"Batman, o cavaleiro das trevas" mostra que o Homem-Morcego e o Coringa sofrem da mesma doença. São criaturas violentas que se relacionam com a violência das grandes cidades. Mas, na vida real, tanto mocinhos como bandidos acabam servindo aos interesses dos poderosos.
Desde sua criação, Batman teve várias fases. Bob Kane e Bill Finger criaram o personagem em 1939. Eram tempos de guerra, crise econômica e desespero social. Em Gotham City, a criminalidade estava à solta e a corrupção era generalizada. O Homem-Morcego era violento e cruel. Quase um marginal.
Mais tarde, o clima de otimismo do pós-Guerra parece ter deixado o super-herói menos implacável. Surgiu Robin, um parceiro mais jovem que dava um toque paternal ao personagem. Nos alegres anos 60, Batman virou comédia de TV. Muitas cores no lugar das sombras. Batman virou o cidadão que respeitava o sinal vermelho até quando perseguia bandidos.
Nos final dos anos 80, imperavam as sombras do neoliberalismo vitorioso. Frank Miller lança a HQ "O cavaleiro das trevas". Resgata a origem escura de Batman. O cinema tentou aproveitar o sucesso. Tim Burton fez a primeira adaptação. Vieram mais três seqüências. O problema é que em todas elas ainda havia uma mistura mal resolvida entre a versão do Batman dos anos 30 e a colorida, dos anos 60.
Só em 2005, "Batman Begins" acerta no ponto. O diretor Chris Nolan baseou seu filme em "Batman: Ano Um" (1988), outra obra-prima de Frank Miller, com desenhos de David Mazzuchelli. Dessa vez, a adaptação foi fiel ao jeito noturno do Homem-Morcego. Talvez, porque já vivíamos a era Bush, com sua violência e intolerância.
Em 2008, Nolan repete a dose com "Batman, o cavaleiro das trevas". O filme tem vida própria, mas inspira-se em "A Piada Mortal" (1988), escrita por Alan Moore e desenhada por Dave Gibbons. A obra procura mostrar que não há grandes diferenças entre o Coringa e o homem fantasiado de morcego. Ambos são doentios.
É este o clima do filme de Nolan. Parece que há algo de muito errado em uma sociedade que precisa dos serviços de um vingador fantasiado. Uma prova disso é o surgimento de imitadores de Batman, que tentam ajudá-lo no combate ao crime, mas só tornam as coisas mais complicadas.
Um diálogo entre Bruce Wayne (Christian Bale) e o promotor público, Harvey Dent (Aaron Eckhart), é revelador. Wayne questiona as ações de Batman. Ao invés de um vingador vestido de negro, ele gostaria de ver em ação um cavaleiro branco da Justiça. E este seria o próprio Dent, conhecido por ser incorruptível e funcionário exemplar. Mas, o promotor defende o Homem-Morcego. Diz que situações de emergência pedem medidas de emergência.
Já o Coringa, interpretado com talento por Heath Ledger, nega que seja um criminoso comum. Ele não está atrás de dinheiro. Só quer se divertir com suas bombas. Não está na vida criminosa porque precisa, nem porque quer. Ele parece ter passado por um trauma que o prendeu naquele papel. "Sou como aqueles cachorros que correm atrás de um carro. Se ele parar, não sei o que fazer", diz o vilão.
Ora, Wayne também passou por um trauma. Quando criança, viu seus pais serem mortos por um ladrão. Daí, resolveu virar um combatente do crime. Uma escolha aparentemente mais saudável do que a de Coringa. No entanto, está sempre a um passo de se tornar violento e arbitrário no mesmo grau. Como Coringa, Wayne também está preso em seu papel.
Em Gotham City, tanto Batman quanto Harvey Dent querem derrotar o crime. Mas, se as leis não forem suficientes para isso, não vacilam em tentar fazê-lo à margem delas. Na vida real, as grandes cidades também têm seus Coringas. São os traficantes de drogas ou bandos organizados, como o PCC. De outro lado, uma polícia violenta, que muitas vezes age ilegalmente em defesa da lei. Por fim, há os grupos de extermínio. As famosas milícias. Grupos violentos que dizem proteger a população das favelas, enquanto arrancam dinheiro dela. No Rio de Janeiro, um deles adotou o nome de "Liga da Justiça". Uma referência a um grupo de super-heróis integrado por Batman e Robin.
No final do filme, o comissário Gordon (Gary Oldman) diz que Batman não é bandido, nem mocinho: “é apenas o Cavaleiro das Trevas”. A escuridão da vida social justificaria os métodos ilegais e violentos do mascarado. No cinema, isso é promessa de mais diversão. Na vida real, é sinal de perigo.
Milícias, crime organizado, polícia violenta, tudo isso é parte da mesma lógica de dominação. A criminalidade toma conta. Mas o combate a ela é pretexto para atingir vítimas bem definidas: pobres, negros, lutadores sociais e cidadãos sem direitos.
Não estamos em Gotham City. Entre Batman, Dent e Coringa, não ficamos com nenhum. Nossas alternativas somente surgirão da consciência de que a violência social é resultado de um conflito de classes. E que se houver alguma saída, ela virá da luta dos de baixo contra os de cima.
Sérgio Domingues
18 de ago. de 2008
Assinar:
Postagens (Atom)