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11 de jan. de 2015

Superman e Stalin, em defesa do capitalismo

No ano em que se completaram 50 anos da morte de Stalin, um gibi coloca do mesmo lado o ditador soviético e o super-herói que mais simboliza a ditadura “democrática” dos Estados Unidos. O que eles teriam em comum? A defesa dos mecanismos de funcionamento do capitalismo.

Dezembro de 2004

Para quem não sabe, ou não se lembra, Stalin quer dizer “Homem de Aço”, em russo. Este também é o outro nome pelo qual é conhecido o Superman. O super-herói mais famoso dos quadrinhos, criado por Jerry Siegel e Joe Shuster, em 1938. A partir dessa aparente coincidência, Mark Millar escreveu e Dave Johnson desenhou “Superman, entre a foice o martelo”. A revista foi lançada pela DC Comics no Brasil, em junho passado, em três edições.

Vou fazer algumas observações a que chamarei de parênteses. Os leitores que os acharem desnecessários ou quiserem tirar suas próprias conclusões, podem seguir o texto principal sem prejuízos para a compreensão da história.

Um parêntese, pra começar: por que um militante comunista escolheria para si o apelido de Homem de Aço? Um revolucionário socialista precisa ser firme na defesa de seus princípios. Mas firmeza não é incapacidade de ser flexível. Um militante socialista que quer fazer a revolução tem que ganhar milhões de pessoas para isso. E não se ganha milhões sem arrancá-los da dominação ideológica da burguesia. Para isso, não adianta recitar palavras-de-ordem ou trechos do manifesto comunista. Algo assim pode até funcionar para alguns, muito poucos. O problema é que a grande maioria das pessoas enxerga o mundo tal como a burguesia o apresenta. Se era assim quando existiam apenas jornais de papel, no começo do século passado, imagine hoje, com rádio, tevê, internete. E para fazer essa disputa é preciso tratar aqueles que queremos ganhar para a revolução com respeito por sua capacidade de compreensão. Não se trata de rebaixar nossa discussão para colocá-la ao alcance dos pobres mortais. Trata-se de conhecer a realidade do povo para aprender com ela. Convidar seus melhores filhos a aproveitarmos juntos as contradições que a vida pobre e explorada nos apresenta para dela nos livrar. Mostrar-lhes que há uma tradição de luta com homens e mulheres que já percorreram esse caminho e avançaram passos importantes nele. Convencê-los a seguir conosco esses passos em direção à destruição das condições que fazem a vida tão pobre e explorada. Nada disso combina com a visão de um militante duro e inflexível. Na verdade, a escolha que Stalin fez sobre seu apelido mostra muito do que se tornaria sua idéia falsa e terrível de socialismo.

O Superman soviético é uma espécie de versão invertida do Superman ianque. Na história criada por Siegel e Shuster, o super ser caiu do espaço em uma espaçonave na zona rural dos Estados Unidos. Ainda bebê, foi encontrado por um casal de humildes lavradores, que o criou como seu filho. Na história de Millar, a espaçonave vai parar numa fazenda coletiva da Ucrânia, em plena ditadura stalinista. Seus pais de criação são camponeses dedicados ao que eles pensam ser a causa comunista.

O Superman adulto é o grande ídolo do povo soviético. Na mesma lógica invertida de Millar, Lex Luthor continua sendo seu maior rival, mas é também um ídolo nos Estados Unidos. Um vencedor nos negócios e na ciência. Um exemplo disso é a cena em que aparece pela primeira vez. Luthor está lendo “O Príncipe”, de Maquiavel, enquanto joga xadrez com cinco adversários. Ao mesmo tempo, ouve música num gravador que projetou durante uma passagem pelo banheiro, naquela manhã. Invertendo de novo, Lois Lane é sua mulher.

Neste jogo de espelhos, Batman também é russo e teve seus pais mortos pelos carrascos de Stalin. Torna-se um rebelde anarquista. Vive fazendo atentados contra as autoridades soviéticas, com bombas e assassinatos.

Se o Superman é força e decência, Lex Luthor é inteligência e pragmatismo. Mas, ao contrário da história real, não é a América de Luthor que sai vitoriosa. Depois de relutar muito, Superman aceita ficar no lugar de Stalin. E quando o Homem de Aço completa 63 anos de idade, “o mundo tinha quase 6 bilhões de comunistas”, segundo narração feita por ele mesmo. E completa: “Moscou operava com a mesma precisão de relógio suíço evidente em todas as outras vilas e cidades de nossa União Soviética Global”.

Outro parêntese: a oposição entre os modos de vida soviético e ianque é apenas aparente. O sistema soviético seria pesado, autoritário, mas digno. Pelo menos, ele garantia a todos, emprego, saúde, educação. O modo de vida norte-americano, seria o contrário. Há liberdade e democracia, mas cada cidadão tem que saber utilizar esses valores para se dar bem. Pode haver pobreza, desemprego e injustiça, mas só para quem não souber utilizar sua inteligência e capacidade de trabalho. De fato, os dois sistemas operavam sob a mesma lógica. Ambos mantinham a separação entre o trabalhador e seu instrumento de trabalho. Num, eram os patrões que controlavam os meios de produção. No outro, era o Estado. Portanto, nos dois havia exploração. Havia extração de mais-valia. O fato de que no sistema soviético, não havia a figura jurídica da propriedade privada dos meios de produção não muda nada neste aspecto. Apenas no aspecto político e social. A classe que explora os trabalhadores está disfarçada de burocracia. Está travestida de Estado Operário.

Por outro lado, num dado momento, Superman especula sobre o papel de Lex Luthor. “Talvez,ele existisse para manter sob controle...”. Exatamente o que aconteceu durante o período da Guerra Fria. As duas superpotências aceitaram um jogo arriscado. Um cabo-de-guerra que, felizmente, não se rompeu. Caso contrário, já não estaríamos aqui. A pergunta é, pode um país que se afirmava socialista aceitar um jogo como este? Não. Ameaçar a humanidade com bombas atômicas nada tem a ver com o princípio de libertação e luta pela paz definitiva que está na base da causa socialista.

É ainda Superman que diz: “Não havia adulto sem emprego. Todas as crianças gozavam de um hobby e a população inteira desfrutava das oito horas completas de sono que seus corpos requeriam”.

No Superman original, outro de seus grandes inimigos é Brainiac. Trata-se de um alienígena com enormes poderes mentais, que acabou sendo aprisionado pelo Homem de Aço em um corpo robótico. Mas, na versão de Millar, Brainiac ajuda Superman a administrar o mundo. As providências do mecanismo aumentaram a expectativa de vida para 120 anos. Os suicídios estão em queda porque Brainiac colocou hidrocloreto de fluoxetina no fornecimento de água.

Terceiro parêntese: nada disso tem alguma coisa a ver com socialismo ou comunismo. A começar pela necessidade de um super-ser para dirigir a sociedade. Tal idéia está bem presente em todas as ditaduras. A idéia do homem superior governando os comuns. Além disso, o ideal do comunismo não é dar a cada pessoa um emprego. Trata-se de proporcionar a cada um a oportunidade de agir e se relacionar criativamente com a natureza e com as pessoas, através de um trabalho livre das imposições da sobrevivência. Algo levemente parecido com o que conhecemos hoje por atividade artística. A solução de Brainiac para o suicídio faz um feliz contraponto a essa imagem errada da utopia. Hidrocloreto de fluoxetina é o princípio ativo de um medicamento que, nos anos 90, foi considerado o Viagra da depressão. A idéia de que os conflitos existenciais serão resolvidos quimicamente é feia demais para ser utópica.

Toda essa obra foi conseguida com um novo estilo de governar. Sucessor de Stalin, Superman não quer manter seus métodos. Por exemplo, diante da sugestão de matar o subversivo Batman, Superman se mostra indignado. “A utopia não vai ser erguida sobre os ossos de meus oponentes. Essa era a maneira de agir do camarada Stalin, não minha”.

O novo Homem de Aço toma a si a tarefa de consertar o mundo, com o mínimo de violência possível. Quase um governo pelo convencimento. Stalin também fazia uso do convencimento. Mas não hesitava em exterminar quem se recusava a ser convencido.

Quarto parêntese: Ainda há os que acreditam que Stalin mandou matar milhares para defender as conquistas da revolução. Se isso for verdade, trata-se de um indivíduo, sem dúvida, de poderes sobrenaturais. Afinal, entre os mortos, estão praticamente todos os seus companheiros de revolução. Camaradas, no mínimo, acima da média. De todos os membros do Comitê Central do Partido de 1923, somente Stalin e Molotov sobrevieram aos anos 1930. Eis a lista dos mortos e suas causas: Lênin teve morte natural. Kamenev, Zinoviev, Bukharin, Rykov e Trotsky foram mortos a mando de Stalin. Tomsky se suicidiou, temendo ser preso. E não só isso, no outono de 1929 havia 60 mil prisioneiros em campos de concentração. Em Meados de 1930, 600 mil. Em 1932, cerca de 2 milhões. Todos traidores? Não. Era a máquina de poder dirigida por Stalin em pleno funcionamento.

A única exceção nesta situação utópica é a América. Uma zona de guerra que recusa a ajuda econômica soviética, com 350 milhões de pessoas à beira da morte por desnutrição. Mas o país que teima em permanecer em situação caótica é governada por Lex Luthor. E o velho inimigo de Superman não desistiu de vencer sua guerra contra o Homem de Aço.

Como presidente dos Estados Unidos, Luthor cortou relações diplomáticas do país com o resto do mundo. Criou um rígido mercado interno, onde exercia controle absoluto sobre todas as cédulas de dólar. Qualquer semelhança com os paises do bloco soviético na vida real não é mera coincidência. A diferença é que tudo isso fazia parte de um plano.

Enquanto o Superman calculava que o colapso da economia norte-americana viria a qualquer momento, Luthor preparava seu plano. As providências que tomou na esfera econômica estavam tornando o país rapidamente próspero. Além disso, havia desenvolvido armas poderosas para enfrentar os poderes de Superman.

Quinto parêntese: um vilão como Luthor governando os Estados Unidos é muito adequado. Afinal, o que é Bush? Sua primeira eleição foi uma fraude clara. Na segunda eleição, funcionaram os mecanismos de restrição do voto. A maioria dos negros e hispânicos teve grandes dificuldades em votar. Dos que votaram, a grande maioria era branca e conservadora. Além disso, não há pluripartidarismo, nem votação direta para presidente. Na verdade, há um único partido com duas alas. A republicana e a democrática. A legislação sufoca o crescimento de outros partidos. E ainda tem o Colégio Eleitoral, que elege o presidente. Quando os eleitores americanos vão votar é para eleger delegados para esse Colégio Eleitoral. Mas só o partido único da burguesia elege delegados e define qual o melhor representante de seus interesses. Uma democracia de cartas marcadas. A mais perfeita ditadura do Capital.

O momento em que a economia ianque deveria desabar não veio. Superman é, então, avisado por Brainiac sobre os planos de Lex. Diz que os Estados Unidos são a única ameaça ao que construíram juntos. Quer que o Homem de Aço ordene a destruição do país. Superman novamente se recusa a resolver o problema pela força bruta.

Lex Luthor aparece de surpresa. Invadiu a fortaleza do Homem de Aço. Diz que seu plano de ataque e destruição do poder soviético está em andamento. Brainiac não tem dúvidas. Captura Lex e o prende no interior de seu próprio corpo robótico.

Começam os ataques preparados por Luthor. Finalmente, Superman se convence a atacar os Estados Unidos. As forças norte-americanas começam a ser derrotadas. Uma legião de super monstros criados por Lex é destruída sem dificuldades por Superman. Começa o contra-ataque soviético.

As forças soviéticas avançam pelo território ianque. Superman se aproxima da Casa Branca e encontra Lois Lane na sacada. Lois diz que os Estados Unidos são o seu lar e não vai abandoná-lo. O Homem de Aço explica que os Estados Unidos já não existem mais. As forças soviéticas destruíram seus exércitos e Luthor está preso. Lois responde que ainda há uma bala no arsenal dos americanos. Trata-se de uma carta deixada por Luthor para que ele leia. Está no bolso do casaco dela. Lois Pede a Superman para ler o documento com sua visão de raios-X. O Homem de Aço obedece. Seus olhos lacrimejam. Ele cai de joelhos chorando e se lamentando: “Oh, meu Deus! O que foi que eu fiz. Tudo o que eu queria era pôr um fim nas guerras e na fome...” Lois fica surpresa. Abre a carta e lê: “Por que você não põe o mundo todo numa garrafa, Superman?”.

A carta de Lex colocou Superman num conflito moral. Diz a Brainiac que ele não passa de uma espécie alienígena violentando uma espécie menos desenvolvida. Isso não seria moralmente justificável. Por isso, resolve deixar tudo. Sair do planeta e da vida de seus habitantes. Brainiac diz que negar aos seres humanos a utopia perfeita é que não seria moralmente justificável. A máquina resolve se revoltar contra Superman. Vai continuar e completar o trabalho. Ataca o Superman com raios verdes. Provavelmente, kriptonita, único material capaz de destruir o Homem de Aço, na Terra.

Sexto parêntese: a discussão aqui é muito feliz. Trata-se da idéia de que o socialismo, a justiça social, a construção de um mundo melhor, podem ser impostos de cima para baixo. Impossível. A idéia de justiça social é o oposto da afirmação de hierarquias. Estas são incompatíveis com a compreensão de que os seres humanos são potencialmente iguais em suas capacidades e radicalmente diferentes em suas possibilidades. Não se trata de acabar com as hierarquias de um dia para o outro. Trata-se de lutar contra seu fortalecimento em nome da liberdade. Esta é a mais perigosa forma de mantê-las e reforçá-las. Luthor não representa a liberdade. Ao contrário, tem convicção de que a injustiça é o estado natural da humanidade. Por isso, pega o Homem de Aço no contrapé. Da mesma forma que o sistema soviético foi pego no contrapé. As populações do bloco soviético suportaram a repressão e a opressão por muito tempo, em nome de conquistas materiais básicas. Quando ficou claro que tanta repressão não garantia nem mesmo isso, o capitalismo jogou suas iscas: seria melhor ter liberdade com alguma chance de fugir da pobreza, do que a certeza da pobreza sem liberdade alguma. Infelizmente, os povos do bloco soviético descobriram que só passaram a ser dominados e explorados por outra forma de capitalismo.

Quando parecia ser o fim do super-herói, uma surpresa. A captura de Lex Luthor pela máquina era parte dos planos do vilão. Dentro das tripas artificiais de Brainiac, Luthor toma o controle da máquina. Detém o ataque ao Homem de Aço. Mas a máquina tem um dispositivo de segurança. Uma bomba poderosa é colocada em ação. Pode destruir todo o sistema solar. Somente o Superman pode levar a explosivo para longe da Terra. E ele o faz. Mas no caminho, deduz que esta é mais uma jogada de Luthor. A bomba foi acionada por ele mesmo para dar a chance de que o Superman precisava para abandonar o planeta em grande estilo. A explosão faz parecer que o Homem de Aço morrera para salvar a Terra. Superman agradece e sai de cena.

Último parêntese: um leitor mais delirante veria na estratégia de Luthor algo parecido com a idéia de que é possível modificar o sistema por dentro. Deixar-se engolir por Brainiac seria como eleger muitos parlamentares e governantes de esquerda. Eles iriam apresentar leis ou fazer políticas para ir mudando o sistema aos poucos. Até que chegássemos suavemente ao socialismo. Se o gibi tivesse terminado por aí, estaria demonstrado que o tal “sistema” é um mecanismo que não aceita sabotagens por dentro. Na verdade, mostraria que o verdadeiro sujeito da atual sociedade é um mecanismo. É o capital. É por isso que Marx batizou sua maior obra com o nome de “O Capital”. Não chamou de “Os capitalistas” ou “A burguesia”. Trata-se de um mecanismo posto em andamento que escraviza todos os seres humanos. Mesmo, os patrões, sempre às voltas com a necessidade de manter altas taxas de lucro para não naufragarem. Claro que a deles, é uma doce escravidão. O fato é que esta máquina não foi desativada após a revolução russa. Ao contrário, ganhou novo impulso quando a nascente experiência socialista se transformou em Estado socialista. Quando tudo o mais ficou subordinado à preservação de um governo que se intitulou comunista. Neste momento, o caminho passou a ser feito por dentro do “sistema”. Por dentro do mercado capitalista mundial, aceitando as regras da competição capitalista, acelerando a industrialização segundo os moldes capitalistas. Uma corrida louca para frente que atropelou e matou milhões de russos e de outros habitantes do Leste Europeu. O final da corrida foi conhecido em 1991. A União Soviética desapareceu, mas o capitalismo continuou. Não é à toa que a grande maioria dos funcionários da antiga máquina burocrática russa são hoje os empresários e mafiosos que controlam a economia. O final que Millar dá a sua história parece confirmar isso. É conservador, se o interpretarmos como impossibilidade de mudanças. Pode ser melhor que isso, se o interpretarmos como a negação de que a liberdade humana possa vir de cima para baixo. Voltará a se repetir, trocando apenas de autoridades e exploradores.

Agora, é Lex Luthor que reina absoluto. O planeta progride através de milhares de séculos. A linhagem Luthor segue governando e fazendo seu povo feliz. O bisneto de Luthor é Jor-L. Um jovem talentoso, que descobre o triste destino da Terra. O Sol está morrendo. A estrela está ficando vermelha e se expandindo. Vai engolir a Terra e os outros planetas. Ninguém acredita em Jor-L. Sabendo que a catástrofe não vai demorar, quer salvar seu único filho, ainda bebê. Cria uma nave espacial para enviar a criança para longe. Não no espaço, mas no tempo. Envia o pequeno Kal-L para o passado. Quer que a criança volte para mudar os destinos do mundo. A nave, com o bebê, cai em uma fazenda da Ucrânia em 1938. A história recomeça.

Livros consultados:
“State Capitalism in Russia”, de Toni Cliff.
“Russia, class and power – 1917 – 2000”, de Mike Haynes.
“El partido bolchevique”, de Pierre Broué.


 

10 de mai. de 2010

A cara de pau do Homem de Ferro neoliberal

“Homem de Ferro 2” é conservador. E não esconde isso. Representa bem a união entre indústria, governo e forças armadas em defesa do mercado.

O novo filme do Homem de Ferro começa com um show. O super-herói aterrissa num palco entre dançarinas bonitas e faz um strip-tease de sua armadura para mostrar-se como empresário sucesso.

Em seu elegante terno, Tony Stark esbanja charme enquanto diz em alto e bom som que é o responsável pela paz americana. Diante de milhares de pessoas afirma que graças a ele o Tio Sam pode beber seu “chá gelado tranquilamente em sua cadeira de balanço”. Afinal, não há ninguém “que seja homem suficiente” para derrotá-lo.

Só a ótima atuação de Robert Downing Jr. salva a cena do completo ridículo. Mas, o que importa é a semelhança de seu discurso com aquele do governo americano após a queda da União Soviética, no início dos anos 1990. A diferença é que Ronald Reagan era um péssimo ator.

Tal semelhança não pode ser coincidência quando se revela que o inimigo mais perigoso do Homem de Ferro é um russo. Trata-se de Ivan Vanko (Mickey Rourke), filho de um cientista que trabalhou para os soviéticos. Vanko é inteligente, mas sua grande força física não tem a sutileza e a elegância do Homem de Ferro.

A diferença entre os dois lembra aquela que existia entre as economias soviética e americana. A primeira arrastava-se sob o peso de um capitalismo administrado pelo Estado. A segunda devia sua agilidade a um Estado empurrado pela rapidez com que o mercado ataca os direitos dos trabalhadores.

No filme, Stark representa a avançada indústria moderna. Alta tecnologia em máquinas e programas de computador combinada com armamento pesado. Tudo a ver com os objetivos do império americano.

No entanto, como típico empresário neoliberal, Stark só aceita usar seu poderio tecnológico como quer e segundo seus critérios. Se isso coincidir com os objetivos da sociedade, tudo bem. Claro que sendo um industrial, tais objetivos só podem estar relacionados aos interesses de quem está no poder. Por isso, ele ridiculariza o senado americano, mas no final mostrará que não se trata de coisa séria.

Mesmo as brigas de Stark com o amigo James Rhodes (Don Cheadle) são coisas de antiga camaradagem. Rhodes é coronel do Exército. A parceria entre eles parece representar o complexo industrial-militar que governa os Estados Unidos. Suas diferenças são facilmente superáveis em nome de objetivos parecidos. Dominar o mundo e lucrar muito com isso.

Justin Hammer, muito bem representado por Sam Rockwell, é apenas o empresário que não entendeu bem o jogo do poder. A apresentação de seu exército robótico na feira de Stark é de arrepiar. Monstros de metal, prontos a matar em qualquer parte do mundo. Mas, é de mau gosto apresentá-los dessa forma. E vai contra a lógica individualista, que precisa de um herói de carne e osso para entusiasmar o povo.

Aviões robôs já andam voando por aí, matando inocentes na Palestina, Iraque, Afeganistão. No entanto, não se deve dar mais destaque a sua tecnologia do que aos supostos objetivos a que servem: livrar o mundo do terrorismo para salvar a humanidade. O diabo é que a humanidade também está na linha de tiro. Hammer é derrotado, como são alguns empresários na cada vez mais selvagem competição capitalista.

No final, o super-herói, o coronel e o senador aparecem posando para fotos. A indústria, o exército e o governo abraçados. Meio a contra gosto, é verdade. Nada que não se revolva com muito dinheiro e mísseis.

O maior vencedor é Stark. A vitória é do mercado, dos valores individuais, do executivo que adora uma farra, mulheres bonitas e carrões. Às vezes, de smoking, às vezes, com um pijama de ferro. É o neoliberalismo, na maior cara-de-pau, mostrando que está muito longe de enferrujar.

23 de jul. de 2009

Turma da Mônica, jovem e consumista

Mônica e sua turma ficaram adolescentes e agradaram. É grande sucesso de vendas. Mas, continua mostrando uma sociedade que existe para poucos.

Em outubro de 2008, Mauricio de Souza completou 50 anos de carreira. Mostrou que continua talentoso e com ótimo faro para negócios. Lançou a Turma da Mônica Jovem. Renovou seu grande sucesso nacional e internacional. A primeira edição vendeu 200 mil exemplares. Os outros dois números venderam, juntos, 500 mil. A publicação ficou várias semanas entre as mais vendidas.

As razões são muitas. O estilo mangá, inspirado nos quadrinhos japoneses é uma delas. Trata-se de uma linguagem que caiu no gosto das crianças e adolescentes no mundo todo. A excelente equipe de roteiristas é outro trunfo há muitos anos. As histórias são dinâmicas, engraçadas, ligadas aos modismos do momento e em linguagem idêntica àquela falada pela maioria dos jovens.

As devidas adaptações foram feitas. E elas revelam muita coisa. Cascão agora toma banho. Sua atração pela sujeira transferiu-se para um jeitão bagunceiro e simpático. Cebolinha só troca letras quando fica nervoso. O que dá um certo charme ao homem em que ele vai se tornando. Magali continua faminta, mas segura a gula para cuidar do corpo. Mônica ainda é forte e mandona, só que sua personalidade a transformou numa líder.

Ou seja, as manias e características da turma mirim não a tornaram um bando de jovens problemáticos. Magali teria tudo para sofrer de obesidade mórbida. Cascão poderia ser o cara que não vai bem na escola e anda em más companhias. Cebolinha poderia transformar-se num jovem tímido e solitário. Mônica, uma pessoa autoritária e insuportável.

As preocupações com consumo também estão mais presentes. Nem tanto nas tramas. Passeios a lojas e shoppings até aparecem. Mas é mais sutil que isso. Continuam os episódios que mostram a luta do bem contra o mal e as confusões envolvendo situações cotidianas. A turma infantil usava sempre as mesmas roupas simples.

Já, a tribo adolescente veste roupas diferentes e bonitas em suas aventuras. Não é preciso convidar diretamente ao consumo. Basta mostrar que o padrão de beleza e dignidade que vale depende mais daquilo que se tem e não daquilo se é ou faz. Combater o mal e resolver os problemas do dia-a-dia, tudo bem. Mas com roupas de grife.

Claro que Mauricio e sua equipe não iriam retratar Mônica e seus amigos como jovens problemáticos. Não seria uma aposta feliz em termos de mercado. E o apelo ao consumo tem tudo a ver com um empreendimento que sempre soube vender sua marca. Em termos de qualidade de produção e capacidade de vendas, Maurício de Souza é o Walt Disney brasileiro.

Desde seus primeiros trabalhos em revista em quadrinhos, Mauricio soube se adequar ao mercado que nascia. Crescendo junto com a urbanização da sociedade brasileira. Acompanhando a ampliação da dimensão do consumo na sociedade. Beneficiando-se de uma expansão da indústria editorial que praticamente o tornou o único grande produtor nacional de quadrinhos. Um gênio criativo e comercial, sem dúvida.

Mas para chegar tão longe, sua obra só podia vender uma visão conformista da sociedade. O fato é que a Turma da Mônica sempre retratou uma realidade que nunca foi a da maioria das crianças e adolescentes. O bairro do Limoeiro não é rico, mas não é favela, nem periferia pobre. Quase toda a turma é formada por crianças brancas. Elas estudam em escolas bem arrumadas e contam com lazer e diversão. Vão a médicos e dentistas sem maiores dificuldades. Pra completar, Cascão, o garoto bom de bola e que não gosta de tomar banho, tem todo jeito de ser negro.

Não se trata de considerar Maurício um racista e sua equipe um bando de conservadores. No entanto, o mercado impõe condições duras para o sucesso. Não é preciso mais do que ficar no nível do senso comum para fazer o jogo dos poderosos. Muitas vezes uma certa crítica social aparece nas histórias. O problema é que isso é muito pouco em uma das sociedades mais injustas do planeta. É muito mais caridade que denúncia.

A verdade é que a turminha da Mônica tem sua parte de responsabilidade na manutenção da sociedade brasileira. Agora, ela se atualizou e o sucesso continua. Até porque as crianças e adolescentes têm cada vez mais poder nas decisões sobre o que a família consome. Infelizmente, é isso que acaba restando. Ensinar jovens e crianças a consumir, mesmo que isso lhes custe ficar cada vez mais cegos aos problemas sociais que as cercam.

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Asterix ajuda a entender o capitalismo

16 de abr. de 2006

Os inteligentes quadrinhos italianos

Que tal um gibi de estórias policiais cuja personagem principal cita Durkheim para afirmar que o crime é um fato social? Ou um gibi de aventuras do velho oeste que mostra como os “heróis” americanos massacraram os indígenas. São os sofisticados e inteligentes quadrinhos italianos.


Os gibis mais vendidos são geralmente feitos em formato grande, coloridos, com heróis cheios de super-poderes, vilões monstruosos e estórias em que bem e mal são resultado de opções morais. Não é caso dos gibis que vamos comentar abaixo. Eles são publicados em formato pequeno, em branco e preto, e procuram explicar a maldade do ponto de vista histórico e social.


Pra começar, que tal um gibi de estórias policiais cuja personagem principal cita Durkheim para afirmar que o crime é um fato social? E se em outra aventura houver uma citação de Paulo Freire, que consta em um documento dos índios iroqueses apresentada em uma conferência da ONU, em 1977? Estamos falando de “Aventuras de uma criminóloga”, história em quadrinhos que tem como heroína Julia Kendall. Ela é criação do talentoso roteirista italiano Giancarlo Berardi.


Junto com o desenhista Ivo Milazzo, Berardi ficou famoso pela criação do caubói politicamente correto, Ken Parker (clique aqui para saber mais sobre Parker). E tal como nas tramas que inventou para Parker, Berardi procura dar à Julia um perfil  progressista. Alguém que não se dobra a idéias conservadoras sobre as razões que levam alguém a cometer crimes. E diante do pior assassino em série, tenta compreender as razões psicológicas e sociais que o levaram a cometer seus atos terríveis.


Agora, imagine um gibi de aventuras do velho oeste que denuncia a corrupção envolvendo agentes governamentais atuando em reservas indígenas, por exemplo. Mostrando toda a sujeira dos “heróis” brancos norte-americanos. Uma trama em que democratas e republicanos, nortistas e sulistas tem lá suas brigas, mas se entendiam muito bem na hora de garantir lucros pela exploração e massacre de indígenas. Trata-se de “Mágico Vento”. Uma revista de HQ criada pelo também italiano Gianfranco Manfredi. O personagem principal do gibi é Ned Ellis. Um soldado que foi o único a sobreviver a um massacre que o deixou desmemoriado e com poderes místicos. Por isso, recebeu dos índios Sioux que o resgataram o nome que dá título ao gibi.


Mas ao contrário do que muitos podem pensar, as aventuras de Júlia e Ned não são chatas. Tanto Berardi como Manfredi conseguem dar às estórias que escrevem um ritmo digno dos melhores filmes de ação e suspense.


As duas publicações são editadas na Itália pela Bonelli e, no Brasil, pela Mythos. As duas editoras também são responsáveis por outros títulos de boa qualidade. É o caso de Dylan Dog, um detetive muito peculiar. Ele se dedica a investigar casos ligados ao sobrenatural. Presta seus serviços no combate a vampiros, lobisomens, fantasmas e alienígenas. Mas é outro herói cujas estórias também abordam a violência doméstica, racismo, autoritarismo etc. Outra característica que o iguala à criminóloga e ao soldado místico é seu auxiliar. Dylan Dog tem como parceiro de aventuras nada menos do que Groucho Marx, sempre pronto a soltar as piadas mais infames. A parceira de Júlia, por sua vez, é uma empregada chamada Emily, cujo tipo físico lembra o da atriz Woopi Goldberg. Emily protege a patroa como se fosse sua filha mas nunca deixa de fazer seus discursos furiosos e engraçados contra o racismo dos brancos e o machismo dos homens. Já Ned Ellis tem como aliado fiel ninguém mais do que Edgar Allan Poe, cujo o amor pela bebida só é superado pela revolta contra as injustiças.


Um problema que poderia ser levantado contra nossos heróis é o fato de nenhum deles viver suas aventuras na Itália. As estórias de Julia e Ellis se ambientam nos Estados Unidos. Dylan atua na Inglaterra. Pode ser fruto de colonialismo. Mas, também é uma forma de falar mais universalmente. Quer coisa mais universal do que bangue-bangue e tramas policiais e de terror? E tudo isso em quadrinhos?


Em seu auge, os limites do Império Romano eram os mesmos do mundo conhecido pelos europeus. No mundo do século 20, os limites geográficos dos novos e antigos impérios capitalistas ficaram bem definidos. Mas a dominação cultural da língua e dos usos anglo-saxões ultrapassaram as fronteiras e atingem o planeta inteiro. Os artistas italianos podem estar seguindo a velha máxima imposta por seus ancestrais: “Quando em Roma, faça como os romanos”. É uma forma de resistir. Usar os bonitos cenários deles para deixar ver os pilares podres que os sustentam: uma sociedade doente que leva seus integrantes a cometer crimes bárbaros. Heróis que não passaram de assassinos dos povos e dos animais originais das terras americanas.

8 de ago. de 2004

Asterix ajuda a entender o capitalismo

Comparar Obelix e Companhia, de Goscinny e Uderzo, às obras de Marx, Engels, Lênin, Rosa, Trotski, Gramsci, não tem nenhum sentido. Mas, essa pequena obra-prima em quadrinhos merece a atenção de quem luta contra o capitalismo.


Estamos no ano 50 antes de Cristo. Toda a Gália foi ocupada pelos romanos... Toda? Não! Uma aldeia povoada por irredutíveis gauleses ainda resiste ao invasor. E a vida não é nada fácil para as guarnições de legionários romanos nos campos fortificados de Babaorum, Aquarium, Laudanum, e Petibonum...”.
A apresentação acima acompanha todos os álbuns de Asterix, personagem do italiano Albert Uderzo e do francês René Goscinny. A série de 31 álbuns é um dos exemplos do que há de melhor na literatura em quadrinhos.
O que a introdução não explica é que os “irredutíveis” gauleses devem sua invencibilidade a uma poção mágica. A bebida dá aos aldeões uma enorme força física e seus efeitos duram o suficiente para destruir qualquer tentativa romana de conquistar a aldeia. Esta, na verdade, simboliza o nacionalismo francês.
Cada álbum da dupla é uma obra-prima feita de belos traços e cores, humor, roteiro, ironia, conhecimento histórico e muita inteligência. Mas um deles é tudo isso e ainda pode ser usado para mostrar como as relações capitalistas podem corroer laços comunitários de convivência. Trata-se de Obelix e Companhia.
A história começa com a imagem da fortificação de Babaorum, a mais próxima da aldeia gaulesa (Prancha 1-A). As legiões romanas, famosas por sua disciplina e dedicação, estão entregues à mais terrível indisciplina e ao mais completo ócio. Só esperam a chegada das legiões que ficarão em seu lugar. As razões? A desmoralização diante das sucessivas surras tomadas dos gauleses.
Vou fazer algumas observações a que chamarei de parênteses. Os leitores que os acharem desnecessários ou quiserem tirar suas próprias conclusões, podem seguir o texto principal sem prejuízos para a compreensão da história.
Enquanto isso, César, em Roma, está desesperado por uma saída para o impasse diante da aldeia de Asterix. Convocou senadores e patriarcas para aconselhá-lo na tarefa. Dentre estes, está Regius Velhacus, recém formado pelo “reformatório de ensino superior”. Ele propõe a César derrotar os gauleses por meios não militares. Através da corrupção pelo ouro. César se interessa.
Mas, um dos presentes discorda. Diz que o melhor ainda é a boa e velha força bruta. Ao ouvir isso, César diz a ele: “Sim, Pediculus, eu me lembro! Você era um jovem tribuno corajoso, audaz, até pensava nos problemas do povo...Agora, com o ouro dos saques, veja em que você se transformou!” Depois, dirigindo-se a todos: “Sim! Vejam o que o ouro, as vilas, as orgias, as comissões na compra de armas fizeram de vocês! Gordos e decadentes!...” (Prancha 9-A)
César vira-se para Velhacus e pergunta: “Você acha que pode transformar aqueles gauleses em algo parecido com isso?”, apontando para os gordos patriarcas. A resposta: “Pode crer! Eles vão lutar por outra coisa e nunca mais para defender sua aldeia!” (9-B).
Os primeiros parênteses: há, nos Estados Unidos, quem defenda um modo mais eficiente de acabar com o regime cubano do que o embargo econômico. Bastaria estabelecer as mais amplas relações comerciais com a ilha. O efeito corrosivo da presença dos produtos capitalistas mais avançados colocaria por terra um sistema de poder que usa como pretexto a penúria a que o povo cubano foi condenado pela brutalidade norte-americana. Esta aventura de Asterix parece dar razão à tese.
Velhacus parte para a Gália. Por acaso, encontra Obelix na floresta que separa a fortificação romana da aldeia gaulesa. Como sempre, o grande gaulês carrega um menir 1 de sua própria fabricação. Velhacus encontra o pretexto para por seu plano em ação. Compra o menir e pede para entregar mais um na fortificação romana no dia seguinte. Obelix faz mais um menir e o leva a Velhacus. Este lhe diz que vai pagar o dobro do que pagara pelo anterior. Diante do espanto de Obelix, o romano explica as razões do aumento nos seguintes termos: “... problemas de da economia, fluxo de oferta e demanda...reversão atípica das expectativas. Flutuação cambial...é complicado” (13-A).
Javali é o prato preferido na aldeia e o único item na gordurosa dieta de Obelix. Mas com o aumento das encomendas de menires, Obelix já não tem tempo para caçar. Se vê obrigado a oferecer dinheiro a um outro aldeão, Analgesix, para caçar javalis para ele.
Asterix estranha a intensa produção de menires e questiona Obelix. Este dá sua explicação nos termos em que aprendeu a pensar com Velhacus: “...Se a demanda for igual à quantidade de bens produzidos, divididos pela quantidade de moeda boa, multiplicada pela quantidade de moeda má que sai de circulação, os preços cairão” (15-B).
A vida da aldeia começa a entrar em colapso. Obelix recebe cada vez mais dinheiro de Velhacus. Passa a contratar gente para ajudá-lo na fabricação de menires. Ao mesmo tempo, outros aldeões são desviados de suas funções normais para caçar javalis. Estes são vendidos para quem não tem tempo de caçar por estar trabalhando para Obelix.
Ao sair para caçar, Asterix descobre que a floresta está apinhada de caçadores de javalis devido ao surgimento da troca de javalis por dinheiro.
As relações conjugais também não vão bem. Uma das mulheres da aldeia se insinua para Obelix, uma vez que ele comprou todo os belos tecidos do mercador que visita a aldeia regularmente. Obelix a contrata para fazer-lhe uma roupa. O marido cobra o almoço. Mas ela se nega a preparar a refeição porque está costurando para Obelix. “Como não posso contar com você, preciso arranjar um meio de ganhar dinheiro”, diz ela. (23-B e 24-A).
Mais parênteses: o enredo mostra como a forma de troca de mercadorias entre os aldeões vai se alterando. Antes eram trocas entre produtores diferentes. O peixeiro comprava do ferreiro, mas este também seria fornecedor do peixeiro, quando ele precisasse de uma nova balança ou de facas. O dinheiro está presente, mas seu caráter intermediário é mais claro. Com a especialização da aldeia na fabricação de menires, todo o resto começa a girar em sua órbita. Já não circulam produtos e serviços através do dinheiro, mas dinheiro através de produtos e serviços. Há uma passagem de O Capital, de Marx que diz: “... uma mercadoria não se torna dinheiro somente porque todas as outras nela representam seu valor, mas, ao contrário, todas as demais nela expressam seus valores, porque ela é dinheiro. Ao se atingir o resultado final, a fase intermediária desaparece sem deixar vestígios. (...) Ouro e prata já saem das entranhas da terra como encarnação direta de todo trabalho humano. Daí a magia do dinheiro.”
Asterix sente que está em andamento um plano para desunir a aldeia. Prepara a reação. Estimula todos os moradores a entrar no negócio dos menires para concorrer com Obelix. A confusão aumenta. O ferreiro, o peixeiro, o quitandeiro, todos largam suas tarefas tradicionais para também fabricar menires. Ao entusiasmo geral pela nova atividade, Asterix adiciona um aumento de produtividade através do uso da mais avançada “tecnologia” local: a poção mágica. O resultado são entregas cada vez maiores ao acampamento romano.
A conseqüência é que César começa a se desesperar com a quantidade de menires que chega a Roma. Velhacus o tranqüiliza. Diz que vai estimular a compra de menires, usando um márquetim todo específico: “As pessoas compram, diz ele, A – o que é útil, B – o que é confortável, C – o que é agradável, D – o que causa inveja nos vizinhos. Está no item D o ponto básico da campanha.” Propõe a massificação. Cita as qualidades que devem ser ressaltadas: “A – durabilidade, B – ineditismo e C – outras qualidades que ainda vou descobrir” (32-A).
A prancha 34-A mostra Velhacus apresentando a César os produtos que inventou para transformar a posse de menires em moda: Togas com menires bordados, relógios solares com ponteiros em forma de menir, jóias com o mesmo motivo e um estojo “faça você mesmo” com martelo e talhadeira para uso familiar.
Parênteses: É uma idéia comum a de que o capitalismo inventa coisas desnecessárias para serem vendidas. No entanto, esta é uma discussão complexa. Qual o limite entre o que é estritamente necessário e o que passa a ser supérfluo? Muito difícil de determinar. Claro que alimento, vestuário e habitação poderiam ser considerados o nível mais básico. Mas em regiões muito quentes, a nudez total seria a regra? Não é o que se verifica. Mesmo entre indígenas em regiões tropicais, os adereços e acessórios simbólicos fazem parte da vida social. Não há uma relação direta entre necessidade e uso. Além disso, hoje já é muito comum ver tribos inteiras vestidas com roupas urbanas, mesmo que não sejam necessárias devido ao clima. Aí, já entra o fator da dominação cultural.
Em O Capital, ao discutir quanto deve ser a soma dos meios necessários para manter a vida normal de um trabalhador, Marx diz que “a soma dos meios de subsistência deve ser (...) suficiente para manter no nível de vida normal do trabalhador”. Mas, adverte que um elemento histórico e moral entra na determinação desse valor. É o caso de indígenas vestidos com camisas do Flamengo, usando relógios de pulso e consumindo bebidas e comidas estranhas à sua tradição e, teoricamente, inadequadas ao ambiente em que vivem.
Mas nem tudo dá certo. Começam a aparecer contradições. Um fabricante romano de menires inicia um movimento protecionista. O fabricante, que se chama Malentendidus, é questionado por César: “Que história é essa?” O fabricante responde: “Os menires gauleses estão colocando em risco a sobrevivência da classe empresarial”. César discorda: “Mas quem fabrica são os escravos”. Malentendidus: “Justamente! O trabalho duro é o único direito do escravo! Não podemos lhes tirar esse direito!” (34-B e 35-A).
A situação evolui para ações concretas. Uma barreira é colocada na entrada de Roma. Numa faixa está escrito “Menires Gauleses Go Home” (35-B).
Parênteses: Um momento muito feliz dos autores. Primeiro, antecipam em pelo menos 15 anos (o álbum é de 1976) as contradições entre a globalização e os interesses de setores nacionais burgueses. Um famoso representante desses setores é José Bové2, que é francês e lembra Asterix. Em segundo lugar, os escravos romanos não poderiam ter direitos, pois eram considerados coisas. Do ponto de vista formal e real, equivaliam a animais de tração. Portanto, Goscinny e Uderzo devem estar se referindo aos proletários atuais. Estes acreditam ter direitos. Mas só os têm do ponto de vista formal. Do ponto de vista real, seu único grande direito é o trabalho duro. Basta notar que em tempos de ditadura ou de ataque aos trabalhadores, direitos como o voto ou o salário-desemprego podem ser rapidamente suprimidos. Mas o direito a ser explorado continua valendo, nem que seja de modo informal e precário.
As táticas consumistas de Velhacus perdem fôlego. Menires começam encalhar nos estoques e a ser vendidos em liquidação. “Em cada compra de um escravo, dois menires de graça”, diz um anúncio talhado em mármore (37-A).
César pega Velhacus pelos colarinhos, chacoalha e diz: “Foi por sua causa que quase abri falência e quase entramos em guerra civil! Nem mesmo Brutus me prejudicou tanto!” (37-B). Despacha o marqueteiro para a Gália para resolver o problema. Lá chegando, Velhacus simplesmente suspende a compra de menires.
Ao descobrir que os romanos já não querem comprar mais menires, os gauleses começam a se desentender. Uns acusando os outros de concorrência desleal. Mas Asterix lhes faz notar que os verdadeiros culpados são os romanos. Convida-os a acertar tudo com eles. A prancha 43-A mostra Os gauleses entrando numa coluna arrasadora pela fortificação de Babaorum, destruindo tudo e colocando os romanos em fuga. Inclusive, Velhacus.
A cena final é aquela que fecha todas as aventuras de Asterix. Um grande banquete, com muito vinho, os inevitáveis javalis e muita diversão. Só não há música porque o único bardo da aldeia tem uma voz horrível. Durante os banquetes, fica amordaçado e amarrado a uma árvore.

Parênteses de encerramento: Podemos entender a vitória gaulesa sobre a estratégia de Velhacus como a impossibilidade de que relações capitalistas se estabelecessem naquele momento histórico. Ainda citando O Capital, Marx diz que “só aparece o capital quando o possuidor de meios de produção e de subsistência encontra o trabalhador livre no mercado vendendo sua força de trabalho, e esta única condição histórica determina um período da História da humanidade.” Essas condições não aparecem nem em Roma, em que a força de trabalho é escrava, nem na aldeia, em que os moradores possuem seus próprios meios de produção (ou de subsistência através da caça e da coleta). Voltando ao exemplo cubano, a ilha governada por Fidel apresenta as duas condições. Força de trabalho assalariada e meios de produção controlados pelo Estado e não pelos trabalhadores.
Mas é claro que os geniais criadores de Asterix não pretendiam qualquer exatidão histórica. O domínio do formato satírico lhes deu liberdade para fazer a crítica de aspectos da atual sociedade capitalista em plena antiguidade romana. E o fizeram de forma magistral através de um material bonito, divertido e fácil de assimilar. Que tal usá-lo em cursos de formação?


1 Segundo o dicionário Houaiss, menir é um monumento megalítico do período neolítico, geralmente de forma alongada, altura variável (até cerca de 11 m) e fixado verticalmente no solo. Podia servir de marco astronômico. Também pode representar o totem ou outros espíritos, freqüentemente apresentando traços figurativos.

2 José Bové é criador de ovelhas e líder da Confederação Camponesa da França. Tornou-se conhecido em 1999 ao liderar a invasão de uma lanchonete McDonald's na França em protesto contra a globalização econômica. No final do mesmo ano, em Seattle, nos Estados Unidos, Bové participou de manifestações contra a Organização Mundial do Comércio (OMC). Participa dos Fóruns Sociais Mundiais.

17 de jan. de 2001

Ken Parker: um caubói politicamente correto


Desculpem pelo título, mas na verdade, Ken Parker não é um caubói. É um scout. Uma espécie de batedor que ia à frente das incursões dos pioneiros norte-americanos pelo oeste longínquo (o farwest). Sua função era encontrar caminhos mais acessíveis e evitar animais selvagens e índios. Aliás, estes dois últimos representavam a mesma coisa para o branco conquistador de 1868, ano em que começam as aventuras de Parker. 

É a partir desta condição que nosso herói coloca seu olhar crítico sobre o mundo ao seu redor. O massacre dos indígenas, o racismo, a construção do mito da democracia americana e até temas como a prostituição, o machismo e a homossexualidade estão presentes. 

Pais italianos, cara ianque

Mas, antes de qualquer coisa, é preciso dizer que Ken Parker é de origem italiana. Não no enredo, obviamente, mas na paternidade. Seus criadores são a imaginação inteligente de Giancarlo Berardi e o traço simples e expressivo de Ivo Milazzo. Foram eles que o trouxeram à luz em 1977 (no Brasil viu a luz apenas em 1978), mas o rebento nasceu com a cara de Robert Redford. A utilização de atores de cinema será um recurso constante e divertido nas aventuras de Parker. David Niven, Lee Van Cleef, Clint Eastwood, Marylin Monroe e até Stan Laurel e Oliver Hardy são algumas das celebridades convidadas especialmente para abrilhantar a série. Além das estrelas cinematográficas, figuras importantes da história norte-americana também dão o ar de sua presença, como o general Lee e o presidente Ulysses Grant.

Como íamos dizendo, Ken Parker é politicamente correto. Lê Walt Wittman, Shakespeare e é chamado de Rifle Comprido pelos índios porque carrega uma velha espingarda Kentucky, cuja recarga é feita pelo cano. Dotada de pontaria certeira, a arma é adequada para caça, evidenciando as pretensões absolutamente pacifistas de seu dono. O que não impede que, vez por outra, ele a utilize para dar uma lição em algum vilão.

No decorrer de suas aventuras, Parker acaba vivendo durante algum tempo em uma tribo indígena, depois de ter sido acometido por uma amnésia passageira que fez o favor de presentear-lhe com alguns dos valores indígenas: honra, solidariedade, amor e respeito à natureza. Recuperada a memória, o personagem volta a viver entre os brancos, mas fica da experiência um grande respeito mútuo. Para dar um exemplo do tratamento dado à questão indígena, o episódio mais interessante é Homicídio em Washington (número 4).

Homicídio em Washington

Nesta aventura, a questão indígena é focalizada com perspectiva crítica através da história de Ely Donehogawa, comissário para assuntos indígenas nomeado pelo presidente Ulysses Grant, em 1870. Donehogawa enfrenta corajosamente a empáfia e o racismo dos brancos. No que é auxiliado por Parker. Em uma passagem, Ken vai até o Parlamento e, diante de toda a má vontade dos parlamentares faz um discurso curto e inflamado, denunciando o palavrório vazio e o desprezo pelos direitos dos índios. Sai da sessão marchando só de meias, já que pouco antes havia tirado os sapatos, muito desconfortáveis para pés acostumados a desbravar as vastidões do Oeste. Logo depois, Donehogawa é morto devido à sua insistência em defender a causa indígena. Parker acaba sendo acusado do assassinato, e sofrerá muito antes de provar sua inocência. Ely Donehogawa realmente existiu. Mas, seu assassínio é uma invenção dos autores. O Comissário morreu em 1895, de morte natural. O respeito pela cultura indígena não se limita a histórias como estas. Nas contra-capas de muitas edições aparecem publicados poemas e cantos dos nativos norte-americanos.

Mas talvez o episódio mais bonito da série seja o intitulado Adah (número 46). É nele que estão presentes a maioria das qualidades que levaram esta história em quadrinhos a ser cultuada pelos amantes do gênero.

Adah: mulher, negra, escrava, prostituta...

A violência contra os negros e contra as mulheres é denunciada através desta história. Mulher negra, nascida no sul dos Estados Unidos antes da emancipação dos escravos, Adah sofre as mazelas da Guerra de Secessão, apaixona-se e casa com Horace, um jovem negro que a rouba e a abandona na miséria. Torna-se prostituta para sobreviver e depois de anos satisfazendo as taras dos senhores brancos sulistas, junta dinheiro suficiente para voltar à cidade em que nasceu, onde planeja reconstruir a vida junto ao irmão. Chega a tempo de presenciar a Ku-Klux-Klan assassiná-lo covardemente. Descobre que entre os assassinos da Klan está um filho de seus antigos senhores. Vai até a casa do ‘patrãozinho’ e mata-o a sangue frio. Mas seu ato coloca a polícia local em seu rastro por todo o país. A partir daí, sua vida é uma constante fuga, até que ela encontra, adivinhem quem? Acertaram. Ken Parker. Nosso herói logo ganha a confiança de Adah, que lhe confessa seus problemas. Parker a conforta, dizendo que seu crime deve ter prescrito juntamente com os delitos cometidos no período final da Guerra Civil. Após uma noite de amor, cujos efeitos reparadores devem ter sido valiosos para ambos, Parker dá cabo dos perseguidores de Adah, sem muitos exageros de violência. Depois, conforme Ken havia previsto, Adah constata que seus crimes já haviam prescrito. Ela parte para uma nova vida, cheia de gratidão pelo homem branco, compreensivo e heróico. Deixou para trás algumas das condições que a oprimiam: a de escrava, prostituta, foragida. Ficou sendo apenas mulher e negra, o que já não é pouco em termos de discriminação. 

Apesar da qualidade ordinária deste meu resumo, acredito que é possível ver como as histórias de Ken Parker têm qualidades perfeitas para agradar um público politicamente correto, ao mesmo tempo em que é desfrutável como só as boas histórias o são. Neste caso, o charme está no aparecimento de Parker apenas no finalzinho da história. Adah é o personagem principal. Adah e a questão negra, com brancos racistas, negros pilantras, mulheres corajosas e violência gerando violência. O herói salva tudo no final porque ninguém é de ferro. É certo que esta história acontece quando a série está mais do que consolidada. Berardi e Milazzo já sabiam que tinham um público fiel o suficiente para retardar a entrada do herói até que quase 4/5 da história já houvessem transcorridos.

Homem atual, problemas atuais

A história de Adah mostra bem os objetivos dos autores. Berardi dizia que queria abordar coisas sérias de maneira simples e atraente. Mas não é só isso. Citemos uma definição do argumentista para seu herói: “Ken Parker é um homem atual, com problemas atuais. Não tem certezas, nem garantias. Vive um dia após o outro com os ideais que construiu, procurando febril, desesperada, corajosa e dolorosamente ser corente.” Ora, as temáticas abordadas na série realmente pertencem muito mais aos dias atuais do que ao velho oeste. Dificilmente, um caubói, muito menos um scout, teria motivos, capacidade, tempo e interesse em defender causas de indígenas, negros, homossexuais e mulheres. 

Portanto, o que interessa para os autores é abordar coisas sérias e atuais. E o mais interessante é que fazem isso usando um dos maiores mitos do imaginário moderno: o bangue-bangue, o cavalheiro solitário, as paisagens do farwest. Claro que ao escolher um tal cenário, os autores estavam procurando apoiar-se na linguagem do cinema. O ritmo das histórias, o aparecimento de atores hollywoodianos, o traço de Milazzo (que, infelizmente não está presente em todos os episódios), cuja a elegância, sutileza e domínio das expressões gestuais são raros. Tudo isso dá à série italiana uma capacidade enorme de atrair aqueles que gostam de grandes fazedores de histórias como John Ford, Sam Peckimpah, Clint Eastwood, Sérgio Leone. Ao mesmo tempo, os autores realmente abordam temas que levam o leitor à reflexão. Com isso, Milazzo e Berardi dão uma grande colaboração para nos fazer compreender o que Will Eisner queria dizer quando definiu os quadrinhos como a arte seqüencial. E, ao mesmo tempo, abrem combate aos preconceitos e discriminações. É claro que não são todos os números da série que apresentam temas tão densos. Alguns deles dão maior espaço para a diversão, seja apelando para situações violentas, seja para contar histórias simples, bonitas e cômicas. 

Humor e metalinguagem

O humor, aliás, é uma constante. Em Homens, Feras e Heróis (número 15), há até um exercício de metalinguagem. Num lugar chamado Saloom de Descanso dos Heróis, Parker encontra seu companheiros de prateleira, Tex, Zagor, Cisco Kid e Lucky Luke, entre outros. Mas também se depara com dois personagens que não poderíamos chamar propriamente de heróis. São os próprios Berardi e Milazzo trajados a caráter.

A série durou até 1982, com 59 números editados. Depois disso, o herói voltou a aparecer intermitentemente, em edições especiais luxuosas, em formato grande. As histórias continuam boas, mas as edições são limitadas e têm preços menos acessíveis. 

No Brasil, a publicação foi suspensa em 1983, com apenas 53 números publicados e retomada em 1990, com mais duas edições. No ano passado, a editora Mythos, numa iniciativa digna de todos os elogios, publicou uma mini-série em três partes, no tradicional formato pequeno, com preço baixo. Anunciou que vai reeditar toda a série desde o início. O que seria maravilhoso. Quem sabe Rifle Comprido ainda consiga capturar alguns milhares de leitores jovens e os desperte para problemas importantes e que, infelizmente, vão continuar atuais por muito tempo.

Na rede, o material mais completo está no sítio da UBC (http://www.ubcfumetti.com), com biografias dos autores, resumos dos episódios, reprodução das capas, curiosidades etc. O problema é que está em italiano. Mas com um pouco de boa vontade, qualquer amante dos fumetti pode aprender mais sobre este caubói politicamente correto.