“Personal Che” mostra como Guevara virou santo, garoto-propaganda e até ídolo de neonazistas. Mas, os símbolos dos socialistas estão em disputa. Cabe a nós não perdê-los para os inimigos.
Para fazer seu documentário, Douglas Duarte e Adriana Marino viajaram por vários países do mundo. Seu objetivo era ver o que Che Guevara representava para as pessoas, mais de 40 anos depois de sua morte. Estiveram na Bolívia, China, Alemanha, Estados Unidos, Líbano e Cuba.
Na pequena vila boliviana de La Higuera, Guevara foi covardemente assassinado pelo exército daquele país com ajuda da CIA. A maioria de seus habitantes passou a considerá-lo um santo, com direito a velas e oratório. Em Cuba, o filme dá destaque a um admirador bem mais informado. Conhece muitos detalhes da vida e da morte do Che. Só não conhecia as famosas fotos de Guevara morto. Aparentemente proibidas ou de circulação restrita em Cuba.
No Líbano, a vida de Guevara é tema de um musical. O ator que o interpreta também mostra conhecer bem o personagem. Mas, coloca-o no mesmo nível de seus ídolos religiosos islâmicos. Em Hong Kong, um deputado é voz isolada no parlamento local. Inspirado no revolucionário argentino, ele se reivindica marxista e denuncia a repressão e exploração do regime de seu país.
Um porto-riquenho que mora nos Estados Unidos tem enorme coleção de camisetas, pôsteres, quadros de seu ídolo. É mais um fã do que um seguidor político de Guevara. O filme também mostra o Che adotado pelo mundo da moda. A famosa foto de Alberto Korda virou estampa em roupas usadas por pessoas de todas as classes sociais. Mas, a maioria mal sabe dizer quem foi ele.
Da Alemanha vem o exemplo mais chocante. Um grupo neonazista adotou Guevara e Hitler como seus ídolos. Ambos teriam sido “revolucionários que lutaram pela liberdade de suas pátrias”.
Tudo isso mostra que Che Guevara tornou-se uma grande figura simbólica. Alguns elementos foram determinantes para isso. Um deles foi ter vivido em uma época que começava a ser marcada pela expansão mundial dos meios-de-comunicação. Sua figura correu o mundo facilmente. E sua opção pela luta armada também ajudou a torná-lo popular junto a um público acostumado pela própria indústria cultural a admirar ações heróicas a cargo de indivíduos corajosos.
O problema é que os mesmos meios que o tornaram popular se encarregaram de apagar e embaralhar muitos detalhes sobre sua vida. Com isso, muitos de seus admiradores encaixam sua figura no que lhes parecem ser causa dignas por que lutar. Mesmo que algumas acabem pertencendo à vergonhosa sujeira fascista. Este é o grande risco que envolve as figuras simbólicas.
Não há como nos livrarmos dos símbolos. Os seres humanos tornaram-se simbólicos desde que aprenderam a dar nome às coisas. Por outro lado, os símbolos não são neutros, nem são fixos. Menos ainda em uma sociedade de classes. A classe dominante transforma tudo em mercadoria e utiliza valores a seu favor. É só ver o uso que a propaganda voltada para os jovens faz do Maio de 68, por exemplo. Ou a transformação de lutas populares em episódios românticos de novelas, filmes e minisséries.
Claro que transformar a vida e a obra de revolucionários socialistas em símbolos de luta é importante. No entanto, cada vez que tornamos um deles um herói quase santo, abrimos brechas para que nossos inimigos se aproveitem.
Marx, Engels e Lênin também se tornaram alvo de um culto quase religioso. Stalin foi o maior dos coveiros da revolução de 1917. Mas para melhor enterrá-la inventou uma mitologia revolucionária. Transformou o pensamento marxista em um evangelho. Alguns de seus formuladores em apóstolos. Outros, em Judas a serem perseguidos, como fez com Trotski e quase todos os líderes da Revolução Russa. E para si mesmo, Stalin reservou a função de grande sacerdote. Algo muito parecido ocorreu em Cuba, onde Che também virou um santo oficial.
Quando escolhemos fazer tal uso dos símbolos, adotamos o campo de batalha do inimigo. As religiões não são necessariamente conservadoras. Apenas quando são usadas para justificar a dominação e a exploração. Os camponeses de La Higuera cultuam Guevara como a um santo. Mas, pelo menos, é positivo que vejam nele alguém que lutou por justiça.
Já os santos inventados por Stálin, foram utilizados para reforçar o poder da classe que dominava o Estado soviético. Sua função era conservadora. A construção do socialismo passa a ser coisa de uns poucos iluminados. As ações e escritos de grandes lutadores viram fórmulas que são repetidas automaticamente. Partidos e organizações tornam-se seitas dominadas por cardeais. Nossos símbolos e idéias somem na circulação geral das mercadorias e valores da burguesia.
O documentário dá a entender que o verdadeiro Che já se perdeu. Não é o caso. De Guevara, temos a obra escrita, as ações políticas, biografias e estudos sobre sua atuação. Elementos que permitem entender como pensava e o que defendeu. Possibilitam tirar lições, seguir exemplos e evitar erros. O Che é uma importante referência para quem luta pelo socialismo. Aceitá-lo como santo ou infalível é entregá-lo ao inimigo.
Sérgio Domingues – Julho de 2008
1 de jul. de 2008
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