8 de dez. de 2014

Corações e mentes. Do Vietnã ao Iraque

Em 1974, 40 anos atrás, Peter Davis lançava o documentário "Corações e Mentes", sobre a guerra do Vietnã. A obra do cineasta estadunidense marcou época ao denunciar o engajamento americano no conflito como um erro. Como diz um dos entrevistados, ex-assessor de Bob Kennedy, “Nós não estamos do lado errado. Nós somos o lado errado”.

Logo no início da produção, surgem as imagens do presidente Lyndon Jonhson fazendo um discurso. No pequeno trecho destacado, ele afirma que uma vitória americana no Vietnã dependeria do coração e da mente do povo daquele país. Mas o filme de Davis mostra que o destino do conflito também envolvia os corações e mentes do povo estadunidense.

Davis utiliza um vasto material audiovisual de maneira muito inteligente. É o caso das imagens mostrando soldados americanos circulando por entre a população vietnamita em Saigon. De um lado, homens altos, robustos, envergando fardas novas. De outro, nativos baixos, muito magros, com a pele queimada pelo sol e vestindo roupas humildes.

Na zona rural, este contraste é ainda maior e mais violento. Aldeias inteiras são bombardeadas por aviões. No solo, soldados americanos brutalizam homens e mulheres, crianças e idosos acusando-os de serem cúmplices do inimigo. Sob o olhar desesperado dos aldeões, os militares ianques colocam fogo na palha que cobre o teto de suas casas.

Foi “Corações e Mentes” que popularizou as imagens que mostram uma menina correndo vietnamita sem roupas, queimadas juntamente com sua pele por napalm. Ou o tiro disparado à queima roupa na cabeça de um vietnamita, com as mãos algemadas, na rua e em plena luz do dia.

Outro recurso utilizado por Davis foi a discrepância entre imagens mostrando cerimônias e eventos patrióticos americanos e as cenas terríveis de uma guerra travada contra um povo militarmente muito mais fraco. É o orgulho nacional tornando-se arrogância imperialista. O espalhafatoso orgulho cívico é igualmente confrontado com imagens de grandes manifestações em meio aos monumentos de Washington.

Mas há também curiosos contrastes entre momentos diferentes de um mesmo depoimento. Isso acontece quando veteranos falam sobre suas expectativas e experiências em campo de batalha. No início de seus testemunhos, estes homens falam do orgulho de servir seu país, da nobreza da causa, da expectativa de grandes feitos militares e da eficácia técnica de seus modernos armamentos.

Os depoimentos estão divididos em trechos distribuídos ao longo do filme. Aos poucos, eles vão se tornando amargurados e perdem a aparente convicção inicial. E à medida que isso acontece, a câmera deixa de enquadrar apenas os rostos dos entrevistados para mostrar seus corpos mutilados pela guerra. Alguns deles participam de manifestações e eventos pela retirada das tropas americanas do território vietnamita.

Ainda como parte desse jogo de contrastes extremos, é muito citada a sequência que compara o depoimento de um general americano às cenas de um funeral coletivo no Vietnã. O alto oficial ianque afirma: “Os orientais não dão o mesmo valor à vida humana que os ocidentais. A morte não é nada para eles”. Ao mesmo tempo, são mostradas imagens de uma senhora desesperada que tenta se atirar à cova de um parente e de uma criança chorando dolorosamente a perda de alguém de sua família.

O filme foi lançado já em meio à retirada total das tropas ianques de território vietnamita, após serem derrotadas vergonhosamente. Os protestos populares contra a participação americana no conflito começaram em 1960, um ano após o envio das primeiras forças militares. Portanto, o filme já é produto de um clima de profundo mal-estar em relação àquela intervenção militar na Indochina. Mais que isso, o material que exibe é ele próprio grande responsável pela virada da opinião pública estadunidense contra a guerra.

Por outro lado, é muito provável que “Corações e Mentes” tenha colaborado para transformar a traumática derrota americana em uma onda contra-hegemônica que, pela primeira vez, questionou em escala de massa as ações imperialistas estadunidenses pelo mundo.

Um movimento que colocou em xeque também o consenso e os dispositivos de dominação que justificavam e alimentavam aquelas ações. Em especial, o racismo, a ditadura do partido único democrata-republicano, um Estado muito vulnerável às pressões do fundamentalismo judaico-cristão, os monopólios da grande mídia e um enorme aparato estatal de repressão, controle e vigilância.  

Se a Segunda Guerra pode ser considerada o conflito que contou com a maior cobertura fotográfica até então, a Guerra do Vietnã juntou às imagens fixas uma abundante cobertura televisiva.  A transmissão simultânea e em cores das sangrentas consequências que todas as guerras provocam entravam em contradição com a narrativa relativamente limpa e romântica das produções cinematográficas sobre a guerra contra o nazifascismo, por exemplo. Com o agravante de que o poderio bélico muito inferior do inimigo “vietcongue” enfraquecia as tentativas do governo americano de criar uma imagem dos inimigos como orientais fanáticos e cegos pela disciplina comunista.

Este erro a cúpula militar americana não voltaria a cometer na Guerra do Golfo de 90/91, por exemplo. A cobertura jornalística passou a ser cada vez mais controlada diretamente pelo Pentágono. Para isso conta com o auxílio entusiasmado da mídia empresarial, que exerce autocensura ou veta reportagens de seus próprios repórteres.

Esta blindagem contra a divulgação dos crimes de guerra cometidos pelas tropas estadunidenses começou a apresentar algumas rachaduras com a popularização da tecnologia móvel e interligada mundialmente. Imagens digitais feitas por civis, forças anti-imperialistas ou pelos próprios soldados americanos vazam por entre as brechas do bloqueio militar-midiático.

No entanto, a internete, principal canal para a circulação desse tipo de informação, também começa a mostrar limites cada vez mais rígidos. Por um lado, há o uso de seu fluxo de dados pelos serviços de inteligência imperialistas para identificar e perseguir críticos a suas ações. Por outro lado, a natureza crescentemente fragmentária e fragmentada da rede mundial dificulta a divulgação das denúncias para muito além dos círculos de esquerda.

Como há 40 anos, a questão decisiva continua a ser a criação de uma ampla reação contra-hegemônica. Continua a envolver a disputa por corações e mentes.

14 de set. de 2014

A grande família brasileira ainda não está nas telas

Fevereiro de 2007

O seriado da Globo virou filme de sucesso. Na TV ou no cinema, é o que mais se aproxima da vida cotidiana dos pobres no Brasil. Mesmo assim, está longe dela. Por outro lado, surgem experimentos para mostrar a pobreza de modo mais realista. É preciso ficar de olho nisso.

“A grande família” é um filme de Mauricio Farias baseado na série da TV Globo que tem o mesmo nome. Esta, por sua vez, é uma reedição da série exibida nos anos 70 pela própria Globo e que teve grande audiência. Mais precisamente entre 1972 e 1975, quando a ditadura militar estava no auge da repressão no País. Na época, o responsável pelo roteiro dos episódios era diretor de teatro, Oduvaldo Vianna Filho. Vianinha já havia sido do PCB e aproveitou o seriado para dar umas cutucadas no governo dos generais. Afinal, era um tanto subversivo mostrar uma família às voltas com dificuldades financeiras, um cunhado desempregado e, Tuco, um filho adepto da cultura alternativa quando o discurso oficial falava em “milagre econômico” e valorizava a vida em família contra cabeludos adeptos de relações mais igualitárias e livres entre homens e mulheres. Havia até o personagem Júnior, que era abertamente politizado e contestador e, por isso, sempre foi alvo de restrições por parte da censura.

A volta da série adaptada para o século 21, obviamente, perdeu esse potencial contestador. Ao contrário, apesar das excelentes e engraçadas tramas, o tom é conformista e conservador. Lineu, o chefe da família, continua a sustentar o restante dos membros com seu magro salário de funcionário público. Uma situação que só piora pelo fato de ele se negar a ceder às pequenas corrupções que fariam parte da rotina da repartição. Mas sua persistência na honestidade sugere corrupção generalizada nos serviços públicos, o que nem de longe é verdade. Tuco era um defensor do comportamento alternativo na série dos anos 70. Na atual, é apenas um desempregado de quase 30 anos sem qualquer perspectiva a não ser comer, dormir e assistir TV o dia inteiro. E Júnior, claro, não existe em tempos de pensamento único.

No entanto, o sucesso da série continua e as razões podem ser muitas. O talento do elenco, dos roteiristas e da direção certamente pesa. Mas, talvez, a proximidade da vida cotidiana dos mais pobres também seja importante. Aliás, a cenografia e a produção da série e do filme são caprichadas. A casa, o bairro, a paisagem, as roupas e até os automóveis são típicos de um bairro pobre de nossas grandes cidades.

Por outro lado, a produção está longe de representar a vida da grande maioria das famílias brasileiras. Para usar um indicador de considerável luxo, Lineu tem um automóvel usado. O problema é que o número de lares brasileiros permanentes cujos moradores possuem um automóvel não chega a 33%. Outro elemento que distancia a “Grande Família” das famílias brasileiras em geral é a ausência de personagens negros, numa população com, pelo menos, sua metade formada por não brancos. De qualquer maneira, o programa de TV parece ser o que mais se aproxima da realidade da maioria. Afinal, a série não tem nem mesmo personagens ricos, como é regra nas outras produções nacionais.

Uma ironia é que o filme seja campeão de bilheteria, mas deve ser visto por pouca gente que realmente vive as situações mostradas por seus personagens. É verdade que em duas semanas de exibição ultrapassou 1 milhão de pagantes. No entanto, é uma marca bastante distante dos mais de 35 milhões e meio de pessoas que acompanham diariamente a novela “Páginas da Vida”, por exemplo. Nenhum mistério. Se são mais de 91% de residências brasileiras com um aparelho de televisão, apenas 8% dos municípios contam com uma sala de cinema.

Ao mesmo tempo, a televisão brasileira vem fazendo experimentos para chegar a uma realidade mais próxima da maioria. É o caso de “Cidade dos Homens”, “Antônia”, “Central da Periferia” e da novela “Vidas opostas” (sobre esta última, clique aqui e leia ótimo artigo de Marcela Figueiredo na página do Núcleo Piratininga de Comunicação). São produtos de boa qualidade e que abrem portas para artistas negros. Mas a lógica é a mesma. Recortar a realidade segundo os padrões dominantes. É a trama de amor, a luta pelo sucesso e o caminho individual para longe da pobreza, do crime, da marginalidade.

É preciso ficar de olho nesses movimentos dos monopólios de comunicação. A “Grande família” está a meio caminho entre a novela que retrata o dia-a-dia de cerca de 2% da população brasileira e as tentativas de mostrar o cotidiano da grande maioria, negra, pobre, explorada e oprimida. Os personagens da série e do filme mostram o drama daqueles que estão cada vez mais longe do Leblon, Morumbi e outros bairros ricos do País e mais perto dos morros e das periferias. Faz parte de um processo de empobrecimento da classe média que já tem mais de 20 anos. Mais gente escorrega para níveis precários de sobrevivência, enquanto somente uns poucos sobem para níveis extremos de luxo e riqueza.

Falar para a maioria da população sempre foi um trunfo que a Globo e outras emissoras usaram para impor modelos de vida e comportamento muito distantes de sua vida real. Agora, as empresas de comunicação parecem querer falar para os mais pobres sobre seus próprios problemas. Não para incentivá-los a buscar soluções autônomas e coletivas. Querem é manter o individualismo, o consumismo e outros modelos de comportamento que interessam aos poderosos. Talvez, pressintam a necessidade de falar para os pobres antes que eles fiquem definitivamente surdos a apelos de uma “paz e ordem” que não lhes garante tranqüilidade e perspectivas de uma vida melhor.


No final do filme, Lineu escapa por pouco de ser atropelado por um trem. Na vida real, o trem já atropelou muitos e deve continuar atropelando. A grande mídia quer manter os trilhos limpos para que as próximas vítimas não se assustem. Nem encontrem formas próprias de evitar o desastre.

21 de ago. de 2014

Dona Pecúnia e Madame Hegemonia mandam notícias

Ah, pobres e frágeis membranas da honra. Quem as respeita? Ah, fatalidade. A boa reputação da verdade se foi desde que o dinheiro, este vil dinheiro, passou a ser o único valor.
Esta é uma das frases presentes no mais novo documentário de Jorge Furtado. Ela foi retirada da peça teatral “O mercado de notícias”, de Ben Jonson, que dá nome ao filme. Além da importância do tema de que trata, sua exposição cinematográfica é, como sempre, muito criativa.
 
O filme se propõe a debater a grande imprensa, seu poder e os interesses econômicos e políticos a que serve. Por si só, a seleção de entrevistados seria suficiente para despertar a atenção do público. Entre eles, Mino Carta, Raimundo Pereira, Janio de Freitas, Geneton Moraes e Bob Fernandes. Mas para tornar o filme ainda mais interessante, Furtado intercalou aos depoimentos trechos da peça de Jonson.
 
Há vários aspectos importantes na produção, mas o que mais chama a atenção são as contradições entre a divulgação de notícias e os custos de sua produção. Pois é disto que se trata. A peça de Jonson foi encenada pela primeira vez em 1626. Quase 200 anos antes de entrar em funcionamento a primeira rotativa a permitir a impressão de mais de mil exemplares por hora. Era um equipamento movido pelo vapor. A mesma fonte de energia que impulsionou a Revolução Industrial que lançaria o capitalismo em sua trajetória fulminante como primeiro meio de produção universal.
 
Mas o vapor, o petróleo, a energia elétrica ou nuclear, nenhuma dessas fontes de energia se compara com uma força muito mais poderosa. Na obra de Jonson esta tremenda potência é personificada por uma bela e jovem donzela, vestida em luxuosos trajes dourados. Trata-se de Dona Pecúnia, sempre ladeada por suas damas de companhia, Hipoteca, Norma, Promissória e Taxa. Como se vê, é do dinheiro que se trata. A mercadoria criada com a única função de intermediar a troca das outras mercadorias. Tão inútil em si mesma, quanto imprescindível para a vida regida pelas trocas mercantis.
 
Dona Pecúnia nem sempre foi tão poderosa, ainda que muito cobiçada. Durante séculos, muitos podiam viver sem ela, sem correr risco de morrer ou padecer sofrimentos terríveis. Os servos, camponeses, escravos, proletários ou plebeus em geral raramente colocavam os olhos em Dona Pecúnia durante suas curtas e penosas vidas. Somente sob o capitalismo, a bela donzela começou a ganhar importância inédita e passou a circular generalizadamente por entre a elite e o povo, sem pudor e reservas. E cada vez mais poderosa.
 
É diante deste poder que a obra de Jonson coloca em questão um novo ramo comercial surgido naquele século 17. Precisamente, o mercado de notícias que um dos personagens da peça deseja explorar fazendo uso da herança deixada pelo pai. Trata-se de Pila Jr, que pretende reforçar sua posição no novo mercado casando-se com Dona Pecúnia.
 
Mas a nova mercadoria não se presta facilmente a encomendas. Em um determinado momento, alguém solicita uma notícia na medida de seus interesses. Um dos empregados responde não ser possível comprometer a credibilidade do negócio desta maneira.
 
Corta para uma das afirmações mais contundentes dentre os depoimentos prestados por jornalistas experientes. Janio de Freitas diz que “o jornalismo feito no Brasil é feito por empresas capitalistas interessadas no lucro”. E que é um erro pensar que “um jornal é editado para fazer jornalismo. Na verdade, continua ele, o jornal é editado para publicar publicidade. O jornalismo é o recheio do entorno dos anúncios”. E disse mais. O papel dos jornalistas é subalterno e sua função primordial “é proporcionar a melhor tiragem para obter a venda mais fácil e o melhor preço do espaço publicitário no jornal”.
 
Ora, a afirmação de Freitas não é simplória. É verdade que a imprensa nasce e se desenvolve como uma empreitada em busca de lucros. Mas, tal como diz o personagem da peça de Jonson, ainda em tempos artesanais do jornalismo, a credibilidade é uma das características mais importantes dessa mercadoria específica. Do contrário, seria relativamente simples desmascarar os interesses por trás desta ou daquela empresa de comunicação. Bastaria relacionar sua produção noticiosa com os interesses de seus principais anunciantes, combinando-os com os desdobramentos na esfera política, como o apoio a este ou aquele partido, governo, regime etc. Estaria feito um diagnóstico capaz de mostrar que não se trata de divulgar notícias “objetivas”, “isentas”, “neutras”, mas de preservar interesses alheios aos dos leitores e à divulgação democrática da informação. Dona Pecúnia seria surpreendida em plenas conjunções carnais com os proprietários e controladores da grande mídia.
 
Mas não é assim que funciona. Falta a este cenário uma personagem importante, mas que não aparece na peça de Jonson. Para continuarmos no domínio das alegorias, chamemos esse personagem de Madame Hegemonia, cujas façanhas foram melhor reveladas por outro gênio. Desta vez, não um teatrólogo, mas o pensador comunista italiano Antonio Gramsci, uns 300 anos depois do surgimento da obra do dramaturgo inglês. Se a “maior tiragem” de que fala Freitas é um elemento ao qual deve se subordinar a produção de notícias, é Madame Hegemonia a responsável por assegurar a mais importante das qualidades da fabricação noticiosa: a credibilidade.
 
As receitas de Madame Hegemonia para conseguir a tal credibilidade são muitas, variadas, criativas. Os ingredientes são elementos da realidade, crenças, costumes, hábitos, preconceitos, medos. Muito disso tudo é antigo. O que parece novo, frequentemente é apenas coisa reciclada. A senhora Hegemonia atua há muito tempo, mas, como vimos, só foi descoberta recentemente.
 
No jornalismo da grande imprensa, Madame Hegemonia age por meio das empresas de comunicação, mas Gramsci preferiu chamá-las de Aparelhos Privados de Hegemonia. E é assim mesmo quando elas controlam concessões públicas. A propriedade desses aparelhos não é privada, mas os interesses que defendem, sim.
 
Os patrões e gerentes dessas empresas têm suas próprias receitas para cumprir aquilo que Madame Hegemonia recomenda. Mas todas fazem a combinação daqueles ingredientes citados acima. Eles sabem que não é possível mentir simplesmente. Ou apenas omitir e distorcer. Ou, ainda, dizer tudo com clareza e chamar as coisas por seus nomes. Eles fazem tudo isto, mas em doses e combinações variadas, de modo que pareça tudo muito verossímil. Mais do que isso, de modo que tudo o que divulgam pareça mero produto de uma leitura objetiva dos fatos. Um retrato da realidade.
 
Um bom exemplo é mostrado pelo filme no episódio do quadro de Picasso. Vamos transcrever a explicação do caso a partir do próprio site da produção de Furtado:
Em março de 2004, o jornal Folha de S. Paulo publica na capa de sua edição de domingo (07.03.2004), sob o título “Decoração burocrata”, uma reportagem informando que um valioso “desenho do pintor espanhol” Pablo Picasso “passa os dias debaixo de luzes fluorescentes e em meio à papelada de uma repartição do governo federal”, dividindo sua “moldura com restos de inseto”. Na foto, além da reprodução do supostamente valioso desenho, um retrato do Presidente Lula. O sentido da matéria é claro: os novos ocupantes do governo federal não reconhecem e não sabem lidar com o valor da arte. A notícia do suposto descaso com tão valiosa obra aparece em vários jornais, revistas e sites, no Brasil e no exterior. A observação atenta de alguns leitores logo deixa evidente que se trata de uma “barriga”: o tal desenho de Picasso é, na verdade, de uma reprodução fotográfica, sem nenhum valor. Os jornais são alertados de seu erro, mas nenhum desmente a informação. Em dezembro de 2005, o “Picasso do INSS” está outra vez na capa da Folha de São Paulo (29.12.2005) e também na do Estado de S. Paulo: um incêndio destruiu parte do prédio do INSS mas, para alívio de todos e apesar do descaso dos órgãos públicos, o “valioso” Picasso foi salvo das chamas. Mais uma vez os jornais são alertados por leitores de que se trata de uma reprodução sem valor, mas nada noticiam.(www.omercadodenoticias.com.br)
Como diz o texto acima, a matéria tinha um sentido político. Era uma reportagem pensada para ridicularizar o governo petista, mas de modo discreto e sutil. Usou elementos presentes na realidade, como o quadro, a repartição etc. Supôs o valor do quadro como sendo aquele de uma obra autêntica de Picasso. Não citou o governo Lula, apenas o retrato do presidente ao fundo, na parede da sala em que estava o suposto Picasso. Mentiu sobre seu valor ou, pelo menos, cometeu o erro de não conferir a autenticidade da obra ou dar-se o trabalho de pesquisar para saber se não havia um original em outro lugar. O jornal também fez ouvidos de mercador para os leitores que avisaram sobre o erro. Afinal, poderia dizer o jornal em sua defesa, foi apenas uma matéria, sem maiores pretensões.
 
É verdade. A reportagem não pretendia derrubar um governo. De forma alguma, influenciou diretamente na conquista de votos contrários às candidaturas petistas ou de seus aliados em eleições posteriores. Mas juntou-se a uma série de outros elementos parecidos no sentido de minarem a credibilidade do governo, ao mesmo tempo em que reafirmava seu próprio compromisso com a descrição da realidade. Por outro lado, procurava mostrar que a “alta cultura”, a cultura dos museus e dos palácios, jamais será reconhecida por simplórios que vieram da pobreza e da produção fabril. E que alguém assim não está preparado para governar. Quem é incapaz de saber o valor de coisas como aquela, também é incapaz de administrar outras coisas, como o dinheiro público, o patrimônio público etc. Estes são apenas alguns dos elementos que aparecem diariamente em dezenas de jornais e veículos da grande mídia. Eles vão mantendo e fortalecendo um senso comum conservador, elitista, preconceituoso. Não precisam derrubar um governo, nem mesmo fazer oposição aberta a ele. Basta que reforce o cerco que o mantém domesticado, dócil, inofensivo. É assim que Madame Hegemonia age.
 
Esta má vontade da grande mídia com o governo Lula é destacado por vários entrevistados. Mas talvez, exatamente por isso, o documentário pudesse ter discutido essa outra personagem que não estava na peça de Jonson. A astuciosa Hegemonia. Afinal, muitos dos petistas que estão poder acham que disputam os encantos dela. Que a estão seduzindo pouco a pouco para ficar a seu lado. Mas isso jamais acontecerá enquanto sua outra companheira, Pecúnia, continuar prisioneira de alguns poucos senhores poderosos. No jornalismo da grande imprensa, Dona Pecúnia está sob total controle dos monopólios empresariais da comunicação. Inclusive, com ajuda de polpudas verbas publicitárias oficiais. Enquanto for assim, Madame Hegemonia continuará a piscar os olhos na direção dos petistas e seus aliados, enquanto permanece em fogoso concubinato com nossos inimigos.
 
No enredo da vida real faltam outras figuras alegóricas, como a companheira Democratização da Mídia, a irmã Solidariedade, a camarada Organização, os aliados da Mídia Alternativa e, principalmente, os guerreiros da Consciência de Classe e os combatentes da Contra-Hegemonia. Sem que esses personagens entrem em cena, o jornalismo continuará mandando as notícias que interessam a Dona Pecúnia e Madame Hegemonia.
 

15 de fev. de 2014

O Lobo de Wall Street: um chacal em pele de predador

Na verdade, o Lobo de Wall Street era apenas um chacal ou uma hiena, que se alimentava da volumosa carniça que lhe sobrava. O filme de Scorcese é diversão nos dois sentidos da palavra.

"O Lobo de Wall Street", de Martin Scorcese, é uma adaptação do livro de memórias de Jordan Belfort, corretor de títulos da bolsa norte-americana. Interpretado por Leonardo DiCaprio, logo no início do filme, o protagonista lista as várias drogas que ingere durante todo o dia para manter o ritmo louco do mundo da especulação financeira.

Na cena que mostra Belfort aspirando uma carreira de pó branco, ele avisa: esta é a mais terrível de todas as drogas. Mas não se trata de cocaína. Ele se refere à nota de dinheiro que utilizou como canudo para inalar a substância. “Esta é a mais poderosa das drogas”, diz ele.

E o filme todo é sobre os efeitos dessa substância que circula pelas veias de praticamente todas as sociedades do mundo atual. Que levou a vida social contemporânea a uma dependência, mais do que química, alquímica. Uma alquimia que não transforma apenas chumbo em ouro, mas converte tanto matéria, como espírito em bens monetizados. Em ativos que podem ser negociados nos mais diversos tipos de mercados em que foram transformadas as várias esferas da vida humana.

Ao mesmo tempo em que as drogas servem como estimulante para manter o ritmo frenético que permite a acumulação de riquezas, a riqueza não é um meio se não para si mesmo. Não há objetivos maiores do que o de possuir mansões, carrões, iates e tudo que esteja em conformidade com os padrões impostos pelo mercado de luxo, inclusive as mulheres.

Belfort e seu time de corretores precisam fazer dinheiro aos montes para ingerir doses cavalares de drogas, alimentos e bebidas, vestir as melhores grifes e fazer sexo em tempo integral. Mas, no fundo, fazem tudo isso apenas para voltar a fazer dinheiro. Este último é o seu verdadeiro mestre. Aquele a quem devem obediência e devoção.

Impossível assistir às cenas que mostram as palestras de motivação de Belfort para seus empregados sem lembrar de cultos religiosos. O uso poderoso da palavra, o discurso emocionado, as metáforas arrebatadoras, os gestos de comunhão histérica, os ataques de choro, os urros de fé e as juras de fidelidade às leis nada divinas da selva capitalista.

Muitos criticaram o filme por tornar simpática uma figura asquerosa. Por transformar em cenas cômicas as armadilhas com que Belfort levava pessoas pobres a apostar suas economias em investimentos furados apenas para que ele ganhasse sua polpuda comissão. Mas, creiam, o maior vilão dessa história não aparece no filme de Scorcese.

Do mesmo modo que o pastor ou o padre são apenas intermediários, Belfort é somente parte de uma matilha que apanha os restos deixados por feras muito maiores e mais vorazes. Não foi à toa que Marx resolveu chamar de “O Capital” sua maior obra, ao invés de “Os Capitalistas” ou “A Burguesia”, por exemplo. O capitalismo funciona como um mecanismo social que aliena até mesmo seus maiores beneficiários.

As cada vez mais recorrentes catástrofes ambientais, as seguidas e agudas crises econômicas, as ameaças de crises alimentares e catástrofes biológicas. Tudo isso é produto do que Marx chamou, não gratuitamente, de “anarquia da produção capitalista”. Um mecanismo que se alimenta de uma concorrência que vem se transformando na corrida para o abismo que Walter Benjamim já temia mais de 70 anos atrás.

Nada disso autoriza a isentar de culpa os poderosos controladores dos meios de produção e de circulação da economia mundial. Nem implica dizer que o modo de produção capitalista torne a todos suas vítimas, indistintamente. Estão aí o luxo e a riqueza para uma minoria minúscula e as limitações materiais mais básicas e os constrangimentos morais mais humilhantes para a gigantesca maioria do planeta.

Belfort não apenas tem culpa, como chegou a quebrar a própria legalidade de um sistema feito para promover a rapina mais cruel. Mas os responsáveis por levar a cabo o grande massacre são outros. São poucos e são patrocinadores e apadrinhados dos poderes políticos e institucionais em todos os cantos do planeta.

Basta que lembremos uma pesquisa da ONG britânica Oxfam divulgada em janeiro passado. O estudo revela que o patrimônio das 85 pessoas mais ricas do mundo equivale às posses de metade da população mundial. Este grupo que não chega a uma centena de indivíduos tem um patrimônio de US$ 1,7 trilhão. Valor que equivale aos bens das 3,5 bilhões de pessoas mais pobres do mundo. O relatório também mostra que a riqueza do 1% das pessoas mais ricas do planeta equivale a US$ 110 trilhões. Ou 65 vezes a riqueza total da metade mais pobre da população mundial.

Muito dificilmente essas pessoas seriam levadas a responder por alguma ilegalidade. Não apenas porque o atual aparato jurídico não foi feito para punir os que o puseram para funcionar. Mas, principalmente, por causa da natureza concentradora do Capital. Uma espécie de atração gravitacional poderosa como a dos buracos negros. Um fenômeno que vem confirmando as previsões nada astrológicas de Marx desde que ele estudou as primeiras crises capitalistas. Este pequeno grupo superprivilegiado poderá ser ainda menor, em pouco tempo.

Nessa imensa carnificina, o Lobo de Wall Street era apenas um chacal ou uma hiena, que se alimentava da volumosa carniça que lhe sobrava. O filme de Scorcese é diversão nos dois sentidos da palavra. Feito para entreter e para despistar.

3 de fev. de 2014

Tempos Modernos, de Charles Chaplin

Um olhar humanista que serve aos objetivos da emancipação social

Charles Chaplin criou um personagem que tornou-se ícone da cultura de massa. Apesar disso, como é comum acontecer numa época em que a produção cultural é tanto mais massificada, quanto mais fragmentada, muitas pessoas que juram admiração a Carlitos e seu criador, jamais viram os filmes de Chaplin do começo ao fim. Principalmente os de longa metragem. Por isso o conhecimento que uma parcela mais ampla das pessoas tem da obra do cineasta limita-se às cenas mais cômicas de cada filme. E, às vezes, também às cenas mais emotivas, como o abraço choroso ao menino em O Garoto, e o olhar feliz e ingênuo do vagabundo no final de Luzes da Cidade.

Em Tempo Modernos, a cena mais conhecida é a de Carlitos apertando parafusos no ritmo frenético imposto pela linha de produção até ser arrastado pela esteira e engolido pelo maquinário. O significado mais óbvio do filme aparece nesta cena, em que o homem é tragado pelas entranhas da máquina.

Quem se baseia nesta cena para julgar o filme, pode achar que Tempo Modernos perdeu força em nossa época. Afinal, o método fordista de trabalho já não é predominante e a informatização está tomando conta das fábricas, mantendo relativamente poucos operários e funcionários entre seus quadros profissionais. Mas assim como operários de macacão não são necessariamente os únicos sinônimos adequados para representar os proletários, o objeto do filme de Chaplin não é apenas a tecnologia engolindo o homem. Na verdade este é apenas o lado mais visível do filme. Um aspecto enfatizado pela insistência em representar a obra apenas a partir daquela cena famosa.

Entendo que o que Chaplin aborda aqui é fundamentalmente a alienação do ser humano no mundo. Basta assistir ao filme todo e será possível deslocar seu tema da tecnologia massacrante para a alienação também em outros níveis da vida social. Por exemplo, quando Carlitos sai do manicômio onde foi internado após enlouquecer na linha de produção, encontra uma situação de grande desemprego devido à crise de 29. Fica, então, perambulando pelas ruas.

É quando lhe acontece ver cair uma bandeira de sinalização (obviamente, de cor vermelha) de um caminhão em movimento. Tentando ajudar, pega a bandeira e começa a perseguir o caminhão agitando-a para o motorista. Imediatamente, uma passeata aparece por trás do personagem de modo que Carlitos parece estar à frente da manifestação. Logo a polícia aparece para dispersar o movimento. Na confusão Carlitos vai parar num bueiro de onde é retirado pela polícia, ainda com a comprometedora bandeira na mão.

A prisão é inevitável. Como é inevitável a conclusão de que Chaplin utiliza esta cena para fazer uma sutil crítica aos socialistas. Será que muitos dos que estão envolvidos na contestação ao capitalismo, não estariam também eles agitando uma bandeira de forma ingênua? Não estariam se iludindo ao pensar que sua postura de contestação os livra da alienação?

Mas essa crítica não implica que Chaplin seja um anti-comunista. Ele apenas não é comunista.

Quando perseguido pela paranóia mackhartista, declarou ser um humanista. E como tal, dizia que os comunistas também eram seres humanos. Um avanço para a época. "A mãe de um comunista chora tanto quanto as outras mães, ao receber notícias trágicas sobre seu filho", teria dito.

Se respeitarmos a avaliação do próprio Chaplin sobre sua postura política, veremos que Tempos Modernos é uma expressão bastante coerente de seu humanismo. Afinal, se ele faz a crítica sutil aos socialistas, no restante do filme é o capitalismo que se torna objeto de uma crítica mordaz. Carlitos é jogado de um lado para o outro em todo o decorrer do filme. Na prisão, acaba ingerindo cocaína pensando que é sal (aliás, uma das cenas mais hilariantes da história do cinema). Agora, é a droga que o priva do controle de sua vontade. Mas, o irônico é que sob o efeito da cocaína, o personagem acaba debelando uma rebelião do presídio e ganha uma cela com regalias, como jornais e cafezinho servido pelo carcereiro. A droga o colocou ao lado da paz e da ordem.

A saída da prisão é dolorosa para o vagabundo. Não quer voltar ao mundo sem emprego e cheio de agitações. Mas, de novo é obrigado a fazer o que o sistema manda, mesmo que seja ao retomar sua liberdade.

De volta às ruas, conhece a linda orfã abandonada pelas ruas vivida por Paulette Goddard, mulher de Chaplin na vida real. Apaixonam-se e o amor agora lhe dá novo ânimo. Consegue um emprego de vigia noturno de uma loja de departamento Novamente, o que parecia ser uma ocupação tranqüila transforma-se em uma grande confusão. Primeiro, a loja de departamentos revela-se um grande play-ground. Um lugar para se ir e imaginar-se adquirindo coisas bonitas e luxuosas. Aqui, Chaplin parece querer dizer que quanto menor o poder aquisitivo do indivíduo, maior sua fascinação com esse parque de diversões em que os brinquedos são as mercadorias.

Depois, assaltantes invadem o local e Carlitos é obrigado a tentar impedir. É claro que o vagabundo é dominado, mas acaba descobrindo que um dos assaltantes foi seu colega de trabalho na linha de produção. Bill foi demitido e rouba para viver. A classe operária se reencontra na loja. Um em ocupação precária, recém saído da prisão, o outro entregue ao crime. Mas ambos vítimas das circunstâncias. Carlitos perdeu o emprego na fábrica por ser sensível demais à tecnologia. Seu colega de fábrica era mais resistente ao ritmo de trabalho industrial, mas não teve destino melhor.

Tal como aconteceu com Carlitos, Bill também acabou escorregando para a ilegalidade. Só que o primeiro acabou na prisão sem ter premeditado qualquer ato ilegal, enquanto Bill teria feito uma opção consciente pelo crime. Mas o que interessa aqui não é o nível de consciência. E sim o peso massacrante das circunstâncias.

Nesse sentido, nenhum nível de consciência é suficiente para libertar os seres humanos do grande mecanismo social que os engole e cospe de volta em condições ainda piores.

Desse ponto de vista, o filme poderia ser acusado de ser conformista. Até de ajudar na manutenção do sistema ao mostrar a impossibilidade de transformá-lo ou derrubá-lo.

No entanto, a força do personagem Carlitos está em sua capacidade de mostrar que mesmo no pior dos mundos, a contraditória condição humana mantém os olhos fixos na esperança. É por isso que sempre no final de seus filmes, Chaplin mostra o vagabundo sumindo em direção ao horizonte, após uma pequena sacudidela nos andrajos, como a deixar para trás todos os dissabores e renovar a vontade de viver.

A diferença é que em Tempos Modernos, após consolar sua companheira, Carlitos parte pela última vez. O vagabundo não seria mais utilizado por Chaplin em seus filmes seguintes, num sinal de que os tempos modernos já não teriam lugar para o vagabundo lírico.

Talvez estejam aí explicitados os limites da visão política de Chaplin. O humanismo não consegue avançar para além da denúncia da alienação massacrante da vida moderna. Uma espécie de nostalgia toma lugar de toda outra possibilidade de vida social. O vagabundo era um personagem perfeito para dizer que o estilo de vida burguês não é aceitável, mas ao mesmo tempo tinha apenas um caráter de negação anárquica. Negava sem afirmar uma outra forma de viver. Ficava à margem da vida social, contentando-se com alguns expedientes de sobrevivência, assim como lhe bastava catar algumas bitucas de cigarro.

Por outro lado, é aí que está a genialidade da obra de Chaplin e de seu personagem. Quando critica sutilmente o movimento socialista e fortemente o sistema capitalista, Chaplin está apenas alertando. Mesmo nos limites de seu humanismo, que politicamente pode ser considerado piegas, ele nos diz: cuidado, bandeiras se agitando, gente se manifestando, tudo isso é pouco perto da grande fábrica social, cheia de engrenagens que engolem pessoas todas as horas.

A escolha do vagabundo rico em malandragens que é Carlitos permite a Chaplin evitar que sua obra torne-se uma denúncia simplória das mazelas do homem moderno e diga algo como "nada do que é humano me é estranho". Uma frase que não destoaria da chacoalhada de ombros e do caminhar tranqüilo de Carlitos, na cena final de seus filmes.

É nesse sentido que o humanismo de Chaplin pode ser muito útil aos que pensam a emancipação humana sob o ponto de vista da ação coletiva, organizada e consciente. Dos que pretendem, não apenas denunciar e lamentar a atual sociedade, mas construir uma nova forma de viver a partir das contradições da atual. Chaplin não era um comunista ou socialista, mas sua obra pode fornecer elementos importantes para que socialistas e comunistas incorporem o humanismo com elemento fundamental para qualquer estratégia de transformação social.

Agosto de 1999

29 de jan. de 2014

A comunicação contra-hegemônica contra a ditadura dos algoritmos

Algoritmo é um conjunto de instruções muito precisas para a execução de certas tarefas. Uma receita culinária é bom exemplo desse tipo de operação. E, acreditem, ela foi inventada por Al Khwarizami, um árabe do século 9, considerado um dos criadores da Álgebra.

Até o século 19, os algoritmos eram usados para coisas tão inofensivas quanto assar bolos. Com sua integração à produção capitalista, a coisa mudou. Como vivemos sob a ditadura da circulação das mercadorias, os algoritmos começaram a mandar em nossa vida cotidiana. Primeiro, ao estabelecer rotinas que domesticavam nosso dia-a-dia. Da linha de montagem ao deslocamento pelas grandes cidades. Mas quando foram parar dentro dos computadores e tornaram-se softwares, a receita desandou de vez.

Foi aí que começaram a ter pesada influência em nossas vidas, incluindo formas de pensar, gostos, raciocínios. O Google, por exemplo, pesquisa aquilo que buscamos, mas também sugere respostas que não solicitamos. Nossas compras registradas nas redes bancárias avisam os fornecedores sobre nossas preferências. Logo, passamos a receber ofertas e propagandas que seriam correspondentes a nossos gostos pessoais. Mas, na verdade, induzem a mantermos os mesmos hábitos, preferências, convicções. Logo, reforçam nossos preconceitos e condicionamentos sociais.

Um artigo esclarecedor e assustador sobre o tema é “Abracadabra: os algoritmos estão dominando o mundo”, de Paulo Nogueira, publicado no site Rede Brasil Atual, em 21/07/2013. A leitura é mais do que recomendável por várias razões. Mas uma delas nos afeta diretamente. Trata-se da chegada dos algoritmos à imprensa. Vejam o que diz Nogueira:
“... a Narrative Science é uma empresa que, sem um único jornalista ou repórter, produz noticiários montados a partir de dados recolhidos na internet pelos algoritmos. Na revista Forbes, por exemplo, muitas matérias já são assinadas ‘by Narrative Science’. Kristian Hammond, o criador do treco, prevê: ‘Dentro de 15 anos, 90% dos textos da imprensa serão escritos por computadores’”.
Na verdade, o problema não está apenas nos algoritmos. Está na geração da informação. O processo todo se tornou bastante previsível. As possibilidades da combinação entre criação semântica e gramatical são infinitas. Mas para os níveis de automação e massificação da imprensa atual, um programa de computador mais do que basta. Pudera! A vida humana automatizou-se, padronizou-se, massificou-se. Com a imprensa, não seria diferente.

É nesse momento que entram as manifestações de junho, os black-blocs, as marchas das vadias, as ocupações de terra, os “rolezinhos”, as greves e mobilizações populares em geral. São eventos que estão fora da ordem padronizada e automatizada da sociedade dominada pelo mercado. Eles podem fugir aos algoritmos e negar a ordem que os produz.

O mesmo pode acontecer com os textos e outras produções que descrevem, apoiam e são produto da participação de seus autores nesses eventos. Eles também podem garantir a sobrevivência da comunicação humana como criação, não como metabolismo cibernético. É a comunicação contra-hegemônica contra a ditadura dos algoritmos!