24 de nov. de 2010

Manifesto Telecomunista: importante contribuição ao debate

O Manifesto Telecomunista, de Dmytri Kleiner, pretende ser uma atualização do Manifesto Comunista para a era da internete. O documento acaba entrando em contradição com alguns princípios defendidos por Marx e Engels. Ainda assim, sua leitura e debate são fundamentais para a luta anticapitalista.

Fazendo uso de categorias marxistas e tendo como referência o Manifesto Comunista, de Marx e Engels, Kleiner procura demonstrar que a internete realmente livre e democrática é incompatível com o capitalismo. Mais do que disso, seria um setor estratégico para a luta pela derrubada do sistema.

O autor começa citando o prefácio à "Contribuição à Crítica da Economia Política", de Marx. Mais precisamente o trecho que diz: "em uma certa etapa do seu desenvolvimento, as forças produtivas materiais da sociedade entram em conflito com as relações de produção existentes". Segundo Kleiner:

“...o que é possível na era da informação está em conflito direto com o que é permitido. Editores, produtores de filmes e a indústria das telecomunicações conspiram junto aos legisladores para reprimir e sabotar as redes livres, para proibir a circulação da informação fora do seu controle”.


Portanto, uma situação que ilustraria a afirmação de Marx. Trata-se de uma conclusão a que não é difícil chegar. Basta olhar para a feroz guerra movida pelas empresas do setor cultural e de diversão para acabar com a pirataria de seus produtos. Objetivo destinado ao fracasso devido ao próprio modo de funcionamento do capitalismo atual. A propriedade privada dos direitos de produção e reprodução do conhecimento humano está destinada a entrar em choque com seu caráter coletivo e social, mesmo que disso não resulte sua derrota.

No entanto, num trecho logo a seguir, o autor exagera o alcance dessa contradição:

“As relações não hierárquicas tornadas possíveis graças a uma rede peer [pessoa a pessoa], como a Internet, são contraditórias com a necessidade do capitalismo de cercamento e controle. É uma batalha até a morte. Ou a Internet como a conhecemos prevalece, ou a vitoria será do capitalismo como nós o conhecemos”.


Sem dúvida a internete tornou-se uma ferramenta que desempenha um papel dos mais estratégicos tanto para a dominação capitalista, quanto para seu próprio funcionamento. A expansão dessa gigantesca rede de terminais de comunicação parece derivar da ampliação do papel desempenhado na atual fase da produção capitalista pelas plataformas digitais. Estas últimas transformaram-se na matriz tecnológica que está presente em praticamente todos os setores da economia.

Da fabricação de computadores à produção de automóveis, do controle de estoques agrícolas ao rastreamento de gado, do gerenciamento de cargas em portos às compras em lojas, da produção de filmes à sua distribuição e divulgação. E, claro, da transferência de bilhões em dinheiro de uma parte do planeta à outra, em segundos. Todas essas e muitas outras atividades dependem de programas de computador em funcionamento integrado.

Com tal peso na vida econômica, o texto de Kleiner constata corretamente o papel estratégico da inovação no setor de comunicações via rede mundial. Daí, também o de seus trabalhadores. Estes são responsáveis pela produção do trabalho vivo que se transforma em trabalho morto ao ser apropriado por seus patrões. Assim, em muitos momentos do processo de produção não apenas o trabalho não pago fica retido pelo capitalista na forma de mais-valia. São seus próprios conhecimentos que são apropriados. De resto, esta é uma regra para o capitalismo desde seu surgimento, como lembra o próprio Kleiner.

Até aí, sem problemas. Mas, as coisas começam a ficar confusas quando o autor defende o que chama de “comunismo de risco”. Este consistiria em:

“...assumirmos o controle de nosso próprio processo produtivo, retendo todo o produto de nosso trabalho, formando nosso próprio capital, em contínua expansão até que, coletivamente, haja riqueza acumulada suficiente para atingir uma maior influência social do que aqueles que defendem a exploração”.


Em outro trecho, Kleiner também explica que:

“O comunismo de risco não deve ser entendido como uma proposta de um novo tipo de sociedade. É uma forma de organização com a qual podemos nos engajar na luta social. Comunas de risco não se destinam a substituir os sindicatos, partidos políticos, ONGs e outros instrumentos de conflito de classe. Mas, deve complementá-los, de modo a inclinar a balança do poder econômico em favor dos representantes dos interesses da classe trabalhadora”.


Salvo engano, Kleiner está se referindo a uma forma solidária e coletiva de organização da produção. Algo muito parecido com as cooperativas de trabalhadores. A grande diferença em relação a estas estaria na base tecnológica sobre a qual funcionaria o comunismo de risco. A tecnologia oferecida pela comunicação em rede seria muito mais adequada a esse tipo de empreendimento do que ao livre mercado capitalista.

Aqui sim, começam os problemas. As iniciativas de economia solidária são importantes formas de resistência. Funcionam, inclusive, como demonstração de que a produção baseada na cooperação solidária é possível.

Ocorre que a feroz concorrência capitalista impõe dois destinos aos quais dificilmente escapam os empreendimentos solidários. Ou são violentamente derrotados no jogo bruto imposto pelos gigantescos monopólios do mercado. Ou se transformam, eles mesmos, em empresas baseadas na exploração do trabalho, ainda que mantenham sua fachada jurídica. Exceções a esta regra jamais ultrapassam a insignificância econômica que as transformem em referência social de peso.

Assim, se a intenção é “inclinar a balança do poder econômico em favor dos representantes dos interesses da classe trabalhadora”, ótimo. É mais um elemento que pode ajudar na luta anticapitalista. E, ao que parece, um elemento poderoso. Já não é o caso se falarmos em “riqueza acumulada suficiente para atingir uma maior influência social do que aqueles que defendem a exploração”. Nesse momento, é possível dizer que o Kleiner se distancia do marxismo.

Uma coisa é a luta que se faz sob o império das relações capitalistas e do Estado que procura garanti-las, através principalmente do controle privado dos meios de produção. Outra é aquela travada em uma fase de transição, em que o controle dos meios de produção se socializou e o Estado precisa se organizar de forma a se extinguir como instrumento de dominação de classe. Neste momento, sim, uma ferramenta como a internete pode ser valiosa na disseminação de relações menos vulneráveis à hierarquia e à centralização autoritária.

Um dos aspectos mais importantes da elaboração política de Marx e Engels, assumido por muitos de seus seguidores, é a impossibilidade de a classe trabalhadora acumular poder material por dentro da sociedade burguesa. Esta foi uma possibilidade histórica explorada vitoriosamente pela burguesia em sua luta contra o feudalismo. Trata-se de um caminho bloqueado para os trabalhadores, em sua condição de despossuídos de meios próprios de produção. Daí, a insistência marxiana e marxista da luta no nível político, ainda que alimentada por lutas e contradições no nível econômico.

O Estado é o nó que dá consistência e coordenação à anarquia produtiva e à feroz competição reinantes no nível da economia capitalista. Além disso, somente através da luta política os trabalhadores, como classe, conseguem romper com a alienação decorrente do caráter fragmentado e desigual dos vários ramos econômicos em que produzem sob a divisão de trabalho capitalista. Não se trata de priorizar a luta institucional, mas de ocupar com firmeza o campo da disputa pelo poder político.

Não há elementos para afirmar que as tecnologias em rede, por mais propensas às relações de produção socializadas, tenham alterado esse quadro. Quando Marx diz que as relações de produção (ou seja, as relações sociais) tornam-se obstáculo às forças produtivas (formas de trabalho, tecnologias, etc) não há como tirar conclusões políticas quase imediatas do tipo a que chega Kleiner.

No trecho de Marx citado por ele, as contradições entre forças produtivas e relações de produção são sintomas de que teve início uma fase em que as revoluções são possíveis. Se elas se concretizarão ou não, a decisão pertence ao campo da luta de classes. Em especial, da luta pela liderança social e cultural dos explorados, que tem no terreno político seu campo de batalha fundamental.

A internete pode ser um caso típico de tecnologia que funcionaria muito melhor em uma sociedade comunista. Mas, daí não se conclui que seja capaz de instaurar relações produtivas desse tipo na atual sociedade em escala suficiente para subvertê-la. Uma evidência disso pode ser encontrada no próprio texto que estamos discutindo. Trata-se da relação entre a web e a internete.

O trecho em questão chama a atenção para o fato de que a “world wide web” e internete não são a mesma coisa. Ao contrário, a primeira engessa e submete a segunda aos interesses das grandes empresas. Nas origens da rede mundial, as conexões eram feitas e se espalhavam com base nas ligações “pessoa a pessoa” (peer to peer). Nos últimos 10 anos, porém, a quase totalidade das conexões por rede somente se estabelecem através de servidores web, pertencentes a grupos econômicos poderosos.

E não só isso. A chamada Web 2.0, diz o autor, nada mais é que a antiga web transformada em fonte de lucros abundantes graças ao trabalho de dezenas de milhões de internautas. São milhares de postagens por minuto que chegam aos poderosos servidores de empresas que controlam portais como Google, Youtube, Facebook, Orkut, Flickr, etc. Material rico e variado obtido gratuitamente e processado a custos próximos do zero.

Desse modo, a internete submetida à Web transformou-se numa grande vitrine para anúncios. E também num enorme e detalhado banco de dados pronto para ser utilizado na elaboração de estratégias de mercado. É uma esplêndida fonte de mais-valia sem qualquer sinal de vínculo empregatício. Mais do que isso, ela utiliza projetos de código aberto, como Linux, PHP, Apache, para capturar o trabalho coletivo que é feito sobre tais programas. Imensa criatividade apropriada por alguns poucos centros altamente lucrativos.

Ou seja, as relações sociais capitalistas castraram e domesticaram uma força produtiva cujo potencial criativo talvez fosse plenamente aproveitado sob o socialismo e comunismo. Achar que é possível alterar esse quadro com base na persistência das conexões pessoa a pessoa sob a intensa pressão do mercado capitalista é ilusão.

Por outro lado, o texto traz várias sugestões em relação a como organizar a produção social sob “bases comunitárias”. Elas têm por modelo os avanços e o acúmulo conquistados no movimento pelo software livre e contra os copyrights. Estão expressos na revisão dos 10 pontos propostos na seção 2 do Manifesto Comunista. Trata-se de trechos do texto original que são substituídos de forma a atualizá-lo. Propostas que devem ser levadas em consideração por quem pensa uma sociedade mais justa.

São especialmente marcadas pela saudável vontade de deslocar do “Estado” as funções de “mutualizar” as relações sociais. Realmente, parece haver certo exagero na presença do Estado nesta parte do documento de Marx e Engels. No entanto, isso seria muito relativizado nas obras posteriores dos autores do Manifesto. Principalmente, após a experiência da Comuna de Paris, em que povo sublevado busca soluções visando à democratização radical das funções estatais.

De qualquer maneira, a proposta de Kleiner só tem a acrescentar e contribuir para o debate e a ação anticapitalista e revolucionária. Deve merecer a atenção de todos os que estão empenhados nesta luta. Em especial, na trincheira da cultura e da informação.

Nota: Dmytri Kleiner é um desenvolvedor de softwares engajado na luta anticapitalista. Lançou seu documento em outubro de 2010 no blog do Institute of Network Cultures. Ainda não foi traduzido do inglês. Há apenas trechos vertidos por Moisés Sbardelotto, que podem ser acessados aqui.

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