A série Jornada nas Estrelas denunciava injustiças e preconceitos. Mas, jamais a ordem social que os produz. Por isso, sempre ficou no meio do caminho. O novo filme de J.J. Abrams quase dá meia-volta.
Jornada nas Estrelas é uma marca de grande sucesso na ficção científica do cinema e da TV. O seriado chegou à TV em 1966. O cenário americano da época incluía a Guerra do Vietnam, a Guerra Fria, a luta contra o racismo, um movimento feminista cada vez mais forte, uma juventude contestadora e, claro, a corrida espacial entre Estados Unidos e União Soviética.
Gene Roddenberry criou a série de olho em tudo isso. A espaçonave de Kirk voava pelo futuro, mas seus episódios falavam de temas muito presentes. O nome Enterprise batizou vários navios de guerra americanos. A nave tinha como missão “buscar novas formas de vida, novas civilizações”. Sempre com objetivos pacíficos. Em plena Guerra Fria, o aspecto militar só aparecia em segundo plano.
Era o auge da luta pelos direitos civis para os negros. A tripulação comandada por Kirk incluía uma oficial negra eficiente e com personalidade. Era a tenente Uhura, cujo nome, em Suahili, quer dizer “Liberdade”. Um agrado para a causa dos negros e para a luta feminista.
Em um dos episódios, os habitantes de um planeta estão em guerra. Todos eles têm metade do corpo negra e a outra branca. Mas, os que são negros no lado esquerdo desprezam os que são brancos do mesmo lado. Este é o motivo da guerra. Kirk e sua tripulação não conseguem convencê-los do absurdo dessa situação. Eles acabam se destruindo, transformando o episódio numa condenação à intolerância racial.
A Enterprise está a serviço da Federação dos Planetas Unidos, “uma organização política econômica, social e cultural fundamentada no conceito da diversidade”. Por isso, a série deve ter sido a primeira a mostrar a convivência pacífica e tolerante entre seres de espécies e planetas totalmente diferentes. Entre suas rígidas regras está a primeira diretriz. Ela proíbe a interferência em outras civilizações, seja política e ideológica, seja como mera presença física. Uma espécie de respeito às culturas jamais observado pelos impérios em geral.
Por outro lado, toda essa boa vontade era mal engolida pelos executivos da NBC, rede que lançou o seriado. Muitos episódios com temas radicais ficaram moderados antes de ir ao ar. Essas dificuldades e o medo de perder audiência mais conservadora, limitaram as possibilidades de denúncia social da série.
Todas as mulheres da tripulação vestiam mini-saias. A maioria fazia o gênero “loira burra” e dificilmente ocupava postos de comando. Reinava a ordem masculina, mesmo entre os alienígenas. Ao mesmo tempo, os vilões mais tradicionais eram os Klingons. Tinham a pele escura e, podiam ser facilmente confundidos com povos considerados selvagens pela visão imperialista. Ou seja, os africanos e não brancos em geral.
Portanto, é verdade que o seriado denunciava o racismo, o machismo, a violência militar etc. O problema é que isso só ia até certo ponto. Defesa da diversidade cultural, da igualdade entre sexos e do respeito às etnias, tudo bem. Mas, a ordem tem que ser mantida. Mesmo que seja a mesma ordem que alimenta o racismo, o machismo, o desprezo a culturas diferentes etc. Parece a organização em guetos da sociedade americana. Respeita os diferentes desde que eles fiquem nos lugares que lhes são destinados.
As grandes produções cinematográficas que vieram depois também andaram nessa direção. Sempre fazendo o discurso politicamente correto, mas justificando a ordem geral. De um lado, salvamentos de baleias e dispositivos que recriam a vida natural destruída pela estupidez humana. De outro, seres estranhos que ameaçam a paz, a ordem e o progresso da Federação. Frota Estelar neles!
O mais recente filme da série foi dirigido por J.J Abrams. Seu desafio é conquistar novas gerações para uma criação quarentona. O resultado é bem sintomático. Kirk (Chris Pine), Spock (Zachary Quinto), McCoy (Karl Urban), Uhura (Zoe Saldana), Sulu (John Cho), Scott (Simon Pegg) e Chekov (Anton Yelchin) estão saindo da adolescência. Apesar de sua juventude, todos eles acabam assumindo o comando da Enterprise meio no susto. Mas, não há problema. Saem-se muito bem na missão.
Por outro lado, o talento de Kirk está no sangue da família. Seu pai morreu como herói de guerra ainda jovem. Por isso, o capitão Pike (Bruce Greenwood) não tem dúvidas de que Kirk também será um sucesso. E estava correto. No mundo esclarecido e avançado de Jornada nas Estrelas, a coragem e talentos hereditários continuam valendo.
O vilão da vez veio do passado. O romulano Nero (Eric Bana) é o próprio bárbaro ignorante e estúpido. É o bastante para que o trapaceiro Kirk e o correto Spock deixem suas diferenças de lado e se unam. Tudo em nome do combate ao desordeiro da vez.
Tudo isso parece realmente voltado para os jovens atuais. É como boa parte deles se acostumou a ver as coisas. Não é preciso se preparar para nada. É só chegar e assumir o comando. Muitos jovens pensam que é possível saltar das telas dos videogames para a vida real sem fases intermediárias. Não à toa, Kirk utiliza seu talento de hacker para trapacear na simulação por computador do treinamento da Academia da Frota.
Esse tipo de atitude é diariamente reforçado pelo consumismo reinante. Principalmente, pelo consumo do prazer. E este cada vez mais só é atingido pelo ato de consumir. Um círculo viciado que não leva a lugar algum. Sensações sem reflexão. Só sensações. Como os mais novos e belos efeitos do filme de Abrams.
A série Jornada nas Estrelas trouxe idéias belas e interessantes. Olhou para a raça humana com esperança. Imaginou avançados recursos tecnológicos combinados com relações sociais justas e solidárias. Mas, nunca deixou de ser um produto comercial. Como tal, ficou presa ao circuito do capital, que para se reproduzir precisa de relações desiguais e egoístas.
“Audaciosamente indo aonde nenhum homem jamais esteve”, diz o lema de Jornada nas Estrelas. Uma frase que já foi interpretada positivamente. Mas, em tempos neoliberais, tornados ainda mais feios pela desgraça militarista de George Bush, o último dos filmões parece muito mais pragmático do que otimista. Star Trek não apenas parou no meio do caminho. Trocou a audácia pela covardia de permanecer no lugar em que a raça humana estancou paralisada: os tempos atuais.
26 de mai. de 2009
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6 comentários:
Nã vi o mais novo filme ainda, mas já li várias resenhas críticas na imprensa da esquerda. Parece pessíma mesmo.
Saudações de um fã do velho Star Trek.
Abraços, Sean
Não vi o filme, mas adorei a crítica.
Saudações das entidades somáticas imaginárias sem base...
"Não vi o filme, mas adorei a crítica", foi o comentário mais absurdo que já li na minha vida.
Os textos desse blog parecem todos iguais. Iguais como a produção fordista e massificada qual era feita pelos braços do proletariado soviético. Todos denunciam as mesmas coisas e, sendo generalizadores, acabam injustos e reducionistas.
Tá ficando pop, Sérgio, já pintam olavetes com a mesma crítica de sempre.
E mexer em vespeiro dá nisos, Star Trek é quase sagrado. E eu nçao vi o novo filme, mas esperava algo assim.Gene Rodemberry eralimitado pelo óbvio, ele era emrpegaod e um veículo movido pela necessidade de acomodação, por mais avançado que fosse, mais não poderia ser. Já hoje o diretor é um dos mais lucrativos produtores de Tvamericana eligado diretamente aprodutos que nemna linguagem avançam muito, embora avancem no uso de tecnologia e roteiros intrincados.Fazer o que?
Sergio, bem interessante a sua análise.
Nunca tinha pensado por este prisma, ainda não vi o novo filme.
Vamos ver o que penso a respeito.
Valeu pelos toques.
Bração
Gilson, o comentário do anônimo que me acusou de fordismo foi uma medalha. Minha intenção é denunciar sempre a mesma coisa. E defender várias outras. Bem melhores.
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