Ah, pobres e frágeis membranas da honra. Quem as respeita? Ah, fatalidade. A boa reputação da verdade se foi desde que o dinheiro, este vil dinheiro, passou a ser o único valor.
Esta é uma das frases presentes no mais novo documentário de Jorge Furtado. Ela
foi retirada da peça teatral “O mercado de notícias”, de Ben Jonson, que dá
nome ao filme. Além da importância do tema de que trata, sua exposição
cinematográfica é, como sempre, muito criativa.
O filme se propõe a debater a grande imprensa, seu poder e os interesses
econômicos e políticos a que serve. Por si só, a seleção de entrevistados seria
suficiente para despertar a atenção do público. Entre eles, Mino Carta,
Raimundo Pereira, Janio de Freitas, Geneton Moraes e Bob Fernandes. Mas para
tornar o filme ainda mais interessante, Furtado intercalou aos depoimentos
trechos da peça de Jonson.
Há vários aspectos importantes na produção, mas o que mais chama a atenção são as
contradições entre a divulgação de notícias e os custos de sua produção. Pois é
disto que se trata. A peça de Jonson foi encenada pela primeira vez em 1626. Quase
200 anos antes de entrar em funcionamento a primeira rotativa a permitir a
impressão de mais de mil exemplares por hora. Era um equipamento movido pelo
vapor. A mesma fonte de energia que impulsionou a Revolução Industrial que
lançaria o capitalismo em sua trajetória fulminante como primeiro meio de
produção universal.
Mas o vapor, o petróleo, a energia elétrica ou nuclear, nenhuma dessas fontes
de energia se compara com uma força muito mais poderosa. Na obra de Jonson esta
tremenda potência é personificada por uma bela e jovem donzela, vestida em
luxuosos trajes dourados. Trata-se de Dona Pecúnia, sempre ladeada por suas
damas de companhia, Hipoteca, Norma, Promissória e Taxa. Como se vê, é do
dinheiro que se trata. A mercadoria criada com a única função de intermediar a
troca das outras mercadorias. Tão inútil em si mesma, quanto imprescindível
para a vida regida pelas trocas mercantis.
Dona Pecúnia nem sempre foi tão poderosa, ainda que muito cobiçada. Durante
séculos, muitos podiam viver sem ela, sem correr risco de morrer ou padecer
sofrimentos terríveis. Os servos, camponeses, escravos, proletários ou plebeus
em geral raramente colocavam os olhos em Dona Pecúnia durante suas curtas e
penosas vidas. Somente sob o capitalismo, a bela donzela começou a ganhar
importância inédita e passou a circular generalizadamente por entre a elite e o
povo, sem pudor e reservas. E cada vez mais poderosa.
É diante deste poder que a obra de Jonson coloca em questão um novo ramo
comercial surgido naquele século 17. Precisamente, o mercado de notícias que um
dos personagens da peça deseja explorar fazendo uso da herança deixada pelo
pai. Trata-se de Pila Jr, que pretende reforçar sua posição no novo mercado
casando-se com Dona Pecúnia.
Mas a nova mercadoria não se presta facilmente a encomendas. Em um determinado
momento, alguém solicita uma notícia na medida de seus interesses. Um dos
empregados responde não ser possível comprometer a credibilidade do negócio
desta maneira.
Corta para uma das afirmações mais contundentes dentre os depoimentos prestados
por jornalistas experientes. Janio de Freitas diz que “o jornalismo feito no
Brasil é feito por empresas capitalistas interessadas no lucro”. E que é um
erro pensar que “um jornal é editado para fazer jornalismo. Na verdade,
continua ele, o jornal é editado para publicar publicidade. O jornalismo é o
recheio do entorno dos anúncios”. E disse mais. O papel dos jornalistas é
subalterno e sua função primordial “é proporcionar a melhor tiragem para obter
a venda mais fácil e o melhor preço do espaço publicitário no jornal”.
Ora, a afirmação de Freitas não é simplória. É verdade que a imprensa nasce e se
desenvolve como uma empreitada em busca de lucros. Mas, tal como diz o
personagem da peça de Jonson, ainda em tempos artesanais do jornalismo, a credibilidade
é uma das características mais importantes dessa mercadoria específica. Do
contrário, seria relativamente simples desmascarar os interesses por trás desta
ou daquela empresa de comunicação. Bastaria relacionar sua produção noticiosa
com os interesses de seus principais anunciantes, combinando-os com os
desdobramentos na esfera política, como o apoio a este ou aquele partido,
governo, regime etc. Estaria feito um diagnóstico capaz de mostrar que não se
trata de divulgar notícias “objetivas”, “isentas”, “neutras”, mas de preservar
interesses alheios aos dos leitores e à divulgação democrática da informação. Dona
Pecúnia seria surpreendida em plenas conjunções carnais com os proprietários e
controladores da grande mídia.
Mas não é assim que funciona. Falta a este cenário uma personagem importante,
mas que não aparece na peça de Jonson. Para continuarmos no domínio das
alegorias, chamemos esse personagem de Madame Hegemonia, cujas façanhas foram
melhor reveladas por outro gênio. Desta vez, não um teatrólogo, mas o pensador
comunista italiano Antonio Gramsci, uns 300 anos depois do surgimento da obra
do dramaturgo inglês. Se a “maior tiragem” de que fala Freitas é um elemento ao
qual deve se subordinar a produção de notícias, é Madame Hegemonia a responsável
por assegurar a mais importante das qualidades da fabricação noticiosa: a
credibilidade.
As receitas de Madame Hegemonia para conseguir a tal credibilidade são muitas,
variadas, criativas. Os ingredientes são elementos da realidade, crenças,
costumes, hábitos, preconceitos, medos. Muito disso tudo é antigo. O que parece
novo, frequentemente é apenas coisa reciclada. A senhora Hegemonia atua há
muito tempo, mas, como vimos, só foi descoberta recentemente.
No jornalismo da grande imprensa, Madame Hegemonia age por meio das empresas de
comunicação, mas Gramsci preferiu chamá-las de Aparelhos Privados de Hegemonia.
E é assim mesmo quando elas controlam concessões públicas. A propriedade desses
aparelhos não é privada, mas os interesses que defendem, sim.
Os patrões e gerentes dessas empresas têm suas próprias receitas para cumprir
aquilo que Madame Hegemonia recomenda. Mas todas fazem a combinação daqueles
ingredientes citados acima. Eles sabem que não é possível mentir simplesmente.
Ou apenas omitir e distorcer. Ou, ainda, dizer tudo com clareza e chamar as
coisas por seus nomes. Eles fazem tudo isto, mas em doses e combinações
variadas, de modo que pareça tudo muito verossímil. Mais do que isso, de modo
que tudo o que divulgam pareça mero produto de uma leitura objetiva dos fatos.
Um retrato da realidade.
Um bom exemplo é mostrado pelo filme no episódio do quadro de Picasso. Vamos
transcrever a explicação do caso a partir do próprio site da produção de
Furtado:
Em março de 2004, o jornal Folha de S. Paulo publica na capa de sua edição de domingo (07.03.2004), sob o título “Decoração burocrata”, uma reportagem informando que um valioso “desenho do pintor espanhol” Pablo Picasso “passa os dias debaixo de luzes fluorescentes e em meio à papelada de uma repartição do governo federal”, dividindo sua “moldura com restos de inseto”. Na foto, além da reprodução do supostamente valioso desenho, um retrato do Presidente Lula. O sentido da matéria é claro: os novos ocupantes do governo federal não reconhecem e não sabem lidar com o valor da arte. A notícia do suposto descaso com tão valiosa obra aparece em vários jornais, revistas e sites, no Brasil e no exterior. A observação atenta de alguns leitores logo deixa evidente que se trata de uma “barriga”: o tal desenho de Picasso é, na verdade, de uma reprodução fotográfica, sem nenhum valor. Os jornais são alertados de seu erro, mas nenhum desmente a informação. Em dezembro de 2005, o “Picasso do INSS” está outra vez na capa da Folha de São Paulo (29.12.2005) e também na do Estado de S. Paulo: um incêndio destruiu parte do prédio do INSS mas, para alívio de todos e apesar do descaso dos órgãos públicos, o “valioso” Picasso foi salvo das chamas. Mais uma vez os jornais são alertados por leitores de que se trata de uma reprodução sem valor, mas nada noticiam.(www.omercadodenoticias.com.br)
Como diz o texto acima, a matéria tinha um sentido político. Era uma reportagem
pensada para ridicularizar o governo petista, mas de modo discreto e sutil.
Usou elementos presentes na realidade, como o quadro, a repartição etc. Supôs o
valor do quadro como sendo aquele de uma obra autêntica de Picasso. Não citou o
governo Lula, apenas o retrato do presidente ao fundo, na parede da sala em que
estava o suposto Picasso. Mentiu sobre seu valor ou, pelo menos, cometeu o erro
de não conferir a autenticidade da obra ou dar-se o trabalho de pesquisar para
saber se não havia um original em outro lugar. O jornal também fez ouvidos de
mercador para os leitores que avisaram sobre o erro. Afinal, poderia dizer o
jornal em sua defesa, foi apenas uma matéria, sem maiores pretensões.
É verdade. A reportagem não pretendia derrubar um governo. De forma alguma,
influenciou diretamente na conquista de votos contrários às candidaturas
petistas ou de seus aliados em eleições posteriores. Mas juntou-se a uma série
de outros elementos parecidos no sentido de minarem a credibilidade do governo,
ao mesmo tempo em que reafirmava seu próprio compromisso com a descrição da
realidade. Por outro lado, procurava mostrar que a “alta cultura”, a cultura
dos museus e dos palácios, jamais será reconhecida por simplórios que vieram da
pobreza e da produção fabril. E que alguém assim não está preparado para
governar. Quem é incapaz de saber o valor de coisas como aquela, também é incapaz
de administrar outras coisas, como o dinheiro público, o patrimônio público etc.
Estes são apenas alguns dos elementos que aparecem diariamente em dezenas de
jornais e veículos da grande mídia. Eles vão mantendo e fortalecendo um senso
comum conservador, elitista, preconceituoso. Não precisam derrubar um governo,
nem mesmo fazer oposição aberta a ele. Basta que reforce o cerco que o mantém
domesticado, dócil, inofensivo. É assim que Madame Hegemonia age.
Esta má vontade da grande mídia com o governo Lula é destacado por vários
entrevistados. Mas talvez, exatamente por isso, o documentário pudesse ter
discutido essa outra personagem que não estava na peça de Jonson. A astuciosa
Hegemonia. Afinal, muitos dos petistas que estão poder acham que disputam os
encantos dela. Que a estão seduzindo pouco a pouco para ficar a seu lado. Mas
isso jamais acontecerá enquanto sua outra companheira, Pecúnia, continuar
prisioneira de alguns poucos senhores poderosos. No jornalismo da grande
imprensa, Dona Pecúnia está sob total controle dos monopólios empresariais da
comunicação. Inclusive, com ajuda de polpudas verbas publicitárias oficiais.
Enquanto for assim, Madame Hegemonia continuará a piscar os olhos na direção
dos petistas e seus aliados, enquanto permanece em fogoso concubinato com nossos
inimigos.
No enredo da vida real faltam outras figuras alegóricas, como a companheira
Democratização da Mídia, a irmã Solidariedade, a camarada Organização, os
aliados da Mídia Alternativa e, principalmente, os guerreiros da Consciência de
Classe e os combatentes da Contra-Hegemonia. Sem que esses personagens entrem
em cena, o jornalismo continuará mandando as notícias que interessam a Dona
Pecúnia e Madame Hegemonia.