30 de jul. de 2008

Era uma vez ... o apartheid brasileiro

O filme de Breno Silveira tem muito de novela ou minissérie da Globo. Desse ponto de vista, não vale grande coisa. Por outro lado, é possível enxergar nele uma denúncia da forte divisão entre ricos e pobres no Brasil.

A estória de "Era uma vez..." é convencional. Dé (Thiago Martins) é um jovem criado na favela de Cantagalo. Nina (Vitória Frate) é a garota de classe média alta, branca e de olhos claros. Ambos moram em Ipanema.

Tudo começou porque Dé trabalha num quiosque em frente ao apartamento luxuoso de Nina. Mas, eles só se conhecem quando ela atravessa a avenida em direção à praia e senta num banco. Já é tarde da noite. Um grupo de crianças negras e pobres se aproxima ameaçadoramente. Dé salva a garota de um possível assalto. E leva a "princesa" de volta a seu "castelo". Nina entrou sem querer no mundo dele. Dé aproveitou a chance.

Dé não é negro. Agora que se aproximou de Nina, tenta se passar por rico. Em uma festa na praia avista a garota. Mal se aproxima, é expulso por um segurança. A famosa democracia que reina na praia, não reina para todos. Quando finalmente consegue entrar na festa, é porque se fez passar por vendedor de bebidas.

Mas, Dé reconhece um surfista com quem fez amizade em seu trabalho no quiosque. Através dele, consegue permanecer na festa sem precisar fingir que é vendedor. Agora, é ele que está no mundo dela. Vai tudo bem até que Dé beija Nina. Aí, o surfista coloca o favelado em seu lugar. Avisa a garota que ele é apenas o vendedor de cachorro-quente. Conversa, gentileza, dividir um baseado, é uma coisa. Namorar uma garota da turma é outra bem diferente.

O porteiro do prédio em que mora Nina avisa ao "doutor" que a filha está namorando um garoto do morro. Primeiro, tranqüiliza. Diz que o rapaz é honesto e trabalhador. Depois, assusta. É preciso cuidado para que não venha uma gravidez indesejada: "sabe como são esses jovens", diz ele. Afinal, ele é porteiro. Há muito tempo, aprendeu a ficar no lugar que lhe cabe na sociedade.

O pai se assusta. Ser pobre não é problema. Vender cachorro-quente é honesto. Mas, atravessar a avenida para namorar sua filha, já é muito abuso.

Quando Nina vai visitar o morro, Dé mostra o prédio em que ela mora. É possível ver a área de serviço dali. Ele diz que sempre esperou que ela aparecesse para poder vê-la. Mas, ela nunca foi à área de serviço. Claro. Não é um lugar da casa que ela freqüente. É onde fica a criadagem.

Dé quer estudar para melhorar de vida. Quer sair do morro e merecer a princesa loira. Quer vir pro lado de cá. Quem está do lado de lá, mesmo, é seu irmão de adoção. É Carlão (Rocco Pitanga), que foi preso sem cometer crime algum. Mas, é negro. Foi para a cadeia e ficou por lá. Se entrou inocente, saiu criminoso. Aderiu ao tráfico. Era o jeito de ficar vivo, disse ele ao irmão.

Carlão não tem dúvidas sobre seu destino. Se quiser melhorar de vida, será do jeito que lhe sobrou. Tomando o morro e controlando o tráfico. Quando se endivida com outros traficantes e policiais corruptos, Carlão apela. Ele não tinha ilusões sobre a possibilidade de entrar no mundo dos brancos e ricos. Por isso, não vacilou. Seqüestrou a namorada rica de seu próprio irmão. Na confusão, acaba morrendo. Carlão nasceu do lado de lá e por lá ficou.

Apesar de tudo isso, o casal continua firme. Acham que o amor vencerá todas as barreiras. Tentam fugir para viver juntos e felizes. O apartheid não permite e o final é trágico.

Apartheid é uma palavra que veio da África do Sul e quer dizer separação. No Brasil, não existe apartheid oficial. Nunca houve leis proibindo a convivência de brancos e negros. Mas, não é preciso. No Brasil, os pobres são quase todos negros. Só isso já é suficiente para lhes mostrar onde é seu lugar. Mas, se houver dúvidas, a polícia e o Estado em geral se encarregam de deixar bem claro. Os pobres que não são negros sofrem menos discriminação. Mas, sofrem. É assim que funciona o apartheid brasileiro.

Cumprimentar e ser gentil com porteiros, empregadas, motoristas, garçons e balconistas é uma coisa. Dividir a mesma mesa, acolher em casa, ver a irmã ou a filha casar com um deles? Ah, isso já é uma coisa bem diferente.

A grande diferença é que estamos no Rio de Janeiro. A pobreza fica logo ali, no alto e em volta. Em seus morros, ela se debruça sobre a riqueza e o luxo. A vista do mar e das montanhas lá de cima é linda. Mas, das lajes e quintais das favelas também é possível ver as piscinas das coberturas luxuosas. Onde trabalham os que vivem nos morros.

O final do filme é decepcionante. Só se explica por uma razão. O que interessa ao diretor não é o conto de fadas que o título sugere. Mas, mostrar uma sociedade dividida. O apartheid de um jeito muito brasileiro. Se o filme de Breno Silveira vale alguma coisa, é por isso.

Sérgio Domingues

1 de jul. de 2008

Disputando nossos símbolos com a direita

“Personal Che” mostra como Guevara virou santo, garoto-propaganda e até ídolo de neonazistas. Mas, os símbolos dos socialistas estão em disputa. Cabe a nós não perdê-los para os inimigos.

Para fazer seu documentário, Douglas Duarte e Adriana Marino viajaram por vários países do mundo. Seu objetivo era ver o que Che Guevara representava para as pessoas, mais de 40 anos depois de sua morte. Estiveram na Bolívia, China, Alemanha, Estados Unidos, Líbano e Cuba.

Na pequena vila boliviana de La Higuera, Guevara foi covardemente assassinado pelo exército daquele país com ajuda da CIA. A maioria de seus habitantes passou a considerá-lo um santo, com direito a velas e oratório. Em Cuba, o filme dá destaque a um admirador bem mais informado. Conhece muitos detalhes da vida e da morte do Che. Só não conhecia as famosas fotos de Guevara morto. Aparentemente proibidas ou de circulação restrita em Cuba.

No Líbano, a vida de Guevara é tema de um musical. O ator que o interpreta também mostra conhecer bem o personagem. Mas, coloca-o no mesmo nível de seus ídolos religiosos islâmicos. Em Hong Kong, um deputado é voz isolada no parlamento local. Inspirado no revolucionário argentino, ele se reivindica marxista e denuncia a repressão e exploração do regime de seu país.

Um porto-riquenho que mora nos Estados Unidos tem enorme coleção de camisetas, pôsteres, quadros de seu ídolo. É mais um fã do que um seguidor político de Guevara. O filme também mostra o Che adotado pelo mundo da moda. A famosa foto de Alberto Korda virou estampa em roupas usadas por pessoas de todas as classes sociais. Mas, a maioria mal sabe dizer quem foi ele.

Da Alemanha vem o exemplo mais chocante. Um grupo neonazista adotou Guevara e Hitler como seus ídolos. Ambos teriam sido “revolucionários que lutaram pela liberdade de suas pátrias”.

Tudo isso mostra que Che Guevara tornou-se uma grande figura simbólica. Alguns elementos foram determinantes para isso. Um deles foi ter vivido em uma época que começava a ser marcada pela expansão mundial dos meios-de-comunicação. Sua figura correu o mundo facilmente. E sua opção pela luta armada também ajudou a torná-lo popular junto a um público acostumado pela própria indústria cultural a admirar ações heróicas a cargo de indivíduos corajosos.

O problema é que os mesmos meios que o tornaram popular se encarregaram de apagar e embaralhar muitos detalhes sobre sua vida. Com isso, muitos de seus admiradores encaixam sua figura no que lhes parecem ser causa dignas por que lutar. Mesmo que algumas acabem pertencendo à vergonhosa sujeira fascista. Este é o grande risco que envolve as figuras simbólicas.

Não há como nos livrarmos dos símbolos. Os seres humanos tornaram-se simbólicos desde que aprenderam a dar nome às coisas. Por outro lado, os símbolos não são neutros, nem são fixos. Menos ainda em uma sociedade de classes. A classe dominante transforma tudo em mercadoria e utiliza valores a seu favor. É só ver o uso que a propaganda voltada para os jovens faz do Maio de 68, por exemplo. Ou a transformação de lutas populares em episódios românticos de novelas, filmes e minisséries.

Claro que transformar a vida e a obra de revolucionários socialistas em símbolos de luta é importante. No entanto, cada vez que tornamos um deles um herói quase santo, abrimos brechas para que nossos inimigos se aproveitem.

Marx, Engels e Lênin também se tornaram alvo de um culto quase religioso. Stalin foi o maior dos coveiros da revolução de 1917. Mas para melhor enterrá-la inventou uma mitologia revolucionária. Transformou o pensamento marxista em um evangelho. Alguns de seus formuladores em apóstolos. Outros, em Judas a serem perseguidos, como fez com Trotski e quase todos os líderes da Revolução Russa. E para si mesmo, Stalin reservou a função de grande sacerdote. Algo muito parecido ocorreu em Cuba, onde Che também virou um santo oficial.

Quando escolhemos fazer tal uso dos símbolos, adotamos o campo de batalha do inimigo. As religiões não são necessariamente conservadoras. Apenas quando são usadas para justificar a dominação e a exploração. Os camponeses de La Higuera cultuam Guevara como a um santo. Mas, pelo menos, é positivo que vejam nele alguém que lutou por justiça.

Já os santos inventados por Stálin, foram utilizados para reforçar o poder da classe que dominava o Estado soviético. Sua função era conservadora. A construção do socialismo passa a ser coisa de uns poucos iluminados. As ações e escritos de grandes lutadores viram fórmulas que são repetidas automaticamente. Partidos e organizações tornam-se seitas dominadas por cardeais. Nossos símbolos e idéias somem na circulação geral das mercadorias e valores da burguesia.

O documentário dá a entender que o verdadeiro Che já se perdeu. Não é o caso. De Guevara, temos a obra escrita, as ações políticas, biografias e estudos sobre sua atuação. Elementos que permitem entender como pensava e o que defendeu. Possibilitam tirar lições, seguir exemplos e evitar erros. O Che é uma importante referência para quem luta pelo socialismo. Aceitá-lo como santo ou infalível é entregá-lo ao inimigo.

Sérgio Domingues – Julho de 2008

Mídia Vigiada em novo endereço

Depois de que minha página sumiu do Kit.net, cá estamos num blog do Google. Antes era o monopólio da Globo. Agora, é o da Google. É assim que ficamos sempre muito perto da grande mídia.
Aparentemente, um vírus atacou o site da Globo.