23 de nov. de 2013

A fábrica de chocolate e o teatro de resistência

“Fábrica de Chocolate” mostra um fato corriqueiro durante a ditadura militar, nos anos 70. Um preso político morre em uma sessão de tortura em uma delegacia. Seus carrascos montam uma cena para tentar mostrar que se tratou de suicídio. A vítima é um operário de uma fábrica de chocolate. Seu crime, a organização da luta dos trabalhadores por melhores salários e condições de trabalho.

Dirigida por Luiz Furlanetto, o texto foi escrito por Mário Prata logo após a morte de Vladmir Herzog, em 1975. O jornalista militante do Partido Comunista morreu num quartel do Exército, em São Paulo após ser torturado. Os responsáveis alegavam suicídio, apesar dos evidentes sinais de espancamentos.

O cenário da peça é uma sala mal iluminada e cheia de instrumentos e substâncias usados nas sessões de torturas. Os métodos cruéis e a frieza dos carrascos são ainda mais assustadores porque não se pode dizer que ficaram no passado. A morte do pedreiro Amarildo por policiais militares foi apenas mais uma de uma série que nunca foi suspensa. Só deixou de vitimar militantes de partidos políticos de esquerda.

A peça esteve em cartaz até o início de novembro na Casa de Cultura Laura Alvim, Rio de Janeiro. A trama é pesada, mas deveria ser reproduzida em escolas, universidades, associações de bairros, sindicatos. A força da atuação do excelente elenco e a atualidade dos crimes de que trata certamente tocariam o público. Despertariam um importante debate sobre a necessidade de fortalecer a resistência popular contra a covarde repressão do Estado.

Por outro lado, já passou a hora de voltarmos a apostar no teatro alternativo de resistência. O movimento popular e sindical e a militância política combativa precisariam retomar esse importante instrumento em suas lutas. Diante da ditadura da grande mídia, atividades artísticas organizadas nas próprias comunidades e locais de trabalho seria fundamental na luta contra-hegemônica por justiça social e liberdade.

7 de nov. de 2013

Grande imprensa vandaliza a notícia

O vandalismo não sai das páginas dos grandes jornais. Mas não se trata das justas reações populares à violência policial. O vandalismo em questão tem como vítima fatal as notícias sobre as atuais manifestações populares.

Há muitas décadas, sabemos que não existe uma única e absoluta verdade em jornalismo. Não há fatos imunes a interpretações interessadas. Até os chefões da grande imprensa são incapazes de negar isso. Mas não abrem mão de apresentar apenas a sua versão dos fatos. Vejamos alguns exemplos desse jornalismo poderoso, mas rasteiro.

“’Quem roubou não era amigo do Douglas, era bandido’, diz pai de jovem morto por PM”. Este é o título de entrevista feita por Felipe Souza com José Rodrigues, pai de Douglas Rodrigues, jovem morto pela PM na periferia de São Paulo. Foi publicada pela Folha de S. Paulo, em 30/10/2013.

A frase do entrevistado refere-se a atos como caminhões e ônibus incendiados, motoristas roubados e lojas saqueadas durante manifestações contra a morte de seu filho. Até aí, tudo bem. O pai do garoto realmente mostrou total desacordo em relação ao que aconteceu.

Mas José Rodrigues também fez outras observações muito importantes. Por exemplo:

Aqui na rua colocaram fogo em pneus e por aqui ficou. E policiais dando tiro, bombas de gás lacrimogêneo. Estourou uma perto de mim que eu não conseguia nem respirar. Tem colega todo marcado [de bala de borracha].

Esta informação poderia ter inspirado o título da entrevista, por exemplo. Afinal, não satisfeitos em matar um jovem, os policiais ainda reprimiram manifestações de protesto contra o crime.

No final do depoimento, perguntado se seu filho teria sofrido o mesmo fosse morador de bairro nobre, Rodrigues foi taxativo: “Com certeza não. O policial ia pensar duas vezes antes de atirar”.

Esta última frase também seria muito mais relevante para figurar como título da entrevista. Mas a escolha editorial preferiu juntar as palavras “bandido” e “roubo” à realização de manifestações.

Outro exemplo vem de O Estado de São Paulo. Em 14/07, o jornal estampou a manchete “Manifestantes queimam mais de 300 carros em protestos na França”. Na França, queimar automóveis é coisa de “manifestantes”. Aqui, atos muito semelhantes são obra de vândalos, criminosos, bandidos etc. E, como ficou convencionado, vândalos, criminosos, bandidos, devem ser tratados na base do cassetete e do tiro.

Enquanto isso, os grandes jornais reclamam em coro: seus profissionais também estão sendo vítimas da violência dos vândalos! Mas esta não chega a ser nem meia verdade. É o que mostrou matéria do site “Comunique-se” em 29/10: “Polícia é responsável por 75% das agressões a jornalistas, revela levantamento da Abraji [Associação Brasileia de Jornalismo Investigativo]”. Um quarto da verdade torna-se a verdade inteira quando interessa à grande imprensa.

Por fim, o Globo publicou, em 30/10, o editorial “Vandalismo, democracia e fascismo”. Deu uma verdadeira lição de distorção conservadora em favor dos interesses mais poderosos do País.

O texto começa dizendo que houve “queda no apoio às manifestações” devido à ação dos black blocs. Realmente, pesquisa Datafolha teria mostrado uma diminuição de 89% para 66% desde junho na aprovação popular aos protestos. Mas a interpretação dos números deveria ser bem diferente. Apesar de todo o bombardeio da grande imprensa contra a resistência dos manifestantes à violência policial, pelo menos 2/3 dos entrevistados continuam a apoiá-los.

O editorial cobra firme combate do Estado às ações de “vandalismo”. Toma o cuidado de alertar para que se procure manter um “baixo grau de letalidade”. Mas como vidraças, lixeiras, ônibus e viaturas não podem ser ameaçados, a ocorrência de mortes é considerada um “risco que está presente”.

“Entre as imagens que ficarão destes tempos”, diz o texto, estaria a foto do coronel da PM paulista “sendo espancado por black blocs”. Ou seja, as centenas de imagens de manifestantes sendo linchados por hordas de policiais permanecerão nas redes virtuais, distantes da enorme audiência desconectada.

O Globo manifesta espanto diante do apoio de “professores sindicalistas” aos black blocs. Como se a decisão tivesse sido aprovada por uma dúzia de lideranças e não por milhares de grevistas, testemunhas e principais vítimas da violência policial nas manifestações. O espanto que a decisão causou no Globo é mais uma medalha que os professores ganharam em sua luta por dignidade.

Por fim, o texto chama de fascismo a “prática de perseguir e agredir fisicamente” aqueles que são considerados inimigos. A descrição serve para as ações da polícia, não para o comportamento de suas vítimas. E o editorial do Globo se revela como a crônica que justifica o caráter fascista de toda essa violência.

É famosa a frase atribuída ao senador americano Hiram Johnson: “numa guerra, a primeira vítima é a verdade”. Não estamos em guerra. Só há um lado atirando para matar e é o braço armado do Estado. Mas a verdade já sucumbiu nas páginas dos grandes jornais.

26 de out. de 2013

Gravidade e Terra Firme: a humanidade entre a grandeza e a mesquinharia

Dois filmes de gêneros muito diferentes estrearam este mês. Em um, a pouca gravidade coloca seus personagens à deriva no espaço sideral. No outro, o peso de uma globalização racista e excludente arrasta milhares de pessoas para o abismo da intolerância, todos os anos.

“Gravidade” é um filme de Alfonso Cuarón com Sandra Bullock e George Clooney. A bela produção tem efeitos especiais que aproveitam a tecnologia 3D de forma madura. Mas ganha interesse ainda maior se comparada a outro grande filme.

Em "Terra Firme", Emanuele Crialese mostra uma comunidade tradicional da Sicília. O modo de vida baseado na pesca está em rápida extinção. Vai dando lugar à indústria do turismo.  Complicando as duas atividades, uma legislação que proíbe acolher imigrantes clandestinos vindos, principalmente, da África.

No filme de Cuarón, a astronauta quase aceita a própria morte, vencida pela tristeza de ter perdido sua filha de quatro anos de idade. Na produção de Crialese, a refugiada etíope teima em continuar sua busca pelo marido, apesar de toda a violência que sofreu e de um estupro que a engravidou de um carcereiro.

Em “Terra Firme”, a refugiada leva dois anos para atravessar três países africanos e chegar ao Mediterrâneo, para fazer uma travessia que mata centenas de seus irmãos de cor por mês. Em “Gravidade”, a astronauta luta por sua sobrevivência saindo de um ônibus espacial americano, abordando uma espaçonave russa e usando uma cápsula chinesa. Tudo em questão de horas.

Em “Gravidade”, o naufrágio acaba em vitória da determinação da mulher, que enfrenta frio, fogo e água, para tornar a contemplar o belo planeta que a recebeu de volta. Em “Terra Firme”, a mulher com seus filhos pequenos precisa se esconder daqueles que seriam seus irmãos de espécie. Contemplar não combina com se ocultar.

No espaço sideral, os pedidos de socorro não são ouvidos por Houston devido a problemas técnicos. No mar mediterrâneo, os gritos dos náufragos devem ser ignorados pelos que poderiam recolhê-los porque a lei não permite seu salvamento.

Os protagonistas de “Gravidade” sentem orgulho de pertencer a uma espécie capaz de olhar seu planeta, sem enxergar outras divisões que não as marcadas por rios, florestas, desertos, mares. Em “Terra Firme”, alguns metros separam impiedosamente alguns poucos que podem viajar e se divertir e muitos outros a quem não é permitido abandonar a terra que os castiga com fome e guerras.

As duas belas obras de cinema são contrastantes não só em sua temática e elaboração estética. Mostram como uma mesma espécie pode ser tão criativa e poderosa quanto mesquinha e covarde. Que caminho a humanidade irá seguir?

Diferente do que acontece em “Gravidade”, a vida real não autoriza esperar outro destino senão um naufrágio cheio de agonia. Mas a atitude do jovem siciliano no final de “Terra Firme” nos permite um mínimo de esperança em um resgate de última hora.

19 de out. de 2013

Monopólios da comunicação e da violência unidos

"Reportagem do Fantástico denuncia...". Esta é uma expressão cada vez mais ouvida nos meios de comunicação. As denúncias são muitas. “Analfabetos tinham acesso à carteira de habilitação em esquema nos Detran...”. “Compra de explosivos para roubar caixas eletrônicos...”. “Fraudes em concursos públicos...”. “Esquema de licitações com cartas marcadas ...”. Estes são apenas alguns exemplos oferecidos pela máquina investigativa do programa dominical da Rede Globo.

Mas não é só o Fantástico. É o Jornal Nacional, a CBN, Jornal da Band, jornalões impressos, revistas semanais. Só muda o sujeito da oração e o tipo de crime que serve de predicado.  O verbo é o mesmo: denúncia ou investigação.  Algo que deveria estar a cargo de órgãos e autoridades públicos. Pela polícia, Ministério Público e até por parlamentares.

Claro que o jornalismo investigativo é uma das possibilidades da imprensa. Óbvio que denúncias  jornalísticas podem ajudar a combater corrupção, golpes, roubos, violência, abusos. Mas quando a grande imprensa começa a aparecer como principal instituição para a apuração de delitos e crimes, algo está muito errado. Até porque o que é apenas apuração pode tornar-se facilmente processos sumários de acusação, julgamento e punição. Na grande maioria das vezes, sem qualquer direito a defesa. 

E o que fazem os órgãos de segurança pública enquanto isso? Grande parte de seus agentes está diretamente envolvida com os próprios crimes que a imprensa diz investigar. Ou estão ocupados espionando, se infiltrando e reprimindo violentamente as manifestações populares.

São muito raras as vezes em que policiais, juízes, parlamentares, governantes sofrem alguma punição séria, mesmo quando vão parar nas capas dos jornais. Já a punição para lutadores e lutadoras sociais incriminados pela grande imprensa vem rápida, violenta e discreta.

O fato é que há muito pouco de jornalismo investigativo nessa história toda. As reportagens são comandadas por grandes corporações da mídia. Elas mesmas acusadas por vários crimes, principalmente contra a ordem econômica. 

Na verdade, o que estamos vendo não passa de uma ação combinada entre os monopólios da comunicação e os monopólios da violência. Os primeiros tentam se credenciar como instrumentos de cidadania para melhor defender os interesses dos poderosos. Os segundos encontram no discurso dos primeiros a justificação para suas ações covardes e violentas.

No meio, apanhando e sendo criminalizados, estão os movimentos sociais e os pobres em geral.

12 de out. de 2013

Greve dos professores: imprensa diz uma coisa e mostra outra

A covarde repressão que se abateu sobre os professores municipais do Rio de Janeiro nos últimos dias é vergonhosa.  Mais vergonhoso é o comportamento da grande imprensa. Com exceção do jornal Extra, os demais se desdobram para justificar a violência de que são vítimas os educadores.

Foram cerca de 50 dias de paralisação até que o prefeito resolvesse ouvir a categoria. Eduardo Paes apresentou como resposta às reivindicações a promessa de apresentar um plano de carreira que contemplasse suas exigências.

Os trabalhadores suspenderam a greve, mas o plano de carreira mostrou-se uma fraude. A proposta deixou de fora 93% da categoria, por exemplo. Só vale para os professores em regime de trabalho de 40 horas semanais, que são minoria.

Os educadores voltaram a paralisar as atividades. Mesmo assim, Paes enviou o projeto para a Câmara, cuja maioria é por ele controlada. Os professores passaram a pressionar o legislativo municipal. Foram recebidos a cassetete, gás de pimenta, gás lacrimogêneo, balas de borracha.

Enquanto isso, a grande imprensa faz seu costumeiro trabalho sujo. Jamais explica o que aconteceu. Não diz que o prefeito deu um golpe nos educadores. Só fala das manifestações e atividades nas editoria policial ou de trânsito. Faz tudo para jogar a população contra os trabalhadores em greve.

Em sua edição de 02/10, o Globo voltou a tratar o massacre sofrido pelos professores na Cinelândia no dia anterior como choque, confronto, conflito. Deu destaque à informação de que há vários diretores do Sindicato Estadual dos Profissionais de Educação são militantes políticos do PSOL e do PSTU. Então, é assim. São militantes políticos? Pau neles.

Falando nisso, os profissionais da imprensa parecem estar sendo poupados pela violência da polícia, diferente do que vinha acontecendo há alguns meses. Nada mais justo. Eles só estão trabalhando. Mas quem agradece são seus patrões, que não precisam ficar zangadinhos com o comando da PM. A porrada sobrou, mesmo, para quem luta por seus direitos.

Mas parece que chegamos a uma espécie de esquizofrenia jornalística, também. Fotos e vídeos dos próprios veículos não puderam deixar de mostrar os educadores submetidos ao tratamento mais violento. Os textos falados e escritos referem-se a “confronto”, “confusão”, “choque”.  Como se os dois lados estivessem em igualdade de condições.

As imagens revelam policiais fortemente equipados e armados, agredindo trabalhadores munidos apenas de bandeiras e bolsas. Uma foto de O Globo mostrava um suposto membro do Black Block com um estilingue nas mãos. A legenda tratou a cena como um ataque à PM.

Novamente, como em junho passado, é possível sentir a revolta popular em relação às ações covardes das forças de repressão. O que preocupa é que a tendência é a polícia radicalizar sua atitude. São quase 50 anos de militarização a treinar os soldados para a repressão às forças populares.

Em 03/10, o Globo teve que mostrar o fragrante de policiais tentando incriminar manifestantes. As fotos da capa mostravam um PM fingindo encontrar rojões na mochila de um jovem estudante de 15 anos.

Na mesma página, uma nota dizia que a proposta dos educadores em greve levaria ao pagamento de salários de R$ 132 mil para professores, segundo a versão mais do que suspeita da administração Paes. Mais uma vez, as imagens mostram os crimes da polícia, de um lado, e o texto tenta justificá-los, de outro.  

A grande mídia vem tentando legitimar as ações policiais. Os governos Paes e Cabral as incentivam. O governo federal se omite. São todos culpados por crimes contra a democracia.

6 de out. de 2013

O apoio do Globo às trevas da ditadura getulista

Depois de quase 50 anos, todos vimos como o Globo resolveu pedir desculpas por seu apoio à ditadura militar de 1964. Alguns comentaristas chegaram a notar que o jornalão carioca só se mostrou mais ágil que o Vaticano no reconhecimento de seus erros.

Mas o diário da família Marinho também deveria lembrar outra ditadura que contou com seu apoio. Trata-se do chamado “Estado Novo”, decretado em novembro de 1937 por Getúlio Vargas.

O golpe getulista determinou o fechamento do Congresso Nacional e a extinção dos partidos políticos. Foi imposta uma nova constituição, inspirada no nazifascismo. O presidente ditador passou a ter total controle do poder executivo.

Foram nomeados interventores nos estados em lugar de governadores eleitos. As eleições presidenciais previstas para 1938 jamais foram realizadas. O legislativo tornou-se decorativo, pois Getúlio governou por decretos-lei até 1945, quando foi expulso do poder na onda antifascista do final da 2ª Guerra.

Milhares de trabalhadores, militantes políticos, sindicais e sociais foram jogados na cadeia, torturados, desaparecidos e mortos. Verdadeira carnificina, provavelmente ainda mais cruel e sangrenta que a cometida pelo regime militar de 64.

Uma das medidas adotadas foi a censura aos meios de comunicação pelo Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP). E esta foi uma boa desculpa para que os jornais da burguesia apoiassem a ditadura sem se comprometer abertamente. A única exceção foi o jornal “O Estado de S. Paulo”.

Em seu acervo eletrônico, O Globo afirma: “Na ditadura do Estado Novo, a censura impedia o posicionamento aberto da imprensa”. Mas não foi bem assim. Em sua ótima biografia sobre Getúlio Vargas, Lira Neto cita um episódio vergonhoso *.

Em julho de 1939, em pleno Estado Novo, Alzira Vargas casou-se com Ernani do Amaral Peixoto, na época interventor federal no estado do Rio de Janeiro. A cerimônia teria sido simples, mas a lua de mel foi nos Estados Unidos.

Uma nota publicada pelo jornalista Mario Tarquínio de Souza em O Globo dizia que a viagem fora paga com dinheiro público. Não há registro de que tenha havido um desmentido categórico das informações publicadas. Mas a reação do governo foi imediata. O jornalista foi demitido e preso.

O dono do jornal que publicou a denúncia também foi rápido. Segundo o que escreveu Lira Neto na página 366 de seu livro, Roberto Marinho publicou um pedido de desculpas a Getúlio, na primeira página do jornal com o seguinte teor:

“Sinto o dever de me apressar em externar a vossa excelência a minha profunda e sincera revolta contra o embuste de que foi vítima a direção de O Globo, e a própria censura policial, com a publicação de notícia estampada em alguns exemplares de uma das edições de hoje”.

Que o jornal fosse obrigado a publicar o que a ditadura determinava é uma coisa. Que seu proprietário tomasse a iniciativa de lamber as botas do ditador e de seu serviço de censura é outra.

Jorge Amado escreveu um romance sobre esta época terrível da história brasileira. Chama-se “Os subterrâneos da liberdade”. Foi nestes subterrâneos que o Globo se refugiou. Dele jamais saiu. Do interior de seu esconderijo tenebroso, continua tentando nos roubar a luz.

* “Getúlio (1930-1945): Do governo provisório à ditadura do Estado Novo”, segundo volume da trilogia biográfica sobre Getúlio Vargas, escrita por Lira Neto, Companhia das Letras, 2013.

28 de set. de 2013

Tape o nariz e preste atenção na grande mídia

Quem quer transformar a sociedade radicalmente precisa contar com a grande maioria explorada e oprimida. Só a ela interessa revolucionar tudo e se livrar dos exploradores e opressores.

O problema é como convencer a grande maioria dos explorados e oprimidos de que essa mudança radical é possível. Afinal, as ideias dominantes em uma sociedade de classes são as ideias da classe dominante, como disseram Marx e Engels.

O conservadorismo predomina. Não o pior tipo de conservadorismo, aquele que defende pena de morte, racismo etc. Mas a ideia de que a sociedade que temos é a única possível. Por isso, cada um deve tentar conservar o que tem. É o que Gramsci chamou de senso comum.

Os revolucionários precisam conhecer este senso comum. Dialogar com ele para buscar maneiras de desmentir seus valores conformistas. Descobrir nele elementos contestadores capazes de justificar a necessidade de agir para mudar.

Mas como conhecer o senso comum? Como saber o que vai na cabeça do povo? Uma das formas mais importantes é prestar atenção no que as pessoas comuns dizem. Não apenas no que fala a militância.

Seria ótimo se não fosse o fato de que vivemos em uma sociedade de massas. Um meio em que crenças, preconceitos, convicções, conceitos, valores, opiniões circulam no atacado e formam um material ideológico que justifica a dominação.

Se tivéssemos poder econômico, poderíamos contratar institutos de pesquisa pra fazer grandes estudos sobre tudo isso. Mas se tivéssemos poder econômico, estaríamos do lado de lá, não do lado de cá.

Grandes atacadistas encarregados de distribuir aquele material ideológico são os meios de comunicação. Mais especialmente, a grande mídia monopolizada e a serviço dos poderosos.

Portanto, não tem jeito. Pra saber o que, mais ou menos, vai na cabeça do povo, tem que prestar atenção na grande mídia. Inclusive, talvez principalmente, em seus canais mais repulsivos e nojentos.

Isso quer dizer que não adianta ler apenas Brasil de Fato, Carta Maior, Carta Capital, o jornal de seu partido e o boletim do sindicato. Tem que, pelo menos, saber o que estão dizendo e defendendo porcarias como a Veja, Globo, STB etc.

Programas de grande audiência também devem ser acompanhados. Mesmo os de entretenimento. São neles que os valores mais conservadores circulam em formato de diversão e entram na cabeça das pessoas. São as piadas cheias de preconceitos de um “Zorra Total”. É a caridade humilhante de um Luciano Huck. O sutil e sedutor conformismo das novelas.

É preciso ler veículos mais “sérios”, também. Aqueles em quem a burguesia confia, porque saem do nível das fofocas, calúnias, mentiras. Neles as análises são mais precisas e complexas. É o caso de alguns colunistas da grande imprensa, de jornais como o Valor Econômico e alguns programas noticiosos e documentários da TV paga.

Tudo isso é necessário não apenas para saber que material ideológico circula e, assim, melhor combatê-lo. É imprescindível também para não cairmos na lógica das seitas e grupelhos que só falam consigo mesmos. Uma prática que ainda faz muito estrago na esquerda.

Ou seja, pregador no nariz e olhos na grande mídia. Como consolo, você vai poder assistir aquele filme de ação, a novela, o jogo de futebol e muitas porcarias sem tanto peso na consciência.

20 de set. de 2013

Novas mídias e velhas barricadas: limites parecidos

Em 08/09, Eduardo Febbro publicou excelente entrevista com Jacques Henno na Carta Maior. No depoimento intitulado “Estamos todos vigiados e fichados”, o francês, especialista em novas tecnologias, alertou para o surgimento de “uma nova era marcada pelo nascimento de um lobby entre os militares, a informática, os dados e os arquivos”.

A introdução à entrevista destaca: “a Agência Nacional de Segurança estadunidense (NSA) rouba chaves de segurança, altera programas e computadores e força certas empresas a colaborar com o objetivo de ter acesso a comunicações privadas, tanto dentro como fora do território norte-americano”.

Ainda segundo o texto de Febbro com base na entrevista de Henno: “A NSA não respeitou limite algum: correios eletrônicos, compras na internet, rede VPN, conexões de alta segurança (o famoso SSL), acesso aos serviços de telefonia da Microsoft, Facebook, Yahoo e Google, a lista dos novos territórios de caça é interminável”.

O entrevistado dá exemplos de como a espionagem americana desenvolve um serviço de rastreamento muito eficaz, amplo e detalhista. O que adquirimos com nossos cartões magnéticos, ou pela internete, pode colocar qualquer um de nós na lista de suspeitos por terrorismo, por exemplo.

É o caso de alguém que compre uma passagem para a classe executiva em um voo. Se essa pessoa nunca fez isso antes e não tem rendimento médio que justifique a compra, pode se tornar alvo de ações repressivas. A classe executiva fica próxima à cabine dos pilotos da aeronave e seria a preferida  de quem pretendesse executar um sequestro.

Como resume muito bem Henno:

“... os norte-americanos exploram todas as informações que obtém de uma pessoa. Eles são, ao mesmo tempo, paranoicos e amantes da tecnologia. Paranoicos porque há muito tempo vivem armados. E amantes da tecnologia porque, cada vez que há um problema tratam de encontrar uma solução técnica e não forçosamente social ou econômica”.

O pior, diz o especialista, é que nós mesmos é que alimentamos esses grande banco de dados paranoico. Basta possuir uma conta de uma empresa estadunidense, como Yahoo, Microsoft, ou Google. “Se os dados que confiamos a Yahoo, Microsoft, Amazon, Facebook ou Google estão armazenados no território norte-americano, eles estão regidos pelo direito norte-americano”, diz Henno. E a legislação aprovada depois dos atentados de 11 de setembro nos Estados Unidos permite ao governo norte-americano “requisitar os arquivos e dados que julgar necessários. Os dados que entregamos a essas empresas vão parar na NSA”, conclui.

A entrevista tem muitas outras informações importantes para a militância social. Diz, por exemplo, que no Facebook se publicam diariamente 350 milhões de fotos. Em um ano, são quase 130 bilhões de imagens. É a “maior base de imagens do mundo”, diz Henno. E muitos de nós o alimentamos todos os dias.

Diante disso, o que fazer? Poderíamos deixar de utilizar as novas mídias? Voltaríamos a nos comunicar apenas por papel impresso, a utilizar os correios, discutir e decidir tudo presencialmente? Infelizmente, não. Essa questão lembra um texto do revolucionário alemão Friedrich Engels. Em 1895, ele escreveu uma introdução para “As Lutas de Classes na França”, escrito por Marx, em 1850.

Em um determinado trecho, Engels aborda a questão militar. Avalia as dificuldades dos movimentos de insurreição para fazer frente aos novos arsenais da burguesia:

“Em 1848, era o simples fuzil a percussão; hoje em dia é o fuzil de repetição de pequeno calibre que atira quatro vezes mais longe, dez vezes mais certeiro e dez vezes mais rápido do que o primeiro. Antigamente, eram as granadas e os obuses de artilharia, relativamente pouco eficazes; hoje em dia, são os obuses a percussão, dos quais um só é suficiente para por em cacos a melhor barricada. Antigamente, era a picareta para derrubar muros; hoje em dia, são os cartuchos de dinamite”.

Essa situação levou Engels a concluir que a luta a partir de barricadas seria cada vez mais arriscada e facilmente derrotada pelas classes dominantes.

Muitos socialistas utilizaram esse trecho de Engels para justificar suas posições reformistas, de conciliação e traição às causas da luta proletária. Mas para fazer isso, esse pessoal costumava omitir um trecho do texto de Engels que não admitia essa conclusão. Dizia o seguinte:

“Isso quer dizer que no futuro o combate de rua não jogará nenhum papel? De jeito nenhum. Isso apenas quer dizer que as condições desde 1848 se tornaram muito menos favoráveis para os combatentes civis e muito mais favoráveis para as tropas. Um combate de rua não poderá, então, no futuro, ser vitorioso sem que essa inferioridade de situação seja compensada por outros fatores”.

Voltando às graves denúncias de Jacques Henno, talvez possamos fazer um paralelo com a situação abordada por Engels. Nossas barricadas nas mídias virtuais estão perigosamente minadas. Estamos na alça de mira das armas inimigas. Acreditar que somente a partir de nossos blogs, sites e contas virtuais seremos capazes de alterar essa situação de desvantagem é perigosa ilusão.

Como diz Engels, teremos que compensar essa situação inferioridade com outros fatores. Entre eles, a criação de uma verdadeira imprensa dos setores explorados e oprimidos. Capaz de construir seus próprios instrumentos reais. Que conte com a colaboração de partidos de esquerda, sindicatos combativos, associações e entidades populares e movimentos sociais em geral. Além disso, é fundamental a destruição do monopólio das comunicações. Tarefa que os governos que ajudamos a eleger se mostraram covardemente incapazes de cumprir.

13 de set. de 2013

O Globo continua em sua guerra suja contra a liberdade

Um texto anterior deste blog abordou a disponibilização pelo Globo de seu próprio acervo. Destacou, principalmente, o apoio do periódico ao golpe militar de 1964. Avaliou que a abertura ao público dos “11 milhões de documentos” do jornalão poderia ter como objetivo tornar menos visíveis episódios vergonhosos, como o apoio do diário carioca à ditadura que se seguiu ao golpe.

Mas, logo depois, o Globo não só reconheceu a postura favorável à implantação da ditadura de 64, como pediu desculpas por isso. Em 31/08, publicou o editorial “Apoio editorial ao golpe de 64 foi um erro”.

O texto afirma que “há muitos anos, em discussões internas, as Organizações Globo reconhecem que, à luz da História, esse apoio foi um erro”. E que a decisão de tornar pública esta avaliação aconteceu há alguns meses, quando o projeto “Memória” estava sendo estruturado.

Desde a publicação do editorial, muita gente da imprensa alternativa escreveu bons textos sobre a decisão do jornalão. Entre eles, destaca-se o de Fernando Brito que, em seu blog Tijolaço, recusa o pedido de desculpas e diz que não se tratou de um erro, mas de um crime.

Marco Aurélio Weissheimer também publicou bom texto na Carta Maior, e apresentou uma coletânea de frases publicadas nas redes virtuais, ironizando o episódio. Como estes, há muitos outros que podem ser encontrados nos melhores blogs e sites alternativos. Portanto, este texto teria pouco a acrescentar. A destacar apenas alguns pontos.

Em primeiro lugar, o editorial de O Globo afirma que o jornal esperava uma rápida passagem dos militares pelo governo e a devolução deste aos civis, com a realização de eleições livres. Mas, diz o texto, “o desenrolar da ‘revolução’ é conhecido”: “Não houve as eleições. Os militares ficaram no poder 21 anos, até saírem em 1985, com a posse de José Sarney, vice do presidente Tancredo Neves, eleito ainda pelo voto indireto, falecido antes de receber a faixa”.

O “desenrolar da revolução” também mostrou as organizações Globo completamente à vontade com a situação ditatorial. Não basta afirmar que Roberto Marinho protegia os “comunistas” que trabalhavam para ele. Nem que acompanhava “seus jornalistas” nos depoimentos a que eram convocados pelos órgãos de repressão para que não desaparecessem.

Nada disso é suficiente quando o conjunto das organizações Globo trabalhava pela legitimação deste mesmo regime que perseguia “comunistas” e desaparecia com jornalistas. É como agiria um senhor de escravos que não deixa matarem seus cativos para não sofrer prejuízo em seu patrimônio.

Também não é suficiente afirmar que Marinho sempre defendera a legalidade. Muitas das leis vigentes sob a ditadura eram injustas, abusivas, desumanas. Denunciá-las e desafiá-las. Esta era a obrigação de um jornal que zelasse pela liberdade e pela justiça. Colocar-se, inclusive, na ilegalidade, como muitos jornalistas verdadeiros fizeram. Mas as Organizações Globo estavam preocupadas em subverter outras leis. As da livre concorrência. Por isso, montaram um dos maiores monopólios de mídia do mundo, precisamente sob as leis ilegítimas da ditadura militar.

Por fim, a conclusão a que o último texto desta coluna chegou não estava totalmente errada. O Globo não escondeu sua postura vergonhosa em relação ao golpe de 64. Evidenciou-a e por ela pediu desculpas. Mas o próprio ato esconde mais do que mostra. Espera, com isso, colocar uma pedra sobre o assunto e aliviar a pressão que vem sofrendo nas manifestações populares.

Continuamos a ser desafiados e, agora ainda mais fortemente, a mostrar que se trata de mais uma manobra. Mais um truque de quem sempre esteve ao lado dos que travam uma guerra suja contra a liberdade.

7 de set. de 2013

Dan Brow: o inferno é aqui

Há um ramo da mídia grande que não chama tanta atenção. Trata-se da indústria dos chamados best-sellers. É verdade que num país como o Brasil, em que a leitura não é incentivada, o setor é minúsculo em relação aos poderosos veículos de radio e TV. Mas é bom prestar atenção. Principalmente, quando se trata de livros que certamente se tornarão longas metragens do tipo que estouram bilheterias.

É o caso de “Inferno”, a mais recente obra do estadunidense Dan Brown. O livro está há 14 semanas na lista dos mais vendidos, ocupando sempre os primeiros lugares. Trata-se do sexto título do escritor e o quarto protagonizado pelo professor de simbologia Robert Langdon.

O pano de fundo é a primeira parte de “A Divina Comédia”, de Dante Alighieri. Langdon precisa decifrar as mensagens contidas na imagem de uma pintura de Sandro Botticelli. Trata-se da obra, intitulada “Mapa do Inferno” e inspirada no poema de Dante. Ela conteria a chave que permitiria desarmar uma bomba química instalada em algum lugar da Europa.

Basicamente, um cientista genial está convencido de que o planeta não aguenta mais a superpopulação. Seja em relação à produção de alimentos, seja a pressão sobre o meio ambiente, a humanidade estaria se aproximando de um colapso. Por isso, a solução seria se livrar de dois terços da lotação planetária. Oferecer à maior parte da humanidade uma visita antecipada ao inferno.

Como em suas outras obras, o autor mantém um bom ritmo de suspense, prendendo a atenção de quem lê capítulo por capítulo. Em meio a correrias e enigmas, o texto despeja conhecimentos sobre pinturas, esculturas, monumentos e construções históricas, principalmente em Florença e Veneza.

A trama é bem costurada e deve agradar a grande maioria de seus leitores. O que surpreende, no entanto, é a total aceitação da tese do cientista maluco. Na verdade, uma reedição das hipóteses do matemático e demógrafo do século 19, Thomas Malthus. Em sua famosa obra “Ensaio sobre o princípio da população”, ele dizia que a produção de alimentos não acompanharia o ritmo do crescimento populacional. Por essa e outras, o estudioso inglês era contra leis de assistência a pobres, por exemplo.

As teses de Malthus foram refutadas por Marx, na época, e pelo próprio desenvolvimento do capitalismo. Realmente, continua a haver muitos famintos no mundo. Mas não por falta de alimentos. Citemos o trecho de um texto de Ester Vivas sobre isso:

"Segundo a Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO), atualmente, cultiva-se o suficiente para alimentar 12 bilhões de pessoas, e no planeta somos 7 bilhões. Há comida. O problema é: em mãos de quem está a comida? Os alimentos converteram-se em um instrumento de negócio por parte de umas poucas multinacionais da agroindústria que priorizam seus interesses empresariais em detrimento das necessidades alimentares das pessoas. Dessa forma, se não tens dinheiro para pagar o preço cada dia mais caro da comida ou acesso aos meios de produção, como terra, água e sementes, não comes". (Comer insetos para acabar com a fome?)


Além disso, se o meio ambiente já não nos aguenta não é porque nos espalhamos feito uma praga pelo planeta. A raiz do problema está em um sistema que prioriza o lucro. Que só sabe funcionar através da superexploração dos recursos naturais e da força de trabalho da grande maioria de nossa espécie.

O final da trama de Brown praticamente obriga a uma continuação. Mas, neste livro, em momento algum o autor coloca em dúvida a ultrapassada tese de seu vilão. O próprio Malthus é citado sem que nenhuma avaliação crítica sobre suas conclusões seja feita. O herói Langdon apenas se recusa a aceitar a solução defendida por ele.

O resultado da leitura tende a ser uma naturalização do capitalismo e sua transformação em única possibilidade para nossa espécie. Buscar alternativas seria coisa de malucos. Só nos restaria conviver com o caos da melhor maneira possível. Ou seja, “se o inferno é inevitável, relaxa e torra”.

30 de ago. de 2013

O acervo de um jornal a serviço das forças mais conservadoras

“Professores já utilizam ferramenta para melhor explicar episódios históricos e as mudanças na linguagem do brasileiro”, diz matéria de Eduardo Vanini publicada em 19/08, em O Globo. O texto refere-se à disponibilização pelo próprio jornal de seu acervo completo.

Por enquanto, a consulta pode ser feita gratuitamente. Segundo o periódico, o internauta poderá:

"...navegar pelas edições do jornal desde sua fundação. E consultar tanto as páginas quanto as matérias ou artigos, que foram digitalizados um a um. No total, são mais de 11 milhões de documentos, entre páginas e artigos".

Muitos poderiam achar que a ideia pode se virar contra o jornalão. Afinal, ficaria facilitado o acesso às posições políticas conservadoras que o diário carioca defendeu em vários momentos decisivos da história do País.

Um exemplo clássico é a postura que o Globo adotou no golpe militar de 31 de março de 1964. Em 02 de abril, o jornal publicou o editorial “Ressurge a Democracia!”. Se o título já não fosse explícito o suficiente, alguns trechos confirmam o apoio ao ato ditatorial:

"Vive a nação dias gloriosos. Porque souberam unir-se todos os patriotas, independentemente de vinculações políticas, simpatias ou opinião sobre problemas isolados, para salvar o que é essencial à democracia, a lei, a ordem. (...) Mais uma vez o povo brasileiro foi socorrido pela Providência Divina, que lhe permitiu superar a grave crise, sem maiores sofrimentos e luto. Sejamos dignos de tão grande favor".

Logo em seguida, em 9 de abril de 1964, a ditadura baixava o Ato Institucional no 1. A medida estabelecia eleições indiretas para Presidente da República, nomeando o general Castelo Branco por um colégio eleitoral. Também foram cassados mandatos parlamentares e direitos políticos. 

Na manhã seguinte, a manchete do jornal de Roberto Marinho dizia: “Cassados os mandatos de 40 parlamentares e suspensos direitos políticos de 58 pessoas”. Apesar disso, um trecho do editorial afirmava:

"Temos fé em que sob a direção do General Castelo Branco, a Nação enfrentará, unida, as dificuldades que a afligem e que afetam especialmente as massas trabalhadoras, para assim retomar o seu lugar no mundo democrático".

Em 27 de outubro de 1962, foi editado o Ato Institucional no 2, que extinguiu os partidos políticos e estabeleceu um sistema bipartidário. De um lado a Aliança Renovadora Nacional (ARENA), que representava o regime, e de outro o Movimento Democrático Brasileiro (MDB), em que uma oposição controlada podia se organizar.

O decreto também permitia ao presidente declarar Estado de Sítio, sem a prévia aprovação do Congresso. Entre outras medidas, funcionários públicos perdiam seus direitos e poderiam ser demitidos por ordem presidencial.

Em relação à medida, o editorial de O Globo publicado no dia seguinte dizia: “...o Ato Institucional no 2 contém em seus artigos preceitos que realmente atendem aos interesses do País e da administração pública...”.

Estes são somente alguns exemplos do comprometimento do jornal da família Marinho com o nascimento de um dos períodos mais tenebrosos de nossa história.

Como estes houve muito outros que poderiam manchar a reputação do diário. Mas certamente, seus proprietários contam com poder de monopólio que construíram durante décadas. Procuram tornar os episódios mais vergonhosos menos visíveis em meio à torrente de “11 milhões de documentos” disponíveis. Também se beneficiam da amnésia política que ajudaram a espalhar e contam com a cumplicidade de autoridades e lideranças que até anteontem os acusavam de ser inimigos da democracia.

Cabe a nós, da imprensa alternativa de esquerda e militantes sociais em geral, atrapalhar o máximo possível esses planos.

24 de ago. de 2013

O tempo que a grande mídia nos rouba

Muitos comemoram o papel das mídias alternativas nas manifestações populares iniciadas em junho. Não deixa de ser justo, mas é sempre bom temperar o otimismo do entusiasmo com o pessimismo frio dos números.

"Brasileiro passa muito tempo longe dos livros" diz o título da matéria de Cassia Almeida para o Globo, publicada em 09/08. A reportagem trata de pesquisa recentemente divulgada pelo IBGE, que constatou que a leitura ocupa só 6 minutos do dia dos brasileiros, em média.

Foram ouvidas mais de 5 mil pessoas com 10 anos de idade ou mais. O levantamento limitou-se a quatro estados (Pará, São Paulo, Rio Grande do Sul e Pernambuco) e o Distrito Federal.
Mas dificilmente a realidade é outra no restante do País.

Mais grave é o que dizem outros números da mesma pesquisa. Enquanto a leitura fica com aquela meia dúzia de minutos, a TV recebe 2h35m de atenção. Também mostram que mais da metade dos entrevistados levantam da cama às 6h45m da manhã. Daí em diante, continua a reportagem, o trabalho domina o dia da maioria das pessoas. Tempo livre mesmo, somente a partir das 21h, "quando o sono vem".

Estes números podem nos dizer algo do papel da grande mídia no sistema de dominação brasileiro. A principal fonte de informação continua a ser a televisão, que, como sabemos, está nas mãos dos monopólios que defendem poderosos interesses econômicos.

As longas jornadas de trabalho, mais as muitas horas de deslocamento em transportes públicos indecentes, roubam tempo não só do descanso, do lazer e da educação. Também inviabilizam qualquer atividade associativa e participação política para a grande maioria da população.

Não por acaso o Jornal Nacional atrasou seu início para as 21h, há alguns anos. O objetivo é continuar bombardeando cérebros cansados e entorpecidos com suas informações deformadas e tendenciosas. Depois, já devidamente dopados, os telespectadores são entregues às imagens e sensações da novela até que durmam.

Uma situação como esta mostra que ainda é muito grande o poder dos monopólios da comunicação. O papel das redes virtuais e das mídias alternativas tem sido muito importante nas atuais mobilizações populares. Mas sem a democratização das comunicações, o tempo da maioria de nós continuará sob controle da ditadura da grande mídia.

17 de ago. de 2013

Os ninjas e a luta anticapitalista

A atuação do coletivo Mídia Ninja (Narrativas Independentes, Jornalismo e Ação) está no centro dos debates sobre jornalismo alternativo. Seus integrantes se destacaram no acompanhamento das manifestações populares que começaram em junho passado.

A cobertura do coletivo foi fundamental na denúncia da violência policial e na divulgação das principais pautas dos movimentos. Furou o bloqueio dos monopólios da comunicação e mostrou compromisso com a informação e com as causas das manifestações.

Mas somente aos poucos vai ficando clara qual é a proposta dos ninjas. A presença de dois de seus membros no programa Roda Viva de 05/08, na TV Cultura, ajudou a esclarecer alguns pontos. Diante de jornalistas da grande imprensa, Bruno Torturra e Pablo Capilé deram uma demonstração de segurança quanto ao que fazem e no que acreditam. Enfrentaram com tranquilidade uma bancada que, em grande sua maioria, vacilava entre a hostilidade ignorante e a ignorância hostil.

Mas não deveríamos acreditar que a grande mídia observará tudo isso tranquilamente ou com temor. E não se trata apenas de ataques ao coletivo. Calúnias e insinuações quanto a quem está por trás de seus membros. Mais do que isso, uma proposta como a apresentada pelos ninjas, apesar de sua novidade, corre o risco de ser engolida pelo mercado.

Foi grande a pressão para saber quem banca o coletivo. Os jornalistas presentes sabem muito bem que quem paga a banda, escolhe a música. Torturra e Capilé não se intimidaram. Afirmaram que a Mídia Ninja faz parte do coletivo Fora do Eixo. Trata-se de uma rede solidária de coletivos distribuídos por todo o país e mantida por recursos públicos, obtidos por edital, afirmaram os entrevistados. Sua dinâmica colaborativa e horizontal permitiria potencializar o uso desses recursos. Uma espécie de moeda própria circularia pela rede, viabilizando shows e eventos artísticos, artistas e trabalhadores culturais.

Há muita polêmica cercando esse modo de funcionamento do Fora do Eixo. Principalmente, nas redes virtuais. Muitos apoiam e elogiam a iniciativa, como inovadora e comprometida com a produção cultural alternativa. Mas também há acusações de centralismo, falta de democracia, oportunismo, relações privilegiadas com governos, utilização pouco transparente dos recursos etc.

Mas digamos que as críticas não procedam. Consideremos que o coletivo realmente funcione como seus divulgadores afirmam. Ainda assim, é preciso considerar uma série de questões. A começar pela relação com o mercado.

Para ficar apenas na questão da Mídia Ninja, no programa Roda Viva Torturra deixou muito claro quais são os objetivos perseguidos pelos ninjas. Disse que o ideal do coletivo é tentar criar uma rede financeiramente viável que dê conta não só da demanda por informação de qualidade, mas oferecer oportunidade de trabalho a jornalistas que não encontram vagas no mercado ou que estão sendo despedidos das grandes redações. Portanto, trata-se de uma aposta de mercado, ainda que na contramão dos monopólios que o dominam e se apresente sob a forma de um empreendimento solidário.

Ocorre que não há horizontalidade profissional e princípios colaborativos que possam fazer frente às leis da concorrência capitalista, cada vez mais selvagens. A não ser que a proposta seja aderir a elas. E nesse caso seria bom lembrar uma análise de Rosa Luxemburgo sobre os limites da produção cooperativada. O trecho é de "Reforma ou Revolução", uma das maiores obras da grande revolucionária:

... na economia capitalista a troca domina a produção; por causa da concorrência exige, para que a empresa possa sobreviver, uma impiedosa exploração da força do trabalho, quer dizer. a dominação completa do processo de produção pelos interesses capitalistas. (...) Daí uma cooperativa de produção ter a necessidade, contraditória para os operários, de se governar a si própria com toda a autoridade absoluta necessária e de os seus elementos desempenharem entre si o papel de empresários capitalistas. Dessa contradição morre a cooperativa de produção, ou tornando-se uma empresa capitalista ou, no caso em que os interesses dos operários são mais fortes, se dissolvendo. Estes são os fatos.

É certo que os representantes da Mídia Ninja não concordariam com tal argumentação. Pelo que disseram no programa da TV Cultura, vivemos num momento "pós-industrial", que já teria superado as contradições a que se refere Rosa. Além disso, a iniciativa que propõem não poderia ser caracterizada como uma cooperativa de produção, mas de serviços criativos.

No entanto, uma coisa é inegável. Os lucros movimentados pelo setor de comunicações e produtos culturais são cada vez mais astronômicos. Queiram ou não os ninjas, o setor obedece à lógica da rentabilidade acima de tudo, chamemos ou não isso de capitalismo industrial, de capital material ou imaterial, de setor de transformação ou de serviços. E pequenas iniciativas criativas e inovadoras não são necessariamente contraditórias com essa lógica.

Novamente recorremos a Rosa e ao seu texto, publicado mais de um século atrás. Ainda em "Reforma ou Revolução", ela diz:

No curso geral do desenvolvimento capitalista, os pequenos capitais desempenham o papel, na teoria marxista, de pioneiros da revolução técnica, e isso de maneira dupla: em primeiro lugar no respeitante a novos métodos de produção nos setores antigos fortemente enraizados, depois pela criação de novos setores de produção inexplorados pelos grandes capitais.
Como a comprovar essa tese, basta observarmos os gigantes empresariais que nasceram em garagens, sótãos e porões, como Microsoft, Apple, HP, Google e Youtube. Até pouco tempo atrás, considerados instrumentos de inovação criativa e democratização da informação. Recentemente, desmascarados como colaboradores do sistema de espionagem estadunidense. E agarram-se a suas posições monopolistas como os velhos tubarões do capitalismo.

De qualquer maneira, vivemos em tempos de ditadura midiática. E sob uma ditadura, as forças que a ela resistem devem buscar a maior unidade possível. Os ninjas são muito bem vindos às mobilizações populares da luta anticapitalista. Anticapitalista!

9 de ago. de 2013

Reforçar as guerrilhas da comunicação

Entre as muitas lições das manifestações populares que vêm chacoalhando o País, está a de que vivemos uma sob uma verdadeira ditadura da grande mídia.

O jornalismo empresarial faz uma cobertura dos acontecimentos que é tendenciosa, criminaliza os movimentos sociais, omite, mente, esconde, distorce. Causa na esfera da informação estrago equivalente ao provocado por balas de borracha, spray de pimenta e gás lacrimogêneo nas ruas.

Um exemplo é a cobertura jornalística dos protestos que acabaram em depredação de lojas e bancos no Leblon. A gritaria que a grande imprensa fez só é comparável com o silêncio com que tratou a morte de dez pessoas na favela da Maré, vinte dias antes. O grande patrimônio de uma dúzia de pessoas colocado acima das vidas de milhares.

Não estamos vivendo sob uma ditadura política. Mas não se pode dizer o mesmo quanto ao direito à informação, que está soterrado sob o peso de grandes monopólios. Felizmente do nosso lado, temos a cobertura feita por centenas de jornalistas alternativos com suas microcâmeras e celulares. Desmascarando a mídia empresarial em blogs, redes virtuais, rádios e jornais comunitários e sindicais. No asfalto e nas comunidades.

Essas mulheres e homens heroicos e comprometidos com as lutas populares desempenham um papel fundamental. Um exemplo claro foi o caso do molotov atirado em policiais nas manifestações do dia 22/07. Foram as imagens da mídia alternativa que mostraram que o artefato foi atirado por um policial infiltrado. É isso que torna essa verdadeira guerrilha da informação tão odiada pelas forças da repressão e governantes de plantão.

Sob uma ditadura política, a luta popular aberta contra os poderosos é desigual e dificilmente escapa à derrota. Daí, a necessidade de ações pequenas, mas eficientes e que ajudem a acumular forças para um momento favorável.

Do mesmo modo, enquanto durar a ditadura midiática, teremos que nos limitar às escaramuças pontuais e estratégicas. Acumular forças e reunir condições para travar o grande combate. Mas este só será vitorioso se deixarmos para trás aqueles que vacilam entre a covardia e a cumplicidade em relação aos poderosos da mídia.

O apoio a governos progressistas, ou que pretendem sê-lo, é possível. Muitas vezes, pode ser necessário. A pressão sobre parlamentares, também. Mas é imprescindível evitar a dependência em relação aos "poderes constituídos", sempre embaraçados nas cordas que atam o Estado ao grande capital. Nossas principais lutas têm que ser travadas nas ruas, com câmeras, gravadores e muita disposição.

8 de ago. de 2013

“O Som ao Redor”: a tranquilidade que antecipa a explosão

O filme "O Som ao Redor" está chegando às locadoras. Quem não viu, deve aproveitar a oportunidade. E quem assistiu, tem motivos para repetir a dose.

A produção do cineasta pernambucano Kléber Mendonça Filho tem muitos méritos. Elenco, fotografia, direção, roteiro. Mas é o clima de suspense que prende a atenção. A trama trata basicamente de uma área residencial em um bairro de classe média de Recife. Os integrantes de uma milícia aparecem oferecendo segurança particular aos moradores.

Um idoso que é latifundiário no interior, possui vários imóveis na capital. É o patriarca local, de quem os milicianos conseguem autorização para atuar.

Tudo parece sob controle. Mas a tensão cresce.

Uma jovem dona de casa não consegue dormir por causa dos latidos do cachorro do vizinho. Durante o dia, fuma maconha e se masturba. Um dos netos do patriarca comete furtos em automóveis da vizinhança, desafiando os novos seguranças. Outro neto não sabe o que fazer da vida de conforto material que leva. Um casal de adolescentes se agarra pelos cantos. As empregadas vão e vêm como sombras. Festinhas rolam e automóveis cruzam as pacatas ruas em alta velocidade.

Estes e outros elementos compõem o som que rodeia o conforto do bairro. Rumor incômodo, acumulado por um ódio e sede de vingança só revelados no final do filme. Esse ruído acompanha a história brasileira há séculos, produto da truculência dos que incluem vidas humanas entre os bens de que podem dispor.

Lançado meses antes das manifestações que abalam o País, o filme parecia pressentir alguma coisa. A tranquilidade e a segurança aparentes podem preceder a explosão.