7 de nov. de 2008

Dois filmes diferentes e iguais sobre a cegueira

"Ensaio sobre a cegueira" e "Nevoeiro" falam sobre a cegueira que ataca as pessoas na ausência de regras sociais. O primeiro é otimista, o segundo, não. Mas, sob a lógica do cinema para multidões, ambos acabam fazendo o jogo pessimista que interessa a quem manda.

São dois filmes diferentes. Mas também parecidos. "Ensaio sobre a cegueira", de Fernando Meirelles, adapta a obra de José Saramago. É filme para o Oscar e agrada aos mais exigentes amantes do cinema. O outro é "Nevoeiro", de Frank Darabont, baseado em livro de Stephen King. É quase um filme B, não deve receber indicação para o Oscar e ficará longe dos cinemas de arte.

Ambos mostram a convivência humana em situações-limite. No filme baseado em Saramago, uma epidemia de cegueira ataca a sociedade. A confusão se instala. Não há mais regras, leis, moral, governo. Os primeiros atingidos pela epidemia são isolados em uma espécie de asilo. Lá são deixados por sua conta e risco. O caos se instala. Preconceitos e neuroses explodem. Alguns usam de força física para se beneficiar. Comportam-se como criminosos. As mulheres chegam a ser usadas como moeda em troca de comida.

O mesmo pode ser dito da produção de Darabont. No filme, um denso nevoeiro se espalha por uma pequena cidade americana. Em meio à névoa estão criaturas terríveis, que devoram pessoas em poucos segundos. Um grupo fica preso em supermercado. Porém, há tanto perigo dentro como fora do lugar. As pessoas se desentendem. Suas vaidades e discordâncias vêm à tona. Uma religiosa fanática diz que se trata do apocalipse. Exige que alguns dentre eles sejam sacrificados, pois fazem parte dos pecadores que provocaram a maldição.

Claro que os dois filmes trazem "mensagens" diferentes. Saramago diz que seu livro queria mostrar que o ser humano é um animal doente. Mas sua obra e seus posicionamentos políticos mostram que ele acredita numa cura, ainda que não seja garantida. Já o terror de King parece dizer que a doença é incurável. O modo como os dois filmes terminam deixa transparecer essa diferença de pontos de vista. O final do filme de Meirelles é otimista, o desfecho do outro, não.

No entanto, essa interpretação diferenciada pode não ser consenso. Ao contrário, a leitura pessimista do filme de Meirelles pode tornar-se majoritária.

Quem conhece os livros de King, sabe que ele não tem preocupações de caráter político e social. Por isso mesmo, quem assistir a "Nevoeiro" tenderá a interpretá-lo de maneira mais fiel em relação à obra do escritor. Tudo indica que filme e livro apontam para as mesmas conclusões.

No caso da obra de Meirelles, a adaptação cinematográfica também é coerente com o livro. O próprio autor aprovou. Mas, para que tal interpretação se confirme seria preciso que os espectadores tivessem lido o romance. A obra de Saramago traz inúmeras reflexões, ironias, pistas sobre o que ele pensa do mundo. Seu alvo é a forma de vida social atual, sob o império do capital e do poder burguês, mesmo que não o diga explicitamente.

O problema é que a grande maioria do público do filme de Meirelles não teve e não terá contato com o livro. O próprio ritmo cinematográfico pode fazer as pessoas pensarem que o ser humano não tem jeito, mesmo. É cruel e egoísta por natureza. Basta uma situação anormal para mostrar isso.

Infelizmente, esse tipo de conclusão faz o jogo daqueles que estão nas posições de comando. Afinal, se os seres humanos deixados à sua própria sorte só sabem guerrear entre si como bestas-feras, melhor manter tudo como está. Com sua ordem, regras e leis injustas. E quanto mais rígidas, melhor.

O fato é que a doença dos seres humanos é o modo como ele se organiza socialmente. Hoje, sob a concorrência selvagem do capitalismo, o que os dois filmes mostram é o mais provável. Treinados para nos tratar como competidores e inimigos em potencial, as situações extremas realmente nos empurram para a crueldade, o egoísmo, a exploração, a violência sobre os mais fracos.

Só que, na verdade, situações extremas já são parte de nosso dia-a-dia. Se quisermos superar a cegueira que reina no mundo, precisaremos quebrar as regras atuais. Negar a lógica egoísta e de competição selvagem do capitalismo. Os valores que realmente importam não nos são ensinados pela ordem que hoje impera. Ao contrário, eles foram sendo fortalecidos na luta contra o capitalismo. São a solidariedade, a justiça, o respeito pela vida e a obrigação de agir contra as injustiças.

Em geral, filmes como "Nevoeiro" querem nos fazer crer que se o mundo é ruim como está, ficaria pior se deixasse de ser como é. Este não seria o caso do filme de Meirelles, se toda a lógica do cinema para grandes públicos não o empurrasse nessa direção. O diretor está de parabéns pela adaptação, mas a mensagem presente no livro não deve sobreviver a sua exibição para milhões de pessoas nas telas. Deve ser por isso que está lá.

Sérgio Domingues