Fevereiro
de 2007
O seriado da Globo virou
filme de sucesso. Na TV ou no cinema, é o que mais se aproxima da vida
cotidiana dos pobres no Brasil. Mesmo assim, está longe dela. Por outro lado,
surgem experimentos para mostrar a pobreza de modo mais realista. É preciso
ficar de olho nisso.
“A
grande família” é um filme de Mauricio Farias baseado na série da TV Globo que
tem o mesmo nome. Esta, por sua vez, é uma reedição da série exibida nos anos
70 pela própria Globo e que teve grande audiência. Mais precisamente entre 1972
e 1975, quando a ditadura militar estava no auge da repressão no País. Na
época, o responsável pelo roteiro dos episódios era diretor de teatro, Oduvaldo
Vianna Filho. Vianinha já havia sido do PCB e aproveitou o seriado para dar
umas cutucadas no governo dos generais. Afinal, era um tanto subversivo mostrar
uma família às voltas com dificuldades financeiras, um cunhado desempregado e,
Tuco, um filho adepto da cultura alternativa quando o discurso oficial falava
em “milagre econômico” e valorizava a vida em família contra cabeludos adeptos
de relações mais igualitárias e livres entre homens e mulheres. Havia até o
personagem Júnior, que era abertamente politizado e contestador e, por isso,
sempre foi alvo de restrições por parte da censura.
A
volta da série adaptada para o século 21, obviamente, perdeu esse potencial
contestador. Ao contrário, apesar das excelentes e engraçadas tramas, o tom é
conformista e conservador. Lineu, o chefe da família, continua a sustentar o
restante dos membros com seu magro salário de funcionário público. Uma situação
que só piora pelo fato de ele se negar a ceder às pequenas corrupções que
fariam parte da rotina da repartição. Mas sua persistência na honestidade
sugere corrupção generalizada nos serviços públicos, o que nem de longe é
verdade. Tuco era um defensor do comportamento alternativo na série dos anos
70. Na atual, é apenas um desempregado de quase 30 anos sem qualquer
perspectiva a não ser comer, dormir e assistir TV o dia inteiro. E Júnior,
claro, não existe em tempos de pensamento único.
No
entanto, o sucesso da série continua e as razões podem ser muitas. O talento do
elenco, dos roteiristas e da direção certamente pesa. Mas, talvez, a
proximidade da vida cotidiana dos mais pobres também seja importante. Aliás, a
cenografia e a produção da série e do filme são caprichadas. A casa, o bairro,
a paisagem, as roupas e até os automóveis são típicos de um bairro pobre de
nossas grandes cidades.
Por
outro lado, a produção está longe de representar a vida da grande maioria das
famílias brasileiras. Para usar um indicador de considerável luxo, Lineu tem um
automóvel usado. O problema é que o número de lares brasileiros permanentes
cujos moradores possuem um automóvel não chega a 33%. Outro elemento que
distancia a “Grande Família” das famílias brasileiras em geral é a ausência de
personagens negros, numa população com, pelo menos, sua metade formada por não
brancos. De qualquer maneira, o programa de TV parece ser o que mais se
aproxima da realidade da maioria. Afinal, a série não tem nem mesmo personagens
ricos, como é regra nas outras produções nacionais.
Uma
ironia é que o filme seja campeão de bilheteria, mas deve ser visto por pouca
gente que realmente vive as situações mostradas por seus personagens. É verdade
que em duas semanas de exibição ultrapassou 1 milhão de pagantes. No entanto, é
uma marca bastante distante dos mais de 35 milhões e meio de pessoas que
acompanham diariamente a novela “Páginas da Vida”, por exemplo. Nenhum
mistério. Se são mais de 91% de residências brasileiras com um aparelho de
televisão, apenas 8% dos municípios contam com uma sala de cinema.
Ao
mesmo tempo, a televisão brasileira vem fazendo experimentos para chegar a uma
realidade mais próxima da maioria. É o caso de “Cidade dos Homens”, “Antônia”,
“Central da Periferia” e da novela “Vidas opostas” (sobre esta última, clique aqui e leia ótimo artigo de Marcela Figueiredo na página do Núcleo
Piratininga de Comunicação). São produtos de boa qualidade e que abrem portas
para artistas negros. Mas a lógica é a mesma. Recortar a realidade segundo os
padrões dominantes. É a trama de amor, a luta pelo sucesso e o caminho
individual para longe da pobreza, do crime, da marginalidade.
É
preciso ficar de olho nesses movimentos dos monopólios de comunicação. A
“Grande família” está a meio caminho entre a novela que retrata o dia-a-dia de
cerca de 2% da população brasileira e as tentativas de mostrar o cotidiano da
grande maioria, negra, pobre, explorada e oprimida. Os personagens da série e
do filme mostram o drama daqueles que estão cada vez mais longe do Leblon,
Morumbi e outros bairros ricos do País e mais perto dos morros e das
periferias. Faz parte de um processo de empobrecimento da classe média que já
tem mais de 20 anos. Mais gente escorrega para níveis precários de
sobrevivência, enquanto somente uns poucos sobem para níveis extremos de luxo e
riqueza.
Falar
para a maioria da população sempre foi um trunfo que a Globo e outras emissoras
usaram para impor modelos de vida e comportamento muito distantes de sua vida
real. Agora, as empresas de comunicação parecem querer falar para os mais
pobres sobre seus próprios problemas. Não para incentivá-los a buscar soluções
autônomas e coletivas. Querem é manter o individualismo, o consumismo e outros
modelos de comportamento que interessam aos poderosos. Talvez, pressintam a
necessidade de falar para os pobres antes que eles fiquem definitivamente
surdos a apelos de uma “paz e ordem” que não lhes garante tranqüilidade e
perspectivas de uma vida melhor.
No
final do filme, Lineu escapa por pouco de ser atropelado por um trem. Na vida
real, o trem já atropelou muitos e deve continuar atropelando. A grande mídia
quer manter os trilhos limpos para que as próximas vítimas não se assustem. Nem
encontrem formas próprias de evitar o desastre.
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