Em
1974, 40 anos atrás, Peter Davis lançava o documentário "Corações e
Mentes", sobre a guerra do Vietnã. A obra do cineasta estadunidense marcou
época ao denunciar o engajamento americano no conflito como um erro. Como diz
um dos entrevistados, ex-assessor de Bob Kennedy, “Nós não estamos do lado
errado. Nós somos o lado errado”.
Logo no início da produção, surgem as imagens do presidente Lyndon Jonhson
fazendo um discurso. No pequeno trecho destacado, ele afirma que uma vitória
americana no Vietnã dependeria do coração e da mente do povo daquele país. Mas
o filme de Davis mostra que o destino do conflito também envolvia os corações e
mentes do povo estadunidense.
Davis utiliza um vasto material audiovisual de maneira muito inteligente. É o caso
das imagens mostrando soldados americanos circulando por entre a população
vietnamita em Saigon. De um lado, homens altos, robustos, envergando fardas
novas. De outro, nativos baixos, muito magros, com a pele queimada pelo sol e
vestindo roupas humildes.
Na zona rural, este contraste é ainda maior e mais violento. Aldeias inteiras
são bombardeadas por aviões. No solo, soldados americanos brutalizam homens e
mulheres, crianças e idosos acusando-os de serem cúmplices do inimigo. Sob o
olhar desesperado dos aldeões, os militares ianques colocam fogo na palha que
cobre o teto de suas casas.
Foi “Corações e Mentes” que popularizou as imagens que mostram uma menina
correndo vietnamita sem roupas, queimadas juntamente com sua pele por napalm.
Ou o tiro disparado à queima roupa na cabeça de um vietnamita, com as mãos
algemadas, na rua e em plena luz do dia.
Outro recurso utilizado por Davis foi a discrepância entre imagens mostrando
cerimônias e eventos patrióticos americanos e as cenas terríveis de uma guerra
travada contra um povo militarmente muito mais fraco. É o orgulho nacional
tornando-se arrogância imperialista. O espalhafatoso orgulho cívico é
igualmente confrontado com imagens de grandes manifestações em meio aos
monumentos de Washington.
Mas há também curiosos contrastes entre momentos diferentes de um mesmo
depoimento. Isso acontece quando veteranos falam sobre suas expectativas e
experiências em campo de batalha. No início de seus testemunhos, estes homens
falam do orgulho de servir seu país, da nobreza da causa, da expectativa de grandes
feitos militares e da eficácia técnica de seus modernos armamentos.
Os depoimentos estão divididos em trechos distribuídos ao longo do filme. Aos
poucos, eles vão se tornando amargurados e perdem a aparente convicção inicial.
E à medida que isso acontece, a câmera deixa de enquadrar apenas os rostos dos entrevistados
para mostrar seus corpos mutilados pela guerra. Alguns deles participam de
manifestações e eventos pela retirada das tropas americanas do território
vietnamita.
Ainda como parte desse jogo de contrastes extremos, é muito citada a sequência
que compara o depoimento de um general americano às cenas de um funeral
coletivo no Vietnã. O alto oficial ianque afirma: “Os orientais não dão o mesmo
valor à vida humana que os ocidentais. A morte não é nada para eles”. Ao mesmo tempo,
são mostradas imagens de uma senhora desesperada que tenta se atirar à cova de
um parente e de uma criança chorando dolorosamente a perda de alguém de sua
família.
O filme foi lançado já em meio à retirada total das tropas ianques de
território vietnamita, após serem derrotadas vergonhosamente. Os protestos
populares contra a participação americana no conflito começaram em 1960, um ano
após o envio das primeiras forças militares. Portanto, o filme já é produto de um
clima de profundo mal-estar em relação àquela intervenção militar na Indochina.
Mais que isso, o material que exibe é ele próprio grande responsável pela
virada da opinião pública estadunidense contra a guerra.
Por outro lado, é muito provável que “Corações e Mentes” tenha colaborado para
transformar a traumática derrota americana em uma onda contra-hegemônica que,
pela primeira vez, questionou em escala de massa as ações imperialistas
estadunidenses pelo mundo.
Um movimento que colocou em xeque também o consenso e os dispositivos de
dominação que justificavam e alimentavam aquelas ações. Em especial, o racismo,
a ditadura do partido único democrata-republicano, um Estado muito vulnerável
às pressões do fundamentalismo judaico-cristão, os monopólios da grande mídia e
um enorme aparato estatal de repressão, controle e vigilância.
Se a Segunda Guerra pode ser considerada o conflito que contou com a maior
cobertura fotográfica até então, a Guerra do Vietnã juntou às imagens fixas uma
abundante cobertura televisiva. A
transmissão simultânea e em cores das sangrentas consequências que todas as
guerras provocam entravam em contradição com a narrativa relativamente limpa e
romântica das produções cinematográficas sobre a guerra contra o nazifascismo,
por exemplo. Com o agravante de que o poderio bélico muito inferior do inimigo
“vietcongue” enfraquecia as tentativas do governo americano de criar uma imagem
dos inimigos como orientais fanáticos e cegos pela disciplina comunista.
Este erro a cúpula militar americana não voltaria a cometer na Guerra do Golfo
de 90/91, por exemplo. A cobertura jornalística passou a ser cada vez mais
controlada diretamente pelo Pentágono. Para isso conta com o auxílio
entusiasmado da mídia empresarial, que exerce autocensura ou veta reportagens
de seus próprios repórteres.
Esta blindagem contra a divulgação dos crimes de guerra cometidos pelas tropas
estadunidenses começou a apresentar algumas rachaduras com a popularização da
tecnologia móvel e interligada mundialmente. Imagens digitais feitas por civis,
forças anti-imperialistas ou pelos próprios soldados americanos vazam por entre as brechas do
bloqueio militar-midiático.
No entanto, a internete, principal canal para a circulação desse tipo de informação,
também começa a mostrar limites cada vez mais rígidos. Por um lado, há o uso de
seu fluxo de dados pelos serviços de inteligência imperialistas para identificar
e perseguir críticos a suas ações. Por outro lado, a natureza crescentemente
fragmentária e fragmentada da rede mundial dificulta a divulgação das denúncias
para muito além dos círculos de esquerda.
Como há 40 anos, a questão decisiva continua a ser a criação de uma ampla
reação contra-hegemônica. Continua a envolver a disputa por corações e mentes.
8 de dez. de 2014
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