Comparar Obelix e Companhia, de Goscinny e Uderzo, às obras de Marx, Engels, Lênin, Rosa, Trotski, Gramsci, não tem nenhum sentido. Mas, essa pequena obra-prima em quadrinhos merece a atenção de quem luta contra o capitalismo.
“Estamos no ano 50 antes de Cristo. Toda a Gália foi ocupada pelos romanos... Toda? Não! Uma aldeia povoada por irredutíveis gauleses ainda resiste ao invasor. E a vida não é nada fácil para as guarnições de legionários romanos nos campos fortificados de Babaorum, Aquarium, Laudanum, e Petibonum...”.
A apresentação acima
acompanha todos os álbuns de Asterix, personagem do italiano Albert
Uderzo e do francês René Goscinny. A série de 31 álbuns é um dos
exemplos do que há de melhor na literatura em quadrinhos.
O que a introdução não
explica é que os “irredutíveis” gauleses devem sua
invencibilidade a uma poção mágica. A bebida dá aos aldeões uma
enorme força física e seus efeitos duram o suficiente para destruir
qualquer tentativa romana de conquistar a aldeia. Esta, na verdade,
simboliza o nacionalismo francês.
Cada álbum da dupla é uma
obra-prima feita de belos traços e cores, humor, roteiro, ironia,
conhecimento histórico e muita inteligência. Mas um deles é tudo
isso e ainda pode ser usado para mostrar como as relações
capitalistas podem corroer laços comunitários de convivência.
Trata-se de Obelix e
Companhia.
A história começa com a
imagem da fortificação de Babaorum, a mais próxima da aldeia
gaulesa (Prancha 1-A). As legiões romanas, famosas por sua
disciplina e dedicação, estão entregues à mais terrível
indisciplina e ao mais completo ócio. Só esperam a chegada das
legiões que ficarão em seu lugar. As razões? A desmoralização
diante das sucessivas surras tomadas dos gauleses.
Vou fazer algumas observações
a que chamarei de parênteses.
Os leitores que os acharem desnecessários ou quiserem tirar suas
próprias conclusões, podem seguir o texto principal sem prejuízos
para a compreensão da história.
Enquanto isso, César, em
Roma, está desesperado por uma saída para o impasse diante da
aldeia de Asterix. Convocou senadores e patriarcas para aconselhá-lo
na tarefa. Dentre estes, está Regius Velhacus, recém formado pelo
“reformatório de ensino superior”. Ele propõe a César derrotar
os gauleses por meios não militares. Através da corrupção pelo
ouro. César se interessa.
Mas, um dos presentes
discorda. Diz que o melhor ainda é a boa e velha força bruta. Ao
ouvir isso, César diz a ele: “Sim, Pediculus, eu me lembro! Você
era um jovem tribuno corajoso, audaz, até pensava nos problemas do
povo...Agora, com o ouro dos saques, veja em que você se
transformou!” Depois, dirigindo-se a todos: “Sim! Vejam o que o
ouro, as vilas, as orgias, as comissões na compra de armas fizeram
de vocês! Gordos e decadentes!...” (Prancha 9-A)
César vira-se para Velhacus e
pergunta: “Você acha que pode transformar aqueles gauleses em algo
parecido com isso?”, apontando para os gordos patriarcas. A
resposta: “Pode crer! Eles vão lutar por outra coisa e nunca mais
para defender sua aldeia!” (9-B).
Os primeiros parênteses:
há, nos Estados Unidos, quem defenda um modo mais eficiente de
acabar com o regime cubano do que o embargo econômico. Bastaria
estabelecer as mais amplas relações comerciais com a ilha. O efeito
corrosivo da presença dos produtos capitalistas mais avançados
colocaria por terra um sistema de poder que usa como pretexto a
penúria a que o povo cubano foi condenado pela brutalidade
norte-americana. Esta aventura de Asterix parece dar razão à tese.
Velhacus parte para a Gália.
Por acaso, encontra Obelix na floresta que separa a fortificação
romana da aldeia gaulesa. Como sempre, o grande gaulês carrega um
menir 1
de sua própria fabricação. Velhacus encontra o pretexto para por
seu plano em ação. Compra o menir e pede para entregar mais um na
fortificação romana no dia seguinte. Obelix faz mais um menir e o
leva a Velhacus. Este lhe diz que vai pagar o dobro do que pagara
pelo anterior. Diante do espanto de Obelix, o romano explica as
razões do aumento nos seguintes termos: “... problemas de da
economia, fluxo de oferta e demanda...reversão atípica das
expectativas. Flutuação cambial...é complicado” (13-A).
Javali é o prato preferido na
aldeia e o único item na gordurosa dieta de Obelix. Mas com o
aumento das encomendas de menires, Obelix já não tem tempo para
caçar. Se vê obrigado a oferecer dinheiro a um outro aldeão,
Analgesix, para caçar javalis para ele.
Asterix estranha a intensa
produção de menires e questiona Obelix. Este dá sua explicação
nos termos em que aprendeu a pensar com Velhacus: “...Se a demanda
for igual à quantidade de bens produzidos, divididos pela quantidade
de moeda boa, multiplicada pela quantidade de moeda má que sai de
circulação, os preços cairão” (15-B).
A vida da aldeia começa a
entrar em colapso. Obelix recebe cada vez mais dinheiro de Velhacus.
Passa a contratar gente para ajudá-lo na fabricação de menires. Ao
mesmo tempo, outros aldeões são desviados de suas funções normais
para caçar javalis. Estes são vendidos para quem não tem tempo de
caçar por estar trabalhando para Obelix.
Ao sair para caçar, Asterix
descobre que a floresta está apinhada de caçadores de javalis
devido ao surgimento da troca de javalis por dinheiro.
As relações conjugais também
não vão bem. Uma das mulheres da aldeia se insinua para Obelix, uma
vez que ele comprou todo os belos tecidos do mercador que visita a
aldeia regularmente. Obelix a contrata para fazer-lhe uma roupa. O
marido cobra o almoço. Mas ela se nega a preparar a refeição
porque está costurando para Obelix. “Como não posso contar com
você, preciso arranjar um meio de ganhar dinheiro”, diz ela. (23-B
e 24-A).
Mais parênteses:
o enredo mostra como a forma de troca de mercadorias entre os aldeões
vai se alterando. Antes eram trocas entre produtores diferentes. O
peixeiro comprava do ferreiro, mas este também seria fornecedor do
peixeiro, quando ele precisasse de uma nova balança ou de facas. O
dinheiro está presente, mas seu caráter intermediário é mais
claro. Com a especialização da aldeia na fabricação de menires,
todo o resto começa a girar em sua órbita. Já não circulam
produtos e serviços através do dinheiro, mas dinheiro através de
produtos e serviços. Há uma passagem de O Capital, de Marx que diz:
“... uma mercadoria não se torna dinheiro somente porque todas as
outras nela representam seu valor, mas, ao contrário, todas as
demais nela expressam seus valores, porque ela é dinheiro. Ao se
atingir o resultado final, a fase intermediária desaparece sem
deixar vestígios. (...) Ouro e prata já saem das entranhas da terra
como encarnação direta de todo trabalho humano. Daí a magia do
dinheiro.”
Asterix sente que está em
andamento um plano para desunir a aldeia. Prepara a reação.
Estimula todos os moradores a entrar no negócio dos menires para
concorrer com Obelix. A confusão aumenta. O ferreiro, o peixeiro, o
quitandeiro, todos largam suas tarefas tradicionais para também
fabricar menires. Ao entusiasmo geral pela nova atividade, Asterix
adiciona um aumento de produtividade através do uso da mais avançada
“tecnologia” local: a poção mágica. O resultado são entregas
cada vez maiores ao acampamento romano.
A conseqüência é que César
começa a se desesperar com a quantidade de menires que chega a Roma.
Velhacus o tranqüiliza. Diz que vai estimular a compra de menires,
usando um márquetim todo específico: “As pessoas compram, diz
ele, A – o que é útil, B – o que é confortável, C – o que é
agradável, D – o que causa inveja nos vizinhos. Está no item D o
ponto básico da campanha.” Propõe a massificação. Cita as
qualidades que devem ser ressaltadas: “A – durabilidade, B –
ineditismo e C – outras qualidades que ainda vou descobrir”
(32-A).
A prancha 34-A mostra Velhacus
apresentando a César os produtos que inventou para transformar a
posse de menires em moda: Togas com menires bordados, relógios
solares com ponteiros em forma de menir, jóias com o mesmo motivo e
um estojo “faça você mesmo” com martelo e talhadeira para uso
familiar.
Parênteses:
É uma idéia comum a de que o capitalismo inventa coisas
desnecessárias para serem vendidas. No entanto, esta é uma
discussão complexa. Qual o limite entre o que é estritamente
necessário e o que passa a ser supérfluo? Muito difícil de
determinar. Claro que alimento, vestuário e habitação poderiam ser
considerados o nível mais básico. Mas em regiões muito quentes, a
nudez total seria a regra? Não é o que se verifica. Mesmo entre
indígenas em regiões tropicais, os adereços e acessórios
simbólicos fazem parte da vida social. Não há uma relação direta
entre necessidade e uso. Além disso, hoje já é muito comum ver
tribos inteiras vestidas com roupas urbanas, mesmo que não sejam
necessárias devido ao clima. Aí, já entra o fator da dominação
cultural.
Em O
Capital, ao
discutir quanto deve ser a soma dos meios necessários para manter a
vida normal de um trabalhador, Marx diz que “a soma dos meios de
subsistência deve ser (...) suficiente para manter no nível de vida
normal do trabalhador”. Mas, adverte que um elemento histórico e
moral entra na determinação desse valor. É o caso de indígenas
vestidos com camisas do Flamengo, usando relógios de pulso e
consumindo bebidas e comidas estranhas à sua tradição e,
teoricamente, inadequadas ao ambiente em que vivem.
Mas nem tudo dá certo.
Começam a aparecer contradições. Um fabricante romano de menires
inicia um movimento protecionista. O fabricante, que se chama
Malentendidus, é questionado por César: “Que história é essa?”
O fabricante responde: “Os menires gauleses estão colocando em
risco a sobrevivência da classe empresarial”. César discorda:
“Mas quem fabrica são os escravos”. Malentendidus: “Justamente!
O trabalho duro é o único direito do escravo! Não podemos lhes
tirar esse direito!” (34-B e 35-A).
A situação evolui para ações
concretas. Uma barreira é colocada na entrada de Roma. Numa faixa
está escrito “Menires Gauleses Go Home” (35-B).
Parênteses:
Um momento muito feliz dos autores. Primeiro, antecipam em pelo menos
15 anos (o álbum é de 1976) as contradições entre a globalização
e os interesses de setores nacionais burgueses. Um famoso
representante desses setores é José Bové2,
que é francês e lembra Asterix. Em segundo lugar, os escravos
romanos não poderiam ter direitos, pois eram considerados coisas. Do
ponto de vista formal e real, equivaliam a animais de tração.
Portanto, Goscinny e Uderzo devem estar se referindo aos proletários
atuais. Estes acreditam ter direitos. Mas só os têm do ponto de
vista formal. Do ponto de vista real, seu único grande direito é o
trabalho duro. Basta notar que em tempos de ditadura ou de ataque aos
trabalhadores, direitos como o voto ou o salário-desemprego podem
ser rapidamente suprimidos. Mas o direito a ser explorado continua
valendo, nem que seja de modo informal e precário.
As táticas consumistas de
Velhacus perdem fôlego. Menires começam encalhar nos estoques e a
ser vendidos em liquidação. “Em cada compra de um escravo, dois
menires de graça”, diz um anúncio talhado em mármore (37-A).
César pega Velhacus pelos
colarinhos, chacoalha e diz: “Foi por sua causa que quase abri
falência e quase entramos em guerra civil! Nem mesmo Brutus me
prejudicou tanto!” (37-B). Despacha o marqueteiro para a Gália
para resolver o problema. Lá chegando, Velhacus simplesmente
suspende a compra de menires.
Ao descobrir que os romanos já
não querem comprar mais menires, os gauleses começam a se
desentender. Uns acusando os outros de concorrência desleal. Mas
Asterix lhes faz notar que os verdadeiros culpados são os romanos.
Convida-os a acertar tudo com eles. A prancha 43-A mostra Os gauleses
entrando numa coluna arrasadora pela fortificação de Babaorum,
destruindo tudo e colocando os romanos em fuga. Inclusive, Velhacus.
A
cena final é aquela que fecha todas as aventuras de Asterix. Um
grande banquete, com muito vinho, os inevitáveis javalis e muita
diversão. Só não há música porque o único bardo da aldeia tem
uma voz horrível. Durante os banquetes, fica amordaçado e amarrado
a uma árvore.
Parênteses de
encerramento:
Podemos entender a vitória gaulesa sobre a estratégia de Velhacus
como a impossibilidade de que relações capitalistas se
estabelecessem naquele momento histórico. Ainda citando O Capital,
Marx diz que “só aparece o capital quando o possuidor de meios de
produção e de subsistência encontra o trabalhador livre no mercado
vendendo sua força de trabalho, e esta única condição histórica
determina um período da História da humanidade.” Essas condições
não aparecem nem em Roma, em que a força de trabalho é escrava,
nem na aldeia, em que os moradores possuem seus próprios meios de
produção (ou de subsistência através da caça e da coleta).
Voltando ao exemplo cubano, a ilha governada por Fidel apresenta as
duas condições. Força de trabalho assalariada e meios de produção
controlados pelo Estado e não pelos trabalhadores.
Mas é claro que os geniais
criadores de Asterix não pretendiam qualquer exatidão histórica. O
domínio do formato satírico lhes deu liberdade para fazer a crítica
de aspectos da atual sociedade capitalista em plena antiguidade
romana. E o fizeram de forma magistral através de um material
bonito, divertido e fácil de assimilar. Que tal usá-lo em cursos de
formação?
1
Segundo o dicionário
Houaiss, menir é um monumento megalítico do período neolítico,
geralmente de forma alongada, altura variável (até cerca de 11 m)
e fixado verticalmente no solo. Podia servir de marco astronômico.
Também pode representar o totem ou outros espíritos,
freqüentemente apresentando traços figurativos.
2
José Bové é criador de ovelhas e líder da Confederação
Camponesa da França. Tornou-se conhecido em 1999 ao liderar a
invasão de uma lanchonete McDonald's na França em protesto contra
a globalização econômica. No final do mesmo ano, em Seattle, nos
Estados Unidos, Bové participou de manifestações contra a
Organização Mundial do Comércio (OMC). Participa dos Fóruns
Sociais Mundiais.
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