O judeu Clausewitz foge do nazismo e encontra no Brasil outro inferno. Seria uma chance de denunciar o nosso secular terrorismo de Estado. Mas, Daniel Filho desperdiça a oportunidade.
"Tempos de paz" é baseado na peça de teatro “Novas Diretrizes em Tempos de Paz”, de Bosco Brasil. Sua transformação em filme oferecia muitas possibilidades boas. O máximo a que Daniel Filho chegou foi mostrar dois talentosos atores e uma denúncia tímida da ditadura getulista.
A história se passa em 1945, no dia em que a ditadura Vargas liberta seus presos políticos. Fugindo da guerra na Europa, milhares de pessoas chegam ao Rio de Janeiro. Entre elas, está o polonês Clausewitz (Dan Stulbach). Logo que avista a bela paisagem carioca, ele repete a famosa frase do poeta russo Maiakovski: “Dizem que em algum lugar, parece que no Brasil, existe um homem feliz”. Depois, durante o interrogatório a que é submetido pelo funcionário Sigismundo (Tony Ramos), o polonês diz que aprendeu o português porque lhe parecia uma língua falada por bebês. Por gente ainda sem dentes.
Essa imagem do Brasil como paraíso, lugar de inocência e felicidade, parece ser uma constante na mente dos habitantes do Velho Mundo. Remete à famosa carta de Pero Vaz Caminha, que descreve as novas terras como um éden em que “se plantando, tudo dá”. É certo que foi escrita pouco antes da pilhagem que começou e não parou mais. Incluindo o constante estupro das nativas, transformado recentemente em turismo sexual.
Para Clausewitz, artista de teatro, o Brasil era uma promessa de doçura eterna. Onde ele lavraria a terra com suas mãos finas com a mesma facilidade com que declamava textos nos palcos da Europa. O funcionário vivido por Tony Ramos logo quebra suas ilusões. Sem bagagens e bens com que subornar os funcionários, Sigismundo está pronto a fazê-lo voltar ao velho continente. Não o fará se o recém-chegado aceitar um desafio. Fazê-lo chorar contando suas dolorosas lembranças de judeu perseguido.
Clausewitz logo descobre que arrancar lágrimas de Sigismundo é missão quase impossível. O funcionário prestou dedicados e cruéis serviços de torturador para o Estado Novo. No cumprimento do dever, chegou a aleijar as mãos do médico (Daniel Filho) que salvou a vida de sua irmã. Antes disso, foi capanga no interior gaúcho, onde cometia barbaridades ordenadas por seu padrinho.
Desse modo fica claro para o judeu que o mito do paraíso tropical brasileiro foi construído sobre uma história sangrenta. Um genocídio continuado contra índios e negros e estendido aos que ousam desafiar o poder, como os comunistas e lutadores populares em geral. Um jardim sem campos de concentração, mas com os porões lotados de vítimas do terror do Estado. Um território distante da guerra, mas entregando milhares de inocentes à paz dos cemitérios.
Se o filme traz algo de positivo é uma tímida denúncia da sangrenta ditadura de Getúlio Vargas. Foram milhares de presos e torturados pelo homem que costuma ser glorificado até por muitos setores de esquerda. Na verdade um gênio político a serviço dos poderosos. Alguém que aperfeiçoou uma máquina de morte utilizada depois pela ditadura militar e que até hoje funciona em muitas delegacias de polícia, contra pobres e negros. Um dos poucos setores do Estado brasileiro que vem mantendo elevado nível de eficiência. E pronto para ser utilizado novamente contra quem ameaçar os interesses dos que mandam.
O judeu, afinal, arranca lágrimas ao torturador. Não contando suas lembranças, mas encenando o trecho de uma peça. Poderia ser a simbolização de que a arte é tão poderosa que consegue tocar o humano escondido numa besta cruel. Mas, o filme não chega a tanto. E a presença do médico na última cena, tentando intimidar seu carrasco com o olhar, acaba de estragar tudo. Um olhar de reprovação é a punição máxima que as autoridades democráticas de plantão têm coragem de adotar contra os covardes que estiveram a serviço das ditaduras de nossa história.
O inferno tupiniquim continua queimando e sob as ordens da mesma dinastia demoníaca. Às vezes, mudam seus auxiliares. Alguns cumprem suas tarefas de bom grado. Outros, sob a sombra vergonhosa da traição. O jeito é criar condições para que um dia o conflito seja assumido abertamente pelos debaixo. E as diretrizes que passem a valer sejam as da guerra da resistência popular.
24 de ago. de 2009
15 de ago. de 2009
A TV na cesta básica brasileira
Há algum tempo, sabemos que existem mais aparelhos de TV nas residências brasileiras do que geladeiras. Agora, começam a chegar outros meios eletrônicos, como internete e celulares. Aumenta o cerco da vida cotidiana pelos valores capitalistas.
As pesquisas do IBGE vêm demonstrando ano após ano que há residências brasileiras que possuem aparelho de TV, mas nenhuma geladeira. Agora, outras bugigangas eletrônicas também começam a chegar. Em 01 de agosto de 2009, reportagem de O Globo, dizia que o peso dos itens de tecnologia no orçamento das famílias brasileiras vem subindo. São principalmente computadores, celulares e aparelhos de DVD.
Segundo, a reportagem de Bruno Rosa, o maior crescimento aconteceu entre as famílias de classes A e B, com ganho superior a R$ 4.807,00 mensais. Claro que as famílias das chamadas classes A e B são minoria. Mas, reportagem da revista Época de 10 de agosto destaca maior acesso dos segmentos C e D a tecnologias como celulares e computadores pessoais.
Tudo isso seria muito bom. Poderia significar uma democratização no acesso aos meios de comunicação. Não fosse por um enorme detalhe: o monopólio dos meios de comunicação e dos meios de criação de conteúdo em geral. Um setor cujo tamanho explodiu na economia e na vida social. E foi a televisão que abriu caminho. No mundo e aqui, tudo começou com ela.
Aparentemente houve duas grandes explosões de venda de televisores no Brasil. Uma, nos anos 1970. Outra, pouco depois do lançamento do Plano Real. O crédito fácil parece estar na origem dos dois momentos. Porém, da Copa Mundial de Futebol de 94 para cá a TV invadiu também os espaços públicos. Já não há restaurante ou boteco que não tenha sua tela pendurada na parede. O que pode mudar é a programação, mas sempre a cargo de alguma das grandes redes do setor, seja em sinal aberto, seja por assinatura.
Não é preciso fazer um estudo sério, para concluir que tal presença na vida cotidiana da população alterou significativamente sua visão de mundo. É muito difícil que um fato seja conhecido e discutido sem ter passado antes pelas emissoras de TV e seus programas. Quem não assiste TV tem sérias dificuldades para manter algum tipo de conversação com a maioria das pessoas. Daqui a pouco, o mesmo vai acontecer com quem não tem celular e internete.
A internete, o celular e os aparelhos de DVD são bem menos presentes na vida dos brasileiros. Apesar disso, cada um a seu modo complementa o trabalho ideológico da TV.
As promessas de ampla democracia da internete esbarram em seu pouco alcance, mas principalmente em seu domínio por grandes provedores. Sem falar, na pura e simples transposição do material dos grandes produtores de notícias e entretenimentos para a rede mundial de computadores.
Os aparelhos de DVD, por sua vez, são maciçamente utilizados para reproduzir material das mesmas grandes produtoras de filmes. Os celulares nos tornaram trabalhadores em tempo integral. Através deles, ficamos presos ao trabalho quase 24 horas por dia. Mesmo os desempregados precisam de um celular para organizar seus “bicos”.
Marx chamava a predominância da mercadoria no cotidiano capitalista de fetichismo da mercadoria. As coisas ganham vida e controlam os seres humanos. Nossa incapacidade atual de falar uns com os outros sem passar por objetos intermediários, como a TV, o celular e a internete é uma demonstração desse fenômeno.
Pessoas mais idosas devem se lembrar o que era viver sem tudo isso. O espaço do dia que sobrava depois do trabalho não estava necessariamente pautado pelos grandes meios de comunicação. Assistir ao Jornal Nacional e à novela não era um ritual obrigatório. No máximo, já havia o rádio. Mas, sem o apelo arrasador da imagem em movimento.
Claro que também eram raras as reuniões de partido ou assembléias do sindicato. No entanto, relações que envolviam solidariedade e convivência eram mais fortes. Pelo menos, criavam um ambiente de resistência à intensa competição capitalista.
Hoje a TV faz parte da cesta básica. É o que mostram as milhares de antenas de TV espetadas mesmo nos bairros mais pobres. As outras bugigangas eletrônicas ainda estão longe ganhar tanto terreno. Mas, o cerco da vida cotidiana pelos limites impostos pela visão de mundo da classe dominante é cada vez maior.
Nossa sorte é que essa visão de mundo está cheia de furos e contradições. De um lado, os meios de comunicação são obrigados a defender valores como igualdade, justiça, solidariedade, liberdade. Dizer que a organização social que temos é a melhor maneira de conquistar tais valores. Por outro lado, todos os dias acontecem fatos aos montes que desmentem tudo isso. Os próprios meios de comunicação acabam sendo obrigados a mostrar que ter dinheiro, patrimônio e boas relações com o poder está acima da liberdade e da justiça que as novelas e filmes nos ensinam a perseguir.
Cabe à luta contra-hegemônica saber explorar essas contradições. E usar os avançados meios tecnológicos em seu favor. Mas, nessa luta, acabar com o monopólio dos meios de comunicação é fundamental. A mídia empresarial é grande responsável por manter a cesta básica da maioria da população pobre em quantidade e qualidade.
As pesquisas do IBGE vêm demonstrando ano após ano que há residências brasileiras que possuem aparelho de TV, mas nenhuma geladeira. Agora, outras bugigangas eletrônicas também começam a chegar. Em 01 de agosto de 2009, reportagem de O Globo, dizia que o peso dos itens de tecnologia no orçamento das famílias brasileiras vem subindo. São principalmente computadores, celulares e aparelhos de DVD.
Segundo, a reportagem de Bruno Rosa, o maior crescimento aconteceu entre as famílias de classes A e B, com ganho superior a R$ 4.807,00 mensais. Claro que as famílias das chamadas classes A e B são minoria. Mas, reportagem da revista Época de 10 de agosto destaca maior acesso dos segmentos C e D a tecnologias como celulares e computadores pessoais.
Tudo isso seria muito bom. Poderia significar uma democratização no acesso aos meios de comunicação. Não fosse por um enorme detalhe: o monopólio dos meios de comunicação e dos meios de criação de conteúdo em geral. Um setor cujo tamanho explodiu na economia e na vida social. E foi a televisão que abriu caminho. No mundo e aqui, tudo começou com ela.
Aparentemente houve duas grandes explosões de venda de televisores no Brasil. Uma, nos anos 1970. Outra, pouco depois do lançamento do Plano Real. O crédito fácil parece estar na origem dos dois momentos. Porém, da Copa Mundial de Futebol de 94 para cá a TV invadiu também os espaços públicos. Já não há restaurante ou boteco que não tenha sua tela pendurada na parede. O que pode mudar é a programação, mas sempre a cargo de alguma das grandes redes do setor, seja em sinal aberto, seja por assinatura.
Não é preciso fazer um estudo sério, para concluir que tal presença na vida cotidiana da população alterou significativamente sua visão de mundo. É muito difícil que um fato seja conhecido e discutido sem ter passado antes pelas emissoras de TV e seus programas. Quem não assiste TV tem sérias dificuldades para manter algum tipo de conversação com a maioria das pessoas. Daqui a pouco, o mesmo vai acontecer com quem não tem celular e internete.
A internete, o celular e os aparelhos de DVD são bem menos presentes na vida dos brasileiros. Apesar disso, cada um a seu modo complementa o trabalho ideológico da TV.
As promessas de ampla democracia da internete esbarram em seu pouco alcance, mas principalmente em seu domínio por grandes provedores. Sem falar, na pura e simples transposição do material dos grandes produtores de notícias e entretenimentos para a rede mundial de computadores.
Os aparelhos de DVD, por sua vez, são maciçamente utilizados para reproduzir material das mesmas grandes produtoras de filmes. Os celulares nos tornaram trabalhadores em tempo integral. Através deles, ficamos presos ao trabalho quase 24 horas por dia. Mesmo os desempregados precisam de um celular para organizar seus “bicos”.
Marx chamava a predominância da mercadoria no cotidiano capitalista de fetichismo da mercadoria. As coisas ganham vida e controlam os seres humanos. Nossa incapacidade atual de falar uns com os outros sem passar por objetos intermediários, como a TV, o celular e a internete é uma demonstração desse fenômeno.
Pessoas mais idosas devem se lembrar o que era viver sem tudo isso. O espaço do dia que sobrava depois do trabalho não estava necessariamente pautado pelos grandes meios de comunicação. Assistir ao Jornal Nacional e à novela não era um ritual obrigatório. No máximo, já havia o rádio. Mas, sem o apelo arrasador da imagem em movimento.
Claro que também eram raras as reuniões de partido ou assembléias do sindicato. No entanto, relações que envolviam solidariedade e convivência eram mais fortes. Pelo menos, criavam um ambiente de resistência à intensa competição capitalista.
Hoje a TV faz parte da cesta básica. É o que mostram as milhares de antenas de TV espetadas mesmo nos bairros mais pobres. As outras bugigangas eletrônicas ainda estão longe ganhar tanto terreno. Mas, o cerco da vida cotidiana pelos limites impostos pela visão de mundo da classe dominante é cada vez maior.
Nossa sorte é que essa visão de mundo está cheia de furos e contradições. De um lado, os meios de comunicação são obrigados a defender valores como igualdade, justiça, solidariedade, liberdade. Dizer que a organização social que temos é a melhor maneira de conquistar tais valores. Por outro lado, todos os dias acontecem fatos aos montes que desmentem tudo isso. Os próprios meios de comunicação acabam sendo obrigados a mostrar que ter dinheiro, patrimônio e boas relações com o poder está acima da liberdade e da justiça que as novelas e filmes nos ensinam a perseguir.
Cabe à luta contra-hegemônica saber explorar essas contradições. E usar os avançados meios tecnológicos em seu favor. Mas, nessa luta, acabar com o monopólio dos meios de comunicação é fundamental. A mídia empresarial é grande responsável por manter a cesta básica da maioria da população pobre em quantidade e qualidade.
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3 de ago. de 2009
Trama Internacional poupa o verdadeiro vilão
Um filme que tem como vilão um banco poderia ter mostrado os crimes do capitalismo contra a humanidade. Ficou apenas na denúncia de alguns banqueiros maus.
Tom Twyker diz que não fez Trama Internacional pensando na atual crise capitalista. Segundo ele, as filmagens começaram bem antes do estouro da “bolha das hipotecas” nos Estados Unidos. A própria trama mostra que ele diz a verdade. Está longe de ter algo a ver com a crise.
O vilão da história é um banco internacional que financia organizações de espionagem, traficantes, mafiosos e ditadores de países pobres. Clive Owen é o agente da Interpol, Louis Salinger. Ele está em busca de provas contra o poderoso banco junto com a assistente da promotoria de Manhattan, Eleanor Whitman (Naomi Watts).
Seguindo o rastro de operações ilegais, Salinger e Whitman vão dos Estados Unidos à Turquia, passando por Alemanha e Itália. A cena mais marcante é a do tiroteio no famoso Museu Guggenheim, em Manhattan. São 15 minutos de tiros que transformam o lugar num queijo suíço. Correrias e tiros. O filme quase se reduz a esse tipo de ação.
Há um momento no filme em que um executivo do banco negocia com um militar da Libéria, país africano. O banqueiro oferece ao liberiano armas para a tomada do poder e a instalação de uma ditadura no país. O general africano pergunta quanto o banco cobraria por isso. O executivo diz que não cobraria nada porque dinheiro não é a única moeda de troca de seu banco.
Deveria ter dito que nenhum banco trabalha só com dinheiro. Aliás, nem o capitalismo funciona só com dinheiro. Funciona com capital. Que é dinheiro que se transforma em mais dinheiro. Melhor dizendo, valor-de-troca que se transforma em mais valor-de-troca. E valores-de-troca se diferenciam dos valores-de-uso exatamente por não terem uma finalidade determinada. Só existem para serem trocados.
É assim desde os tempos das primeiras atividades comerciais. Só que no capitalismo, a produção de valor-de-troca passa a dominar a vida social. É por isso que as crises capitalistas são causadas por abundância e não por escassez. Não faltam valores-de-uso. Os estoque estão cheios. Falta gente com valor-de-troca suficiente para comprar os valores-de-uso. Os bolsos estão vazios.
Esse processo de circulação tem invadido a vida humana de forma intensa nos últimos 150 anos. Quase tudo ganhou um preço. Da fé religiosa aos créditos de carbono. Ou seja, o acesso à espiritualidade e ao ar que respiramos torna-se cada vez mais uma questão de possuir valor-de-troca. Pode ser dinheiro, mas aceitam-se cartões, cheques pré-datados e ações na bolsa.
Os bancos são só parte mais aparente desse sistema todo. Afinal, são eles que cuidam da compra e da venda de dinheiro em suas mais variadas formas. No entanto, já não é possível separar bancos de empresas. Capital bancário e capital industrial estão juntos há mais de um século. Bancos têm representantes nas direções das grandes empresas para as quais emprestam dinheiro. Empresas têm seus próprios bancos e financeiras. Não há mais separação entre capital produtivo e "capital parasitário". À medida que o valor-de-troca invadiu a vida humana, espalhou seu "parasitismo".
A verdade é que para a circulação do capital pouco importa se o comércio de drogas é ilegal ou não. Ou se o fornecimento de armas é para governos de ditadores ou não. Tabaco e álcool matam mais do que cocaína e maconha, sem disparar um só tiro. Os governos dos Estados Unidos, Inglaterra e Israel são responsáveis por mais mortes violentas no planeta do que todas as ditaduras estúpidas do mundo pobre. E a produção capitalista de alimentos, plástico, automóveis está ameaçando a vida humana sem praticamente desobedecer nenhuma lei.
Transformar os bancos nos únicos vilões é um bom negócio para o capitalismo. Com isso, parece que um dia o sistema pode funcionar bem. O problema é que o filme de Twyker nem isso faz. Os bandidos são apenas alguns banqueiros maus. O que poderia ser uma denúncia do próprio funcionamento do capitalismo vira só uma história sobre homens maus usando um banco para fins criminosos. O verdadeiro vilão, o sistema, escapa sem arranhões. Talvez, porque seu funcionamento torne possível obras como Trama Internacional. E vice-versa...
Tom Twyker diz que não fez Trama Internacional pensando na atual crise capitalista. Segundo ele, as filmagens começaram bem antes do estouro da “bolha das hipotecas” nos Estados Unidos. A própria trama mostra que ele diz a verdade. Está longe de ter algo a ver com a crise.
O vilão da história é um banco internacional que financia organizações de espionagem, traficantes, mafiosos e ditadores de países pobres. Clive Owen é o agente da Interpol, Louis Salinger. Ele está em busca de provas contra o poderoso banco junto com a assistente da promotoria de Manhattan, Eleanor Whitman (Naomi Watts).
Seguindo o rastro de operações ilegais, Salinger e Whitman vão dos Estados Unidos à Turquia, passando por Alemanha e Itália. A cena mais marcante é a do tiroteio no famoso Museu Guggenheim, em Manhattan. São 15 minutos de tiros que transformam o lugar num queijo suíço. Correrias e tiros. O filme quase se reduz a esse tipo de ação.
Há um momento no filme em que um executivo do banco negocia com um militar da Libéria, país africano. O banqueiro oferece ao liberiano armas para a tomada do poder e a instalação de uma ditadura no país. O general africano pergunta quanto o banco cobraria por isso. O executivo diz que não cobraria nada porque dinheiro não é a única moeda de troca de seu banco.
Deveria ter dito que nenhum banco trabalha só com dinheiro. Aliás, nem o capitalismo funciona só com dinheiro. Funciona com capital. Que é dinheiro que se transforma em mais dinheiro. Melhor dizendo, valor-de-troca que se transforma em mais valor-de-troca. E valores-de-troca se diferenciam dos valores-de-uso exatamente por não terem uma finalidade determinada. Só existem para serem trocados.
É assim desde os tempos das primeiras atividades comerciais. Só que no capitalismo, a produção de valor-de-troca passa a dominar a vida social. É por isso que as crises capitalistas são causadas por abundância e não por escassez. Não faltam valores-de-uso. Os estoque estão cheios. Falta gente com valor-de-troca suficiente para comprar os valores-de-uso. Os bolsos estão vazios.
Esse processo de circulação tem invadido a vida humana de forma intensa nos últimos 150 anos. Quase tudo ganhou um preço. Da fé religiosa aos créditos de carbono. Ou seja, o acesso à espiritualidade e ao ar que respiramos torna-se cada vez mais uma questão de possuir valor-de-troca. Pode ser dinheiro, mas aceitam-se cartões, cheques pré-datados e ações na bolsa.
Os bancos são só parte mais aparente desse sistema todo. Afinal, são eles que cuidam da compra e da venda de dinheiro em suas mais variadas formas. No entanto, já não é possível separar bancos de empresas. Capital bancário e capital industrial estão juntos há mais de um século. Bancos têm representantes nas direções das grandes empresas para as quais emprestam dinheiro. Empresas têm seus próprios bancos e financeiras. Não há mais separação entre capital produtivo e "capital parasitário". À medida que o valor-de-troca invadiu a vida humana, espalhou seu "parasitismo".
A verdade é que para a circulação do capital pouco importa se o comércio de drogas é ilegal ou não. Ou se o fornecimento de armas é para governos de ditadores ou não. Tabaco e álcool matam mais do que cocaína e maconha, sem disparar um só tiro. Os governos dos Estados Unidos, Inglaterra e Israel são responsáveis por mais mortes violentas no planeta do que todas as ditaduras estúpidas do mundo pobre. E a produção capitalista de alimentos, plástico, automóveis está ameaçando a vida humana sem praticamente desobedecer nenhuma lei.
Transformar os bancos nos únicos vilões é um bom negócio para o capitalismo. Com isso, parece que um dia o sistema pode funcionar bem. O problema é que o filme de Twyker nem isso faz. Os bandidos são apenas alguns banqueiros maus. O que poderia ser uma denúncia do próprio funcionamento do capitalismo vira só uma história sobre homens maus usando um banco para fins criminosos. O verdadeiro vilão, o sistema, escapa sem arranhões. Talvez, porque seu funcionamento torne possível obras como Trama Internacional. E vice-versa...
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