3 de abr. de 2018

As belas e incompletas respostas da Odisséia de Kubrick


O texto abaixo é de junho de 2004. Em 2018, quando se completam os 50 anos da obra-prima de Kubrick, vem a calhar sua republicação, principalmente por seu caráter didático. Uma qualidade que não é do texto em si, uma vez que apenas comenta criticamente o conteúdo oferecido por uma página que apresenta uma das interpretações possíveis para o filme.


Há uma ótima página na internete, que explica o filme de Stanley Kubrick: “2001: uma odisseia no espaço”. O endereço é https://www.kubrick2001.com. Mas é de difícil acesso para quem não tem conexão rápida. Assim, este texto vai resumir seu conteúdo e aproveitar para fazer uns comentários sobre a bela obra de Kubrick.

A página ilustra o filme com animações bem feitas. A primeira parte mostra o alvorecer da humanidade, na África pré-histórica. Cerca de 4 milhões de anos atrás, surge no planeta uma espécie de laje negra fincada em posição vertical no solo. É um monólito. A espécie animal que entra em contato com o estranho objeto é o “Australopithecus Afarensis”, considerado o primata mais próximo do ser humano atual.

O monólito, diz o texto da página, apresenta-se como um desafio aos macacos. Eles o tocam. As características desses animais seriam o medo, curiosidade e a coragem. Estas qualidades e não o monólito é que levariam a espécie a transformar pedaços de ossos em ferramentas. Descoberta que faria a espécie se diferenciar dos outros animais.

Da descoberta da primeira ferramenta, o filme de Kubrick passa diretamente para o ano de 2001, em que as ferramentas, agora, são espaçonaves que viajam pelas estrelas. A espécie também mudou. É o “Homo Sapiens”. Ainda segundo a versão apresentada pelo site, ele é civilizado, racional e científico. Mas está em um novo ambiente: o espaço sideral. Ali, ele perde o controle de suas ferramentas. Na cena que mostra o interior sem gravidade da espaçonave, a caneta flutua, a aeromoça precisa andar com cuidado em seus sapatos magnéticos, a comida sintética parece uma papinha de criança e até a ida ao banheiro necessita de instruções especiais para evitar acidentes desagradáveis. É a volta à infância.

Cientistas, os mais sabidos dos “sapiens”, vão à Lua para verificar a descoberta de um misterioso monólito negro, descoberto por acaso em escavações numa cratera. No momento em que se preparam para tirar uma foto do objeto, este dispara um sinal sonoro em direção a algum lugar nas proximidades de Júpiter.

Novo corte. Agora, uma espaçonave viaja em direção a Júpiter em missão aparentemente rotineira. A espaçonave é administrada pelo computador HAL-9000. Dois tripulantes humanos limitam-se a aguardar a chegada a seu destino, enquanto o resto da equipe está em estado de animação suspensa. Uma espécie de hibernação para suportar a longa viagem.

Velhos macacos inúteis

Hal, diz a apresentação, observa os colegas humanos e lhes dá as seguintes características: são entediantes e entediados. São dependentes de coisas cada vez mais artificiais. Precisam simular uma espécie de morte para viajar. São espécies no final de sua evolução. A ferramenta mais moderna do ser humano, o computador, começa a achar que não precisa mais dos velhos macacos. De repente, Hal alerta para um defeito em uma antena. Uma inspeção revela que não parece haver nada de errado com o mecanismo. Hal insiste no diagnóstico e recomenda sua substituição. Os tripulantes concordam, mas Hal descobre que pretendem desligá-lo, se continuar a apresentar problemas. O computador acredita que está vivo e pretende defender seu direito à vida.

Um dos astronautas sai para substituir a antena. O computador usa um módulo de deslocamento espacial, que está sob seu comando para matar o astronauta. O outro astronauta parte para resgatar o corpo do colega, mas é impedido de retornar à nave. No entanto, o que Hal considera ser um velho macaco usa de criatividade para voltar à nave e desligar o computador. A ferramenta utilizada para fazer isso é a velha e boa chave de fenda. “Uma ferramenta como você, Hal”, diz o texto da página. Pouco antes de desligar o computador, o astronauta descobre que a missão tinha um objetivo secreto. De conhecimento apenas de Hal. Tratava-se de descobrir o destino do sinal emitido pelo monólito a partir da cratera lunar.

O ser humano derrota a ferramenta rebelde, mas com o computador desligado, a nave já não é operacional. O astronauta está sozinho. Vai enfrentar o desconhecido e as forças sobrenaturais que o trouxeram até aqui. A bordo de um módulo espacial, o astronauta faz uma viagem por dimensões espaciais e temporais. Acaba chegando a um quarto de hotel. “O quarto é o palco de Kubrick para o último ato do filme”. Seria a quarta dimensão. Seu desafio final é sua própria morte.

Virando estrela

Envelhecido e curvado, o astronauta se dirige a uma mesa para fazer “a última ceia do homem”. Esbarra num copo que espatifa no chão. “O copo está quebrado, mas o vinho ainda está lá”, diz a apresentação. Já não há recipiente, mas o conteúdo ainda existe. Seria o mesmo em relação ao espírito e ao corpo.

“Entendeu, homem?”, pergunta o texto da página. “Sua evolução dependeu tanto de sua tecnologia que ela quase substituiu você. E no final tentou destruí-lo. E agora? Sem suas ferramentas e com seu corpo quase perecendo? O que restou de você?”. A resposta é que ele está pronto para dar o próximo passo na evolução. Os alienígenas atraíram um exemplar de nossa espécie para levá-lo a uma transição para um estágio superior. A famosa cena final mostra um feto dentro de um útero flutuando no espaço. O ser humano ultrapassa a fase da existência material e da utilização de materiais. Transformou-se em energia. É a criança estrela. Bonito, não? A página vale a visita.

No entanto, também provoca outras reflexões. Afinal, a abertura da apresentação cita uma frase do próprio diretor: “Todos são livres para especular sobre os significados filosóficos e alegóricos de ‘2001’”.

Em primeiro lugar, a teoria da evolução jamais disse que seres humanos são ancestrais diretos dos macacos. No máximo, trata-se de primos de mesma linhagem. A imagem usada pelos evolucionistas não é aquela famosa, em que uma fila começa com um chipanzé e termina com um cidadão branco e de terno. A não ser que coloquemos alguém como George W. Bush no final (ou no início?) da conhecida sequência, não há uma ligação direta entre primatas e seres humanos. A imagem mais fiel é a de uma moita. Em que os ramos crescem para vários lados e não necessariamente para cima. No entanto, podemos tratar a ligação direta feita por Kubrick como um recurso didático e estético admissível.

Ferramenta ou porrete?

Por outro lado, a explicação do site não menciona o fato de que, no filme, a descoberta do uso do osso como ferramenta deu-se mais precisamente como arma. A última sequência da primeira parte do filme mostra um bando de Australopithecus matando um inimigo usando o osso como um porrete. E a reação de Hal, matando um dos tripulantes e ameaçando o outro, dá coerência a essa visão da ferramenta como instrumento de violência. Algo compreensível para a época do filme. No final dos anos 60, havia a guerra do Vietnã e a temperatura da guerra fria estava longe de aumentar, com a ameaça sempre presente de tiroteios atômicos entre Estados Unidos e União Soviética.

Compreensível, mas sujeito a críticas. Essa imagem da diferença entre seres humanos e animais localizada na ferramenta tem pontos de contato com a concepção marxista. Tal concepção entende que o que nos diferencia dos outros habitantes vivos do planeta é o trabalho. Não o trabalho automático de abelhas ou formigas. Mas o trabalho projetado pela mente. É como diz Marx na famosa passagem de “O Capital”. Ele admite que “uma abelha, embora só possua instinto, pode superar em habilidade, vários arquitetos”. No entanto, "o que distingue, à primeira vista, o pior dos arquitetos, da mais hábil das abelhas, é que aquele constrói suas células na cabeça, antes de fazê-lo na colmeia".

O problema é que a imagem da ferramenta parece concentrar a ideia de trabalho apenas em seu aspecto utilitário. Na capacidade de fabricar coisas, e não de projetá-las. Na verdade, uma concepção adequada à forma em que a sociedade atual vive a experiência do trabalho. As pessoas cumprem tarefas que não fazem sentido porque são feitas a partir de determinações de outros e para que outros façam uso dos produtos resultantes. É como o operário que fabrica um automóvel. Não tem voz ativa na projeção e execução do trabalho e muito provavelmente não chegará a consumir o produto final.  Este, por sua vez, foi projetado por um engenheiro, que também não teve autonomia para desenhar o automóvel. Nem mesmo os donos da empresa têm total autonomia. É um mercado cada vez mais monopolizado e sob concorrência selvagem que dá a palavra final. Isso tudo não anula o fato de que o trabalho do operário é mais alienado e aborrecido do que o do engenheiro. E de que os patrões têm um enorme grau de controle sobre suas próprias vidas e a de seus trabalhadores.

Melhor que virar estrela é acabar com os parasitas

A solução para esse dilema no filme de Kubrick aparece com a tradicional receita de Arthur C. Clarke, autor do livro que inspirou o filme. Trata-se de se livrar das coisas materiais. Virar estrela. Para nós, parece mais plausível tornar a atividade humana menos aborrecida. Com cada indivíduo fazendo sua parte sabendo por que o faz. Mas para isso é preciso discutir as condições sociais em que vivemos. Elas não vão mudar apenas com melhorias tecnológicas. Ao contrário, ferramentas sofisticadas sob estruturas sociais injustas somente sofisticam a exploração e a injustiça. Não se trata de virar estrela, mas de afastar as pessoas de atividades perigosas, insalubres, tediosas. Isso seria perfeitamente possível com o atual avanço tecnológico, mas seria preciso acabar com a parasitária função dos capitalistas.

Por fim, uma questão delicada. A transição entre o animal e o ser humano ainda é um ponto complicado para os estudiosos mais sérios. Engels, por exemplo, apresentou algumas respostas em seu famoso texto “Sobre o papel do trabalho na transformação do macaco em homem”, de 1876. Nele, há a seguinte passagem:

Primeiro o trabalho, e depois dele e com ele a palavra articulada, foram os dois estímulos principais sob cuja influência o cérebro do macaco foi-se transformando gradualmente em cérebro humano - que, apesar de toda sua semelhança, supera-o consideravelmente em tamanho e em perfeição. E à medida que se desenvolvia o cérebro, desenvolviam-se também seus instrumentos mais imediatos: os órgãos dos sentidos. Da mesma maneira que o desenvolvimento gradual da linguagem está necessariamente acompanhado do correspondente aperfeiçoamento do órgão do ouvido, assim também o desenvolvimento geral do cérebro está ligado ao aperfeiçoamento de todos os órgãos dos sentidos.

Como se vê, Engels introduz a importante questão da linguagem. Da comunicação, da simbologia. Mas como um determinado animal passou a falar simbolicamente, além de simplesmente emitir um repertório limitado de sons, movimentos e cheiros? É possível estabelecer uma ligação direta entre o “desenvolvimento gradual da linguagem” e o “aperfeiçoamento de todos os órgãos dos sentidos?”.

Estas são apenas algumas das questões que provocam e vão provocar ainda muita controvérsia. Mas respostas bonitas como as que ensaiou Kubrick nos ajudam a, pelo menos, fazer as perguntas.