O filme de Breno Silveira tem muito de novela ou minissérie da Globo. Desse ponto de vista, não vale grande coisa. Por outro lado, é possível enxergar nele uma denúncia da forte divisão entre ricos e pobres no Brasil.
A estória de "Era uma vez..." é convencional. Dé (Thiago Martins) é um jovem criado na favela de Cantagalo. Nina (Vitória Frate) é a garota de classe média alta, branca e de olhos claros. Ambos moram em Ipanema.
Tudo começou porque Dé trabalha num quiosque em frente ao apartamento luxuoso de Nina. Mas, eles só se conhecem quando ela atravessa a avenida em direção à praia e senta num banco. Já é tarde da noite. Um grupo de crianças negras e pobres se aproxima ameaçadoramente. Dé salva a garota de um possível assalto. E leva a "princesa" de volta a seu "castelo". Nina entrou sem querer no mundo dele. Dé aproveitou a chance.
Dé não é negro. Agora que se aproximou de Nina, tenta se passar por rico. Em uma festa na praia avista a garota. Mal se aproxima, é expulso por um segurança. A famosa democracia que reina na praia, não reina para todos. Quando finalmente consegue entrar na festa, é porque se fez passar por vendedor de bebidas.
Mas, Dé reconhece um surfista com quem fez amizade em seu trabalho no quiosque. Através dele, consegue permanecer na festa sem precisar fingir que é vendedor. Agora, é ele que está no mundo dela. Vai tudo bem até que Dé beija Nina. Aí, o surfista coloca o favelado em seu lugar. Avisa a garota que ele é apenas o vendedor de cachorro-quente. Conversa, gentileza, dividir um baseado, é uma coisa. Namorar uma garota da turma é outra bem diferente.
O porteiro do prédio em que mora Nina avisa ao "doutor" que a filha está namorando um garoto do morro. Primeiro, tranqüiliza. Diz que o rapaz é honesto e trabalhador. Depois, assusta. É preciso cuidado para que não venha uma gravidez indesejada: "sabe como são esses jovens", diz ele. Afinal, ele é porteiro. Há muito tempo, aprendeu a ficar no lugar que lhe cabe na sociedade.
O pai se assusta. Ser pobre não é problema. Vender cachorro-quente é honesto. Mas, atravessar a avenida para namorar sua filha, já é muito abuso.
Quando Nina vai visitar o morro, Dé mostra o prédio em que ela mora. É possível ver a área de serviço dali. Ele diz que sempre esperou que ela aparecesse para poder vê-la. Mas, ela nunca foi à área de serviço. Claro. Não é um lugar da casa que ela freqüente. É onde fica a criadagem.
Dé quer estudar para melhorar de vida. Quer sair do morro e merecer a princesa loira. Quer vir pro lado de cá. Quem está do lado de lá, mesmo, é seu irmão de adoção. É Carlão (Rocco Pitanga), que foi preso sem cometer crime algum. Mas, é negro. Foi para a cadeia e ficou por lá. Se entrou inocente, saiu criminoso. Aderiu ao tráfico. Era o jeito de ficar vivo, disse ele ao irmão.
Carlão não tem dúvidas sobre seu destino. Se quiser melhorar de vida, será do jeito que lhe sobrou. Tomando o morro e controlando o tráfico. Quando se endivida com outros traficantes e policiais corruptos, Carlão apela. Ele não tinha ilusões sobre a possibilidade de entrar no mundo dos brancos e ricos. Por isso, não vacilou. Seqüestrou a namorada rica de seu próprio irmão. Na confusão, acaba morrendo. Carlão nasceu do lado de lá e por lá ficou.
Apesar de tudo isso, o casal continua firme. Acham que o amor vencerá todas as barreiras. Tentam fugir para viver juntos e felizes. O apartheid não permite e o final é trágico.
Apartheid é uma palavra que veio da África do Sul e quer dizer separação. No Brasil, não existe apartheid oficial. Nunca houve leis proibindo a convivência de brancos e negros. Mas, não é preciso. No Brasil, os pobres são quase todos negros. Só isso já é suficiente para lhes mostrar onde é seu lugar. Mas, se houver dúvidas, a polícia e o Estado em geral se encarregam de deixar bem claro. Os pobres que não são negros sofrem menos discriminação. Mas, sofrem. É assim que funciona o apartheid brasileiro.
Cumprimentar e ser gentil com porteiros, empregadas, motoristas, garçons e balconistas é uma coisa. Dividir a mesma mesa, acolher em casa, ver a irmã ou a filha casar com um deles? Ah, isso já é uma coisa bem diferente.
A grande diferença é que estamos no Rio de Janeiro. A pobreza fica logo ali, no alto e em volta. Em seus morros, ela se debruça sobre a riqueza e o luxo. A vista do mar e das montanhas lá de cima é linda. Mas, das lajes e quintais das favelas também é possível ver as piscinas das coberturas luxuosas. Onde trabalham os que vivem nos morros.
O final do filme é decepcionante. Só se explica por uma razão. O que interessa ao diretor não é o conto de fadas que o título sugere. Mas, mostrar uma sociedade dividida. O apartheid de um jeito muito brasileiro. Se o filme de Breno Silveira vale alguma coisa, é por isso.
Sérgio Domingues
30 de jul. de 2008
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