O filme pode ajudar na denúncia da triste realidade da vida na periferia das grandes cidades. Mas é uma obra que não vai chegar à maioria dos pobres urbanos. Superar esta distância não é uma tarefa do cinema comercial. É dos próprios explorados e oprimidos.
O título da obra de Walter Salles e Daniela Thomas refere-se à brincadeira em que vários jogadores controlam uma bola com os pés entre si sem deixá-la cair no chão. Simboliza bem a situação que o filme mostra. São quatro jovens da periferia paulistana, cuja mãe é solteira, trabalha como empregada doméstica e está grávida do quinto filho. Em meio aos problemas típicos da juventude pobre, os quatro tentam manter a bola no alto. Ou seja, ficar longe do crime, das drogas, da miséria e da apatia.
As dificuldades para arranjar emprego, melhorar o salário ou apenas consumir são enormes. Um deles é motoboy e fazer isso em São Paulo significa ganhar a vida com uma das ocupações mais violentas, cansativas e mal pagas do mundo. O outro é aspirante a jogador de futebol. Tem talento, mas não consegue entrar nos grandes clubes porque não tem dinheiro para pagar o “jabá”. O terceiro é evangélico e trabalha num posto de gasolina, agüentando todo tipo de humilhação por parte do patrão. O caçula, ainda criança, vive atormentado por não saber quem é seu pai.
“Linha de passe” é muito bem feito. Com ótimo elenco e direção. Mas, se o filme tem uma grande qualidade é a denúncia da realidade cruel da vida na periferia das grandes cidades brasileiras. Principalmente, para jovens e mulheres. Para quem cobra um cinema mais ligado à realidade e à necessidade de sua transformação, é um bom filme. Poderia até ser útil na luta contra a hegemonia dominante.
Mas, não é bem assim. Em primeiro lugar, ele deve ficar restrito a um público pequeno. Mais da metade da população brasileira nunca foi ao cinema. E a maioria dos que vão ao cinema, gastam seus trocados em filmões americanos e assemelhados. O público de estréia da obra de Salles e Thomas foi de 33 mil espectadores. Na mesma época, a estréia do americano “Hellboy” atraiu quase 150 mil. Por outro lado, 98% das casas brasileiras possuem pelo menos um aparelho de TV. Ou seja, é possível dizer que o cinema não atinge as multidões brasileiras.
Em segundo lugar, está a própria reação do público que seria o mais interessado. Estamos falando dos pobres das periferias urbanas. A Folha de São Paulo e a Unicef organizaram uma sessão do filme para 250 pessoas moradores da periferia pobre de São Paulo. Segundo o jornal, as reações não foram muito positivas. Os convidados disseram não ter gostado do clima triste. Reclamaram da imagem sempre negativa da periferia. Argumentaram que comunidades pobres têm muitos momentos de alegria, de solidariedade e é rica em iniciativas culturais e festivas. E nada disso apareceu em “Linha de passe”.
É impossível saber se essas opiniões correspondem ao que pensaria a maioria da população pobre de uma cidade, caso assistisse ao filme. Mas, é muito provável que a produção realmente não agradasse esse tipo de público. É bem possível que as pessoas que não gostaram de “Linha de Passe” na sessão especial estejam acostumadas a assistir filmes, seriados e novelas com o padrão Globo “de realidade”.
Estamos falando de obras de ficção que podem até apresentar algum tipo de problema social. Denunciar os preconceitos, a violência e outras questões que fazem parte da realidade da maioria. Mas, tais iniciativas acabam neutralizadas pelos esquemas do final feliz. Pela sensação de que a vida é assim mesmo. Pela idéia de que de um modo ou de outro, tudo vai se encaixar. Enfim, de que basta sermos perseverantes, pacíficos e, principalmente, respeitadores da ordem e dos poderes constituídos para tudo dar certo.
É possível afirmar que a grande maioria dos espectadores de “Linha de passe” é formada por pessoas com escolaridade alta, bom nível de informação e cultura e senso crítico em relação à realidade social. Trocando em miúdos, gente que já está ganha para uma certa sensibilidade em relação aos problemas da realidade social. A questão é que este tipo de público ou é muito pequeno para tentar mudar essa realidade, ou nem tem interesse em fazê-lo.
Claro que “Linha de passe” vai chegar à TV, um dia. Mas, será mostrado em meio a novelas, séries, filmes e outros programas que incentivam o conformismo. Além disso, deverá ser exibido tarde da noite, para um público parecido ao que já o teria visto no cinema.
Em outras palavras, “Linha de passe” não é um elemento típico da grande mídia. Não atinge multidões e não defende idéias que procuram levar à comodidade social. Mas também não tem os elementos necessários para ser utilizado na luta contra a hegemonia dominante por si só.
Como ele, há centenas de filmes, talvez. Mas, são exibidos em pequenas salas, freqüentadas por gente de classe média das metrópoles. Nesse circuito ficam inofensivos e servem mais para aliviar a consciência dos mais preocupados socialmente.
O fato é que à medida que os grandes monopólios da mídia invadem a vida cotidiana, mais isola as pessoas em suas salas e quartos. Mais afasta de contatos comunitários e associativos. De tal modo que até a TV pode se dar ao luxo de falar de problemas sociais em alguns de seus programas. Seus controladores sabem que a maior parte dos telespectadores permanecerá apática. A grande mídia não determina apenas aquilo que se vê, mas também o modo como se vê.
Apesar disso tudo, não se trata de fazermos filmes no estilo da Globo ou de Hollywood para chegar às multidões. O ideal mesmo é que os próprios setores explorados e abandonados das grandes cidades produzam seus próprios bens culturais. Não adianta cobrar dos filmes comerciais que mostrem a resistência, a solidariedade e a riqueza cultural das periferias. Eles não são feitos para isso. Quem deve começar a fazer cinema e outros produtos audiovisuais são os setores organizados das próprias comunidades pobres.
Infelizmente, não adianta esperar financiamentos governamentais para esse tipo de atividade. Isso seria entrar num terreno que já pertence aos grandes meios de comunicação e de produção cultural. E é mais fácil fazer uma revolução social no Brasil do que desmontar esses monopólios. Uma produção desse tipo só poderá surgir da iniciativa das organizações populares. De preferência, unidas em redes.
Por outro lado, a tecnologia atual barateou a produção áudio-visual. Continua difícil, mas já não é impossível produzir material que seja atraente, inteligente e contra-hegemônico. Que combine denúncia, diversão, poesia, beleza e qualidade técnica. E o uso da internete permite alcançar públicos maiores.
As organizações e entidades populares de esquerda devem se manter na luta pela democratização dos meios de comunicação. Devem exigir políticas públicas de apoio à cultura popular. Mas, faz parte dessa luta a produção de seus próprios bens e armas culturais. Seu próprio arsenal de comunicação, educação e formação. A partir das lutas e da vida dos explorados. E isso inclui aproveitar algumas lições do trabalho de bons diretores, como Walter Salles, Daniela Thomaz e outros profissionais do cinema comercial.
Sérgio Domingues
3 de out. de 2008
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Um comentário:
Muito fueda.
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