do jornal elegeu o pluralismo e o apartidarismo (...) como os principais pilares do Projeto Folha”. Segundo o final feliz do histórico do jornalão paulista, “o Projeto Folha transformou-se numa influente escola de jornalismo”. Teria se tornado um veiculo apartidário e comprometido com a sociedade civil. Ou conforme campanha publicitária dos anos 1980, um jornal “de rabo preso com o leitor”.

José Arbex foi um dos jornalistas que acompanhou esse projeto muito de perto. Fazia parte da redação da Folha na época de sua implantação. Em seu livro “Shownarlismo” (Casa Amarela-2001), Arbex diz que o Projeto Folha significou a adoção do discurso para o mercado. Nada mais do que o tratamento da notícia como mercadoria.

A pose da Folha como porta-voz da democracia, escondia uma política interna autoritária. Um rígido controle industrial e ideológico da produção de informação materializado em seu famoso Manual de Redação. Arbex diz que o jornal escolheu “a estratégia de transformar a democracia em marketing”.

Na verdade, trata-se da adoção da “democracia de mercado”, em que o que importa é o funcionamento das leis capitalistas. Se a Folha sobreviveu à censura dos generais, por que não veria com tranqüilidade a implantação de um sistema baseado em eleições e outras liberdades? Afinal, a condição de monopólio da mídia empresarial já lhe garantia poder suficiente para funcionar como um bloqueio econômico à verdadeira liberdade de informação. Foi isso o que a Folha enxergou antes de sua concorrência.

O Projeto Folha implicava uma opção clara. Era pelo fim do apoio da empresa à ditadura política dos militares. Mas também pelo engajamento na defesa do livre funcionamento da ditadura das leis do mercado. Uma postura que ajudava também a reforçar o lado conservador da “transição democrática”. Aquele que tentou e conseguiu manter o essencial dos aparelhos de repressão reforçados pela ditadura militar. Algo que resultou, por exemplo, no tratamento ilegal e violento dispensado pelas polícias e forças de segurança a pobres e negros. Assim como na criminalização dos movimentos sociais.

Essa promessa de fé no império da acumulação do capital ajuda a explicar algumas recaídas que lembram a relação submissa do jornal em relação ao regime militar. Uma delas foi o episódio da “ditabranda”, palavra inventada pela Folha em editorial de fevereiro de 2009. O neologismo procurava dar à ditadura de 64 um caráter moderado.

Esta espécie de ato falho talvez revele disposição em aceitar a volta do uso de medidas ditatoriais. Basta que se mostrem necessárias para garantir a enorme concentração de poder e lucros das grandes corporações.

Mas, a razão mais concreta da recente “confissão” da Folha parece ser mais simples. Por ocasião de seus 90 anos, o jornal colocou à disposição do público seu conteúdo integral desde 1921. São quase 2 milhões de páginas totalmente indexadas. Uma medida que certamente deixa mais óbvias muitas das relações podres da Folha com o poder.

Aí, a melhor política passa a ser confessar logo aquilo que vai ficar claro demais para ser negado. Mais uma amostra da linha flexível do jornal quando se trata de manter o essencial de seu projeto. Além disso, aproveita o momento em que os principais atores políticos do País se recusam a acertar contas com os carrascos da ditadura.

O aniversário da Folha mereceu um discurso da presidenta da República em evento comemorativo. Dilma não nega nem renega sua atuação na resistência à ditadura. Mas, manteve em seu governo Nelson Jobim, figura submissa à cúpula conservadora das Forças Armadas. A última proeza de Jobim foi propor a cassação da anistia concedida a militares que se rebelaram contra o golpe de 64.

Acrescente-se a isso a presença de Dilma nas comemorações do jornalão paulista. Péssimo sinal. O evento festejava mais uma vitória da mídia empresarial. Saudava sua capacidade de disfarçar seus interesses particulares e antipopulares com a máscara da liberdade de imprensa. Comemorava a maestria da Folha em esconder seu rabo preso às ditaduras de plantão. As políticas e as econômicas.