Na verdade, o Lobo de Wall Street era
apenas um chacal ou uma hiena, que se alimentava da volumosa carniça que lhe
sobrava. O filme de Scorcese é diversão nos dois sentidos da palavra.
"O Lobo de Wall Street", de Martin Scorcese, é uma adaptação do livro
de memórias de Jordan Belfort, corretor de títulos da bolsa norte-americana.
Interpretado por Leonardo DiCaprio, logo no início do filme, o protagonista
lista as várias drogas que ingere durante todo o dia para manter o ritmo louco
do mundo da especulação financeira.
Na cena que mostra Belfort aspirando uma
carreira de pó branco, ele avisa: esta é a mais terrível de todas as
drogas. Mas não se trata de cocaína. Ele se refere à nota de dinheiro que
utilizou como canudo para inalar a substância. “Esta é a mais poderosa das
drogas”, diz ele.
E o filme todo é sobre os efeitos dessa substância que circula pelas veias de
praticamente todas as sociedades do mundo atual. Que levou a vida social contemporânea
a uma dependência, mais do que química, alquímica. Uma alquimia que não
transforma apenas chumbo em ouro, mas converte tanto matéria, como espírito em
bens monetizados. Em ativos que podem ser negociados nos mais diversos tipos de
mercados em que foram transformadas as várias esferas da vida humana.
Ao mesmo tempo em que as drogas servem como estimulante para manter o ritmo frenético que permite a acumulação de riquezas, a
riqueza não é um meio se não para si mesmo. Não há objetivos maiores do que o
de possuir mansões, carrões, iates e tudo que esteja em conformidade com os
padrões impostos pelo mercado de luxo, inclusive as mulheres.
Belfort e seu time de corretores precisam fazer dinheiro aos montes para
ingerir doses cavalares de drogas, alimentos e bebidas, vestir as melhores
grifes e fazer sexo em tempo integral. Mas, no fundo, fazem tudo isso apenas
para voltar a fazer dinheiro. Este último é o seu verdadeiro mestre. Aquele a
quem devem obediência e devoção.
Impossível assistir às cenas que mostram as palestras de motivação de Belfort
para seus empregados sem lembrar de cultos religiosos. O uso poderoso da
palavra, o discurso emocionado, as metáforas arrebatadoras, os gestos de
comunhão histérica, os ataques de choro, os urros de fé e as juras de
fidelidade às leis nada divinas da selva capitalista.
Muitos criticaram o filme por tornar simpática uma figura asquerosa. Por
transformar em cenas cômicas as armadilhas com que Belfort levava pessoas
pobres a apostar suas economias em investimentos furados apenas para que ele
ganhasse sua polpuda comissão. Mas, creiam, o maior vilão dessa história não
aparece no filme de Scorcese.
Do mesmo modo que o pastor ou o padre são apenas intermediários, Belfort é
somente parte de uma matilha que apanha os restos deixados por feras muito
maiores e mais vorazes. Não foi à toa que Marx resolveu chamar de “O Capital”
sua maior obra, ao invés de “Os Capitalistas” ou “A Burguesia”, por exemplo. O
capitalismo funciona como um mecanismo social que aliena até mesmo seus maiores
beneficiários.
As cada vez mais recorrentes catástrofes ambientais, as seguidas e agudas
crises econômicas, as ameaças de crises alimentares e catástrofes biológicas.
Tudo isso é produto do que Marx chamou, não gratuitamente, de “anarquia da
produção capitalista”. Um mecanismo que se alimenta de uma concorrência que vem
se transformando na corrida para o abismo que Walter Benjamim já temia mais de
70 anos atrás.
Nada disso autoriza a isentar de culpa os poderosos controladores dos meios de
produção e de circulação da economia mundial. Nem implica dizer que o modo de
produção capitalista torne a todos suas vítimas, indistintamente. Estão aí o
luxo e a riqueza para uma minoria minúscula e as limitações materiais mais
básicas e os constrangimentos morais mais humilhantes para a gigantesca maioria
do planeta.
Belfort não apenas tem culpa, como chegou a quebrar a própria legalidade de um
sistema feito para promover a rapina mais cruel. Mas os responsáveis por levar
a cabo o grande massacre são outros. São poucos e são patrocinadores e
apadrinhados dos poderes políticos e institucionais em todos os cantos do
planeta.
Basta que lembremos uma pesquisa da ONG britânica Oxfam divulgada em janeiro
passado. O estudo revela que o patrimônio das 85 pessoas mais ricas do mundo
equivale às posses de metade da população mundial. Este grupo que não chega a
uma centena de indivíduos tem um patrimônio de US$ 1,7 trilhão. Valor que
equivale aos bens das 3,5 bilhões de pessoas mais pobres do mundo. O relatório
também mostra que a riqueza do 1% das pessoas mais ricas do planeta equivale a
US$ 110 trilhões. Ou 65 vezes a riqueza total da metade mais pobre da população
mundial.
Muito dificilmente essas pessoas seriam levadas a responder por alguma
ilegalidade. Não apenas porque o atual aparato jurídico não foi feito para punir
os que o puseram para funcionar. Mas, principalmente, por causa da natureza concentradora
do Capital. Uma espécie de atração gravitacional poderosa como a dos buracos
negros. Um fenômeno que vem confirmando as previsões nada astrológicas de Marx
desde que ele estudou as primeiras crises capitalistas. Este pequeno grupo
superprivilegiado poderá ser ainda menor, em pouco tempo.
Nessa imensa carnificina, o Lobo de Wall Street era apenas um chacal ou uma
hiena, que se alimentava da volumosa carniça que lhe sobrava. O filme de
Scorcese é diversão nos dois sentidos da palavra. Feito para entreter e para
despistar.
15 de fev. de 2014
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Um comentário:
Bravo!!!
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