Sete minutos, peça de Antonio Fagundes, ataca a imposição de padrões televisivos, mas pode ser vista em DVD. É uma contradição, sem dúvida. Mas é uma contradição interessante.
A peça foi escrita por Antonio Fagundes (a primeira de sua carreira) e dirigida por Bibi Ferreira. O espetáculo começa com uma encenação de Macbeth, de Shakespeare. O personagem de Fagundes (o Ator) está dizendo a famosa frase “A vida é uma sombra que passa ...”, quando é interrompido por uma cascata de tosses de um espectador. Irritado, o Ator sai de cena.
O cenário passa a ser o camarim. O Ator reclama dos constantes barulhos e interrupções que já ouviu da platéia em seus 37 anos de carreira. Papéis de bala, sacos de batatas fritas, celulares, bocejos, pigarros e as inevitáveis tosses. A cena é engraçada, mas começa a parecer apenas um desabafo até que a peça toma outros rumos.
Um mini-debate se instala entre o Ator e a Empresária (Suzy Rêgo). Ele insiste que ninguém respeita ou liga para teatro. Ela pondera que as pessoas não têm dinheiro nem para o ônibus, etc. Ele responde que elas têm dinheiro sim, mas gastam em bingos, vão aos estádios etc. Enfim, mais ou menos como aquelas conversas de boteco que raramente chegam a algum lugar.
Seguem-se cenas muito engraçadas até chegarmos à explicação do fenômeno que inspirou a peça. Trata-se do ritmo imposto pela programação televisiva no Brasil. Para ficar mais claro, apelemos para o próprio texto de Fagundes, na voz de seu personagem:
Somos um País desacostumado ao ato de pensar. Nossa formação cultural tá reduzida àquela dúzia de filmes americanos traduzido em ação, ação...Nosso padrão de televisão, rápido,esperto, ágil, dinâmico, prende a nossa atenção por, no máximo, 7 minutos. O tempo aproximado de cada segmento antes do intervalo comercial. Nada mais nos exige maior reflexão.No DVD, Fagundes comenta que teve a idéia dos 7 minutos desde 1993. No entanto, essa tese também está presente no livro Convite à Filosofia, de Marilena Chauí (Ática, 2000 – pág. 326).
Até mesmo o melhor programa está sujeito a essa lei férrea, do tempo máximo de 7 minutos. Então eu vou ao banheiro, eu tomo café, eu telefono, eu descanso. Eu tenho tempo pra isso. O intervalo comercial, como em nenhuma parte do mundo, dura quase que os mesmos 7 minutos. Divididos em mensagens rápidas de 15, 30 segundos, que prendem a minha atenção, caso eu não tenha mais nada pra fazer, por um espaço de tempo cada vez menor. (...)
Nossos melhores pensamentos, nossas maiores reflexões, nossa mais apurada percepção do mundo, não passam dos 7 minutos a que fomos condicionados. Até mesmo as nossas emoções obedecem a essa regra de tempo. E não é pra menos. A leitura diária dos jornais nos obriga a isso. Mas se fôssemos capazes de manter a nossa indignação por um espaço de tempo maior, só Deus sabe que caminhos estaríamos trilhando agora. (...)
Nossos espetáculos duram mais do que 7 minutos e fazemos assim porque é possível estarmos juntos por mais tempo. Trocando, refletindo, sonhando. Que bom que vocês vieram (...) para dividir as nossas dúvidas, repartir os nossos sonhos e multiplicar as nossas vontades de que tudo isso um dia não passe de uma peça de teatro. Mas sem interrupções...por favor?
De qualquer maneira, o interessante é que o texto de Chauí também fala de um conhecido ensaio do filósofo alemão Walter Benjamin chamado A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica. Este texto fala da rápida reprodução e comercialização das obras artísticas e suas contradições. Marilena Chauí comenta o ensaio de Benjamin chamando a atenção para os aspectos positivos e negativos do fenômeno.
De um lado, ele coloca à disposição da maioria, obras a que apenas uma minoria tinha acesso até então. De outro lado, o capitalismo se apropriou desses avanços para criar toda uma produção e um mercado novos. Mais uma forma de obter altos lucros às custas da banalização da criatividade humana. É a chamada indústria cultural, que, hoje, identificamos facilmente no cinema, na tevê, rádio, discos, e, ao contrário do que sugere Sete minutos, também no teatro.
Afinal, o teatro, apesar de seus 2 mil anos de existência, também vem sendo padronizado pelo ritmo da grande mídia. Um sucesso como Os Mistérios de Irma Vap, por exemplo, não precisou necessariamente seguir ciclos de 7 em 7 minutos, mas tem um ritmo próximo ao que estamos acostumados a ver na tevê. A maior razão de sua aceitação pode ser o talento de seus atores, Ney Latorraca e Marco Nanini. O fator ritmo, no entanto, deve ter colaborado. Esse parece ser o caso de outras peças de sucesso. Principalmente, as de humor, como Trair e coçar é só começar e Caixa dois.
Aí é que entram em cenas as contradições da peça de Fagundes. O ator e produtor faz uma declaração de amor ao teatro, critica o ritmo televisivo, elogia a presença do público, convida-o à proximidade, a abrir mão das certezas. Mas coloca sua peça à venda na forma de um disco digital que pode ser levado para casa e visto de forma quase solitária. Um artefato que permite as interrupções que o personagem de Fagundes pede que não sejam feitas. Que segmenta a obra em faixas, como num disco de música. Cronometra sua duração e permite acelerar ou retardar a exibição.
Mas, não são contradições no sentido negativo. São da mesma natureza daquelas apontadas pelo comentário de Chauí ao texto de Benjamin. A obra de Fagundes denuncia um aspecto importante da indústria cultural, mas faz uso de um seu instrumento para divulgar essa denúncia. Ao dizer o que diz a partir de um palco, Sete minutos faz sua parte junto ao público de teatro. Mas, ao lançar mão do DVD, atinge também um público que já desistiu do teatro ou nunca conheceu sua riqueza devido às pretensas facilidades da telinha. O saldo dessas contradições é positivo.
Por outro lado, é preciso elogiar a iniciativa de Antonio Fagundes. Ele é astro de primeira linha da Globo. Fez 21 novelas e dezenas de minisséries. No cinema, apareceu em 37 longa-metragens. Apesar de todo esse sucesso, nunca deixou os palcos. Aos 51 anos de idade, é ator de teatro desde os 14 anos. Fez mais de 40 espetáculos teatrais. Poderia estar acomodado. Mas preferiu enfrentar a contraditória condição de quem é astro global, mas ama os palcos. Essa peça é a escolha pela paixão do teatro e pela crítica à televisão.
A utilização do formato digital talvez tenha o objetivo de mostrar que não se trata de, pura e simplesmente, condenar a tevê como veículo de comunicação e até de formação. Ela pode e tem que ser melhor do que é. Sete minutos pode ajudar na medida em que funcione como complicador do cotidiano simplificado que todos acabamos por viver. Indo ou não ao teatro, vendo ou não televisão.