O texto abaixo é de junho de 2004. Em 2018, quando se completam os 50 anos da obra-prima de
Kubrick, vem a calhar sua republicação, principalmente por seu caráter
didático. Uma qualidade que não é do texto em si, uma vez que apenas comenta criticamente
o conteúdo oferecido por uma página que apresenta uma das interpretações possíveis
para o filme.
Há
uma ótima página na internete, que explica o filme de Stanley Kubrick: “2001:
uma odisseia no espaço”. O endereço é https://www.kubrick2001.com.
Mas é de difícil acesso para quem não tem conexão rápida. Assim, este texto vai
resumir seu conteúdo e aproveitar para fazer uns comentários sobre a bela obra
de Kubrick.
A
página ilustra o filme com animações bem feitas. A primeira parte mostra o
alvorecer da humanidade, na África pré-histórica. Cerca de 4 milhões de anos
atrás, surge no planeta uma espécie de laje negra fincada em posição vertical
no solo. É um monólito. A espécie animal que entra em contato com o estranho
objeto é o “Australopithecus Afarensis”, considerado o primata mais próximo do
ser humano atual.
O monólito,
diz o texto da página, apresenta-se como um desafio aos macacos. Eles o tocam.
As características desses animais seriam o medo, curiosidade e a coragem. Estas
qualidades e não o monólito é que levariam a espécie a transformar pedaços de
ossos em ferramentas. Descoberta que faria a espécie se diferenciar dos outros
animais.
Da
descoberta da primeira ferramenta, o filme de Kubrick passa diretamente para o
ano de 2001, em que as ferramentas, agora, são espaçonaves que viajam pelas
estrelas. A espécie também mudou. É o “Homo Sapiens”. Ainda segundo a versão
apresentada pelo site, ele é civilizado, racional e científico. Mas está em um
novo ambiente: o espaço sideral. Ali, ele perde o controle de suas ferramentas.
Na cena que mostra o interior sem gravidade da espaçonave, a caneta flutua, a
aeromoça precisa andar com cuidado em seus sapatos magnéticos, a comida
sintética parece uma papinha de criança e até a ida ao banheiro necessita de
instruções especiais para evitar acidentes desagradáveis. É a volta à infância.
Cientistas,
os mais sabidos dos “sapiens”, vão à Lua para verificar a descoberta de um
misterioso monólito negro, descoberto por acaso em escavações numa cratera. No
momento em que se preparam para tirar uma foto do objeto, este dispara um sinal
sonoro em direção a algum lugar nas proximidades de Júpiter.
Novo
corte. Agora, uma espaçonave viaja em direção a Júpiter em missão aparentemente
rotineira. A espaçonave é administrada pelo computador HAL-9000. Dois
tripulantes humanos limitam-se a aguardar a chegada a seu destino, enquanto o
resto da equipe está em estado de animação suspensa. Uma espécie de hibernação
para suportar a longa viagem.
Velhos macacos inúteis
Hal,
diz a apresentação, observa os colegas humanos e lhes dá as seguintes
características: são entediantes e entediados. São dependentes de coisas cada
vez mais artificiais. Precisam simular uma espécie de morte para viajar. São
espécies no final de sua evolução. A ferramenta mais moderna do ser humano, o
computador, começa a achar que não precisa mais dos velhos macacos. De repente,
Hal alerta para um defeito em uma antena. Uma inspeção revela que não parece
haver nada de errado com o mecanismo. Hal insiste no diagnóstico e recomenda
sua substituição. Os tripulantes concordam, mas Hal descobre que pretendem
desligá-lo, se continuar a apresentar problemas. O computador acredita que está
vivo e pretende defender seu direito à vida.
Um
dos astronautas sai para substituir a antena. O computador usa um módulo de
deslocamento espacial, que está sob seu comando para matar o astronauta. O
outro astronauta parte para resgatar o corpo do colega, mas é impedido de
retornar à nave. No entanto, o que Hal considera ser um velho macaco usa de
criatividade para voltar à nave e desligar o computador. A ferramenta utilizada
para fazer isso é a velha e boa chave de fenda. “Uma ferramenta como você,
Hal”, diz o texto da página. Pouco antes de desligar o computador, o astronauta
descobre que a missão tinha um objetivo secreto. De conhecimento apenas de Hal.
Tratava-se de descobrir o destino do sinal emitido pelo monólito a partir da
cratera lunar.
O
ser humano derrota a ferramenta rebelde, mas com o computador desligado, a nave
já não é operacional. O astronauta está sozinho. Vai enfrentar o desconhecido e
as forças sobrenaturais que o trouxeram até aqui. A bordo de um módulo
espacial, o astronauta faz uma viagem por dimensões espaciais e temporais.
Acaba chegando a um quarto de hotel. “O quarto é o palco de Kubrick para o
último ato do filme”. Seria a quarta dimensão. Seu desafio final é sua própria
morte.
Virando estrela
Envelhecido
e curvado, o astronauta se dirige a uma mesa para fazer “a última ceia do
homem”. Esbarra num copo que espatifa no chão. “O copo está quebrado, mas o
vinho ainda está lá”, diz a apresentação. Já não há recipiente, mas o conteúdo
ainda existe. Seria o mesmo em relação ao espírito e ao corpo.
“Entendeu,
homem?”, pergunta o texto da página. “Sua evolução dependeu tanto de sua
tecnologia que ela quase substituiu você. E no final tentou destruí-lo. E
agora? Sem suas ferramentas e com seu corpo quase perecendo? O que restou de
você?”. A resposta é que ele está pronto para dar o próximo passo na evolução.
Os alienígenas atraíram um exemplar de nossa espécie para levá-lo a uma
transição para um estágio superior. A famosa cena final mostra um feto dentro
de um útero flutuando no espaço. O ser humano ultrapassa a fase da existência
material e da utilização de materiais. Transformou-se em energia. É a criança
estrela. Bonito, não? A página vale a visita.
No
entanto, também provoca outras reflexões. Afinal, a abertura da apresentação
cita uma frase do próprio diretor: “Todos são livres para especular sobre os
significados filosóficos e alegóricos de ‘2001’”.
Em
primeiro lugar, a teoria da evolução jamais disse que seres humanos são
ancestrais diretos dos macacos. No máximo, trata-se de primos de mesma
linhagem. A imagem usada pelos evolucionistas não é aquela famosa, em que uma
fila começa com um chipanzé e termina com um cidadão branco e de terno. A não
ser que coloquemos alguém como George W. Bush no final (ou no início?) da
conhecida sequência, não há uma ligação direta entre primatas e seres humanos.
A imagem mais fiel é a de uma moita. Em que os ramos crescem para vários lados
e não necessariamente para cima. No entanto, podemos tratar a ligação direta
feita por Kubrick como um recurso didático e estético admissível.
Ferramenta ou porrete?
Por
outro lado, a explicação do site não menciona o fato de que, no filme, a
descoberta do uso do osso como ferramenta deu-se mais precisamente como arma. A
última sequência da primeira parte do filme mostra um bando de Australopithecus
matando um inimigo usando o osso como um porrete. E a reação de Hal, matando um
dos tripulantes e ameaçando o outro, dá coerência a essa visão da ferramenta
como instrumento de violência. Algo compreensível para a época do filme. No
final dos anos 60, havia a guerra do Vietnã e a temperatura da guerra fria
estava longe de aumentar, com a ameaça sempre presente de tiroteios atômicos
entre Estados Unidos e União Soviética.
Compreensível,
mas sujeito a críticas. Essa imagem da diferença entre seres humanos e animais
localizada na ferramenta tem pontos de contato com a concepção marxista. Tal
concepção entende que o que nos diferencia dos outros habitantes vivos do
planeta é o trabalho. Não o trabalho automático de abelhas ou formigas. Mas o
trabalho projetado pela mente. É como diz Marx na famosa passagem de “O
Capital”. Ele admite que “uma abelha, embora só possua instinto, pode superar
em habilidade, vários arquitetos”. No entanto, "o que distingue, à
primeira vista, o pior dos arquitetos, da mais hábil das abelhas, é que aquele
constrói suas células na cabeça, antes de fazê-lo na colmeia".
O
problema é que a imagem da ferramenta parece concentrar a ideia de trabalho
apenas em seu aspecto utilitário. Na capacidade de fabricar coisas, e não de
projetá-las. Na verdade, uma concepção adequada à forma em que a sociedade
atual vive a experiência do trabalho. As pessoas cumprem tarefas que não fazem
sentido porque são feitas a partir de determinações de outros e para que outros
façam uso dos produtos resultantes. É como o operário que fabrica um automóvel.
Não tem voz ativa na projeção e execução do trabalho e muito provavelmente não
chegará a consumir o produto final.
Este, por sua vez, foi projetado por um engenheiro, que também não teve
autonomia para desenhar o automóvel. Nem mesmo os donos da empresa têm total
autonomia. É um mercado cada vez mais monopolizado e sob concorrência selvagem
que dá a palavra final. Isso tudo não anula o fato de que o trabalho do
operário é mais alienado e aborrecido do que o do engenheiro. E de que os
patrões têm um enorme grau de controle sobre suas próprias vidas e a de seus
trabalhadores.
Melhor que virar estrela é
acabar com os parasitas
A
solução para esse dilema no filme de Kubrick aparece com a tradicional receita
de Arthur C. Clarke, autor do livro que inspirou o filme. Trata-se de se livrar
das coisas materiais. Virar estrela. Para nós, parece mais plausível tornar a
atividade humana menos aborrecida. Com cada indivíduo fazendo sua parte sabendo
por que o faz. Mas para isso é preciso discutir as condições sociais em que
vivemos. Elas não vão mudar apenas com melhorias tecnológicas. Ao contrário,
ferramentas sofisticadas sob estruturas sociais injustas somente sofisticam a
exploração e a injustiça. Não se trata de virar estrela, mas de afastar as
pessoas de atividades perigosas, insalubres, tediosas. Isso seria perfeitamente
possível com o atual avanço tecnológico, mas seria preciso acabar com a
parasitária função dos capitalistas.
Por
fim, uma questão delicada. A transição entre o animal e o ser humano ainda é um
ponto complicado para os estudiosos mais sérios. Engels, por exemplo, apresentou
algumas respostas em seu famoso texto “Sobre o papel do trabalho na
transformação do macaco em homem”, de 1876. Nele, há a seguinte passagem:
Primeiro o
trabalho, e depois dele e com ele a palavra articulada, foram os dois estímulos
principais sob cuja influência o cérebro do macaco foi-se transformando
gradualmente em cérebro humano - que, apesar de toda sua semelhança, supera-o
consideravelmente em tamanho e em perfeição. E à medida que se desenvolvia o
cérebro, desenvolviam-se também seus instrumentos mais imediatos: os órgãos dos
sentidos. Da mesma maneira que o desenvolvimento gradual da linguagem está
necessariamente acompanhado do correspondente aperfeiçoamento do órgão do
ouvido, assim também o desenvolvimento geral do cérebro está ligado ao aperfeiçoamento
de todos os órgãos dos sentidos.
Como
se vê, Engels introduz a importante questão da linguagem. Da comunicação, da
simbologia. Mas como um determinado animal passou a falar simbolicamente, além
de simplesmente emitir um repertório limitado de sons, movimentos e cheiros? É
possível estabelecer uma ligação direta entre o “desenvolvimento gradual da
linguagem” e o “aperfeiçoamento de todos os órgãos dos sentidos?”.
Estas são apenas algumas das questões que
provocam e vão provocar ainda muita controvérsia. Mas respostas bonitas como as
que ensaiou Kubrick nos ajudam a, pelo menos, fazer as perguntas.