Texto de 2005
"Senhora do Destino" atrai 45 milhões de telespectadores diariamente. Reportagem da revista Veja explica bem o fenômeno. Mas não tira a conclusão necessária. A de que a estratégia das novelas globais é totalitária. Algo que vem sendo construído há 40 anos.
A novela "Senhora do Destino" da TV Globo foi para a capa da Veja de 09/02/2005. O motivo disso não é apenas a boa relação entre as duas maiores porta-vozes dos interesses conservadores. Segundo o Ibope a novela de Aguinaldo Silva tem uma audiência de cerca de 45 milhões de pessoas diariamente. Em 2 de fevereiro, ela teria sido assistida em 80 de cada 100 lares do País.
Por incrível que pareça a matéria de Veja é até bem feita. Claro que não tem uma vírgula de críticas. Mas, aplica um raio-x no esquema global de novelas que pode nos ajudar a entender as razões para tanta audiência. Pra começar destaca o uso da velha e atraente oposição entre o Bem e o Mal. No caso, as personagens Maria do Carmo (Suzana Vieira) e Nazaré (Renata Sorrah). Ricardo Valladares, autor da reportagem, explica que "na literatura e na dramaturgia 'sérias' as fronteiras entre bem e mal tendem a ser borradas". É verdade. O jornalista também diz que "uma das principais marcas da ficção popular tem sido a falta de pudor em dividir o mundo de maneira muito definida entre luz e trevas. Isso vale para o folhetim escrito, tanto quanto para o eletrônico". Um raciocínio correto, sem dúvida. Mas, para sermos coerentes com ele, teríamos que colocar a revista para a qual Valladares trabalha na categoria de folhetim, dada a facilidade com que trata os movimentos sociais como demônios.
A reportagem destaca que mesmo essa surrada fórmula que opõe bonzinhos e vilões apela para truques novos. Um deles é fazer de Nazaré uma espécie de "vilã de desenho animado", segundo as palavras de Aguinaldo Silva. A reportagem explica que a maldosa mulher "já apanhou e viu sua máscara cair em diversas situações. Sempre se reergue, ainda que estropiada". Renata Sorrah confirma essa idéia. Diz que é comum crianças lhe pedirem autógrafo mais do que seria normal para alguém que interpreta uma verdadeira bruxa má. Sinal de que a máquina de fazer novelas da Globo está sintonizada com a crescente adaptação infantil ao mal inevitável. Algo que vem sendo gradualmente trabalhado por desenhos animados, vídeo-games, filmes e programas de tevê. Não sem a enorme ajuda de uma realidade extremamente violenta.
Definindo o que as famílias devem conversar
Mas "Senhora do Destino" vai muito além da conhecida exploração da rivalidade entre mal e bem. A reportagem fala da já conhecida capacidade das novelas globais em introduzir temas polêmicos em suas tramas. E "Senhora do Destino" parece ter chegado ao máximo nesta fórmula. Há um casal feminino de homossexuais vivido por Eleonora (Mylla Christie) e Jenifer (Bárbara Borges). Glória Menezes faz o papel da baronesa de Bonsucesso, que sofre da doença de Alzheimer, comum entre idosos. Reginaldo (Eduardo Moscovis) é prefeito da fictícia Vila São Miguel. É o próprio modelo de político corrupto e conta com o apoio da mulher, Viviane (Leticia Spiller) para suas bandalheiras. Outro tema presente é a gravidez na adolescência, através da personagem Lady Daiane (Jéssica Sodré). E ainda há a violência doméstica, de que é vítima Rita (Adriana Lessa). Pobre e a negra, a personagem era uma esposa submissa que levava surras do marido, do qual felizmente se livrou. Cada um desses temas são abordados do modo mais didático e avançado possível. Os diálogos viram aulas sobre tolerância, prevenção, ética na política, condenação ao machismo, etc.
Qual é o problema nisso tudo? Em primeiro lugar, alguns temas são tratados de forma meio enfeitada. Por exemplo, o casal lésbico é vivido por duas atrizes consideradas bonitas. Um primeiro passo para amenizar a rejeição preconceituosa do público. Além disso, segundo a reportagem de Veja, o casal também conta com a simpatia da audiência "graças à forma como se construiu a relação de ambas. Elas tiveram a aprovação dos pais, vão morar juntas e pretendem adotar um filho". Sem dúvida, um caso raro.
No entanto, muitos diriam, com razão, que se trata de uma obra de ficção, não de um documentário. Está bem. Daremos o devido desconto. O problema é outro. É a tentativa sempre renovada pela Globo para preencher todos os espaços de pensamento e reflexão. A matéria de Valladares fala das novelas. Identifica corretamente a estratégia da emissora. Vejam o que ele diz: "Ao longo dos anos, os autores da Rede Globo refinaram uma série de técnicas para conquistar a atenção do público. São referências críticas na trama ao cenário político nacional, a abordagem de assuntos polêmicos como a homossexualidade ou a violência doméstica (que assim entram na pauta de conversa das famílias) e a prestação de informações sobre doenças e outras aflições do brasileiro - o chamado 'merchandising do bem'". É isso mesmo. Com a desculpa de que faz propaganda do bem, a Globo define o que deve ou não deve entrar na "conversa das famílias".
Separação entre realidade e aparência acomoda preconceitos
Ao mesmo tempo, há uma ilusão aí. Exatamente por ser algo de cima pra baixo, imposto pelo monopólio dos meios de comunicação, é que os efeitos desse "merchandising do bem" tendem a ser superficiais. Não mudam necessariamente comportamentos violentos, preconceituosos, desonestos etc. Ao contrário, estimulam os comportamentos de fachada. Que não vão às raízes dos problemas. É só observar o resultado de pesquisas sobre racismo. Por exemplo, em 2003 o Núcleo de Opinião Pública (NOP) da Fundação Perseu Abramo fez uma pesquisa nacional sobre a questão. O resultado surpreende: 90% da população diz existir racismo e, no entanto, só 19% manifestam preconceito.
Há uma grande separação entre realidade e aparência, que acomoda a sociedade a seus conflitos de classe, cor, orientação sexual, etc. O problema é que a tal "propaganda do bem" não tem qualquer correspondente na realidade. Os preconceitos não nascem apenas da pouca informação, da falta de diálogo etc. Medidas como mais escolas, emprego, mais informação e melhor qualidade de vida não diminuem automaticamente o preconceito. No entanto, criam condições para que isso aconteça.
Enquanto essas medidas não são colocadas em prática, as classes dominantes vão reinando tranqüilas. Fazendo uso não só da exploração, mas da divisão que os preconceitos e a violência causam entre os de baixo. E as novelas da Globo são parte importante dessa acomodação. São 45 milhões de pessoas vendo diariamente a imagem de uma vida mais justa e esquecendo de suas próprias desgraças.
Basta ver como as novelas impregnam toda a programação da poderosa emissora. Logo após o meio-dia, o "Vídeo-Show" mostra trechos de novelas, entrevista seus atores e diretores, faz jogos para ver quem acerta mais questões sobre novelas novas e antigas. Durante a tarde, novelas antigas são repetidas em "Vale a pena ver de novo". A partir das 17:30h, "Malhação" inaugura a maratona de folhetins, interrompida apenas pelo Jornal Nacional. E este último, sempre teve mais atores do que jornalistas na apresentação do que parecem ser mais imagens bem feitas do que notícias. O "Casseta e Planeta" avacalha as novelas, o "Faustão" só elogia. O fato é que todos colaboram para fazer "as famílias conversarem" sobre as produções globais.
Enfim, a reportagem de Valladares é bem feita, apesar de ter sido publicada na mais conservadora e pior revista do País. Deve ser por isso mesmo que a matéria não mostra que toda essa capacidade dramatúrgica da Rede Globo está a serviço de uma estratégia totalitária. Que quer impor tudo o que ela pensa a todos. Sem deixar espaço para ninguém mais, a não ser para seus amigos poderosos. Uma estratégia de quem vem há 40 anos fazendo o jogo do poder participando dele, combatendo os movimentos sociais da forma mais inteligente e destrutiva. Pela guerra das idéias, pela omissão e distorção. Exibindo somente os pedaços da realidade que interessam aos poderosos. Falando de preconceitos, apenas para que circulem e se multipliquem de maneira mais comportada.
Aos 40 anos, a Globo continua pretendendo ser senhora de nosso destino. Continua se achando acima do bem e do mal. Cabe a nós dar fim a essa grande e poderosa fábrica de preconceitos
30 de out. de 2011
15 de out. de 2011
Romantismo, cinema e TV
Acreditem, o romantismo é um protesto contra a sociedade capitalista. O estranho é que Hollywood e a Globo usem e abusem desse tipo de protesto.
Texto de novembro de 2004
O que é o romantismo? Qualquer pessoa na rua responderia a essa pergunta citando canções de Roberto Carlos e até de Chico Buarque. Ou poemas de Vinícius, novelas de Janete Clair e filmes como “Love Story”, de Arthur Hiller (1970) “E o vento levou”, de Victor Fleming (1939) e até “Olga”, de Jayme Monjardim (2004). Aliás, uma das críticas mais comuns a este último filme é o fato de terem transformado a vida dos militantes comunistas, Olga e Prestes, num melodrama digno das novelas da Globo. Mas há os que defendem a produção exatamente por isso. “Afinal”, dizem eles, “para fazer chegar a história do casal comunista ao grande público é preciso dar lhe um formato bonito e atraente. Usar uma linguagem a que ele já está acostumado. Falar de amor e paixão”. O problema é: por que para ser atraente, uma obra cinematográfica ou televisiva precisa ser romântica? O que é o romantismo, afinal?
Uma vez Karl Marx disse algo assim: “O romantismo nasceu com o capitalismo e vai morrer com ele”. Por que? Porque o romantismo é um protesto contra a sociedade capitalista. É isso mesmo. Uma afirmação como esta deve ser uma surpresa para quem está acostumado a pensar em novelas, filmes, canções de amor, poesias melosas, como coisas que justificam uma vida conformada diante do capitalismo. Mas vamos com calma.
Tentemos definir o romantismo com a ajuda de um dos teóricos marxistas mais inteligentes e criativos da atualidade. Trata-se de Michael Löwy. Em um livro escrito com Robert Sayre chamado “Romantismo e Política”, os autores dizem “que a visão romântica é por essência uma reação contra as condições de vida na sociedade capitalista”. Mais especificamente, contra o “desencantamento” da vida. Um mundo onde impera o valor-de-troca. Uma sociedade fundada sobre o dinheiro e sobre a concorrência, que separa os indivíduos em “nômades egoístas, hostis e indiferentes aos outros”. Mas isso não significa que todo romântico é ou pode tornar-se socialista.
Existem vários romantismos, como existem várias formas de ser anticapitalista. Alguém que defenda o retorno à Idade Média, por exemplo, é anticapitalista. Quer a volta dos tempos dos cavaleiros e suas armaduras, dos reis e padres dominando a sociedade. Quadro bonito, mas ordinário. Afinal, quer a volta de uma opressão sobre a mulher ainda maior do que a que vemos hoje. Da religião autoritária, impondo sua fé a todos e castigando os que se recusam a segui-la. De reis e nobres parasitas vivendo da exploração de seus servos.
O mesmo pode ser dito sobre visões que idealizam a sociedade grega ou romana. Acham que nelas, sim, a inteligência, a elegância, a bravura imperavam. Esquecem que também imperavam a escravidão, um machismo que considerava a mulher um ser de segunda classe e até um autoritarismo que fez Sócrates se envenenar. Uma produção famosa de Hollywood que faz esse tipo de elogio a um passado nobre é “E o vento levou”. O casal principal do filme pertence ao galante mundo do sul dos Estados Unidos, arrasado pela Guerra Civil. Um lugar que seria bonito, se não tivesse sido construído com o sangue de milhões de escravos negros.
Também há romantismo de esquerda
Por outro lado, também há romantismos de esquerda. Aqueles que imaginam uma sociedade de iguais, onde não há propriedade privada, nem opressão sobre o semelhante. Esse tipo de romantismo costuma ver seu modelo nas tribos indígenas ou nas antigas sociedades pré-históricas. Imagina utopias, com justiça e liberdade. São como alguns socialistas utópicos dos séculos 18 e 19.
Além desse desconforto com o capitalismo, o romantismo também se caracteriza pela valorização do indivíduo. O desenvolvimento da idéia do sujeito individual está ligado ao nascimento e ao funcionamento do capitalismo. Afinal, para os patrões, é cômodo que cada trabalhador se considere um ser isolado e em competição com os outros trabalhadores. Alguém que pode vencer sozinho e não com seus camaradas do sindicato, do partido, da associação.
O romantismo também valoriza o indivíduo, mas num sentido heróico e dramático. Alguém que enfrenta as dificuldades da vida, do amor não correspondido ou do amor proibido, como em Romeu e Julieta. E o capitalismo é o exato contrário disso. É o culto do sujeito egoísta, preso a suas mesquinharias, aos valores materiais. O amor apaixonado é o oposto do casamento por conveniência, preso às convenções sociais. É o sentimento que precisa vencer os preconceitos de classe, de raça, de religião etc.
Outra característica do romantismo é a busca da totalidade. A comunhão do ser humano com a natureza, com o universo. Algo que o capitalismo não permite ao dividir a existência humana em tarefas parceladas, ao aprofundar a separação entre campo e cidade, esmagar até nossa compreensão das coisas sob uma avalanche de informações rápidas e desligadas entre si.
Indiana Jones, Romeu e Julieta, Olga e Prestes
Se o romantismo é tudo isso, ele é bom? Nem bom, nem ruim, necessariamente. O romantismo faz parte das contradições criadas pelo capitalismo. E quando ele se manifesta nas artes, essas contradições ficam mais visíveis. Mas, os produtores de filmes, novelas, os editores de livros, sabem usar essas contradições para dialogar com os anseios do público, mantendo-os amarrados à concepção de mundo burguesa.
É possível fazer uma novela e um filme não românticos. Existem muitos deles. Mas, os românticos acertam ao atingir diretamente a experiência de vida da grande maioria das pessoas. A experiência de indivíduos que se sentem sozinhos, mesmo quando estão em multidões. Que amam com medo de serem abandonados. São abandonados e temem começar a amar novamente. Querem fugir da vida chata e frustrante que vivem na realidade. Se identificam com as figuras heróicas como Indiana Jones, com lugares longínquos como a Terra Média, de “O Senhor dos Anéis”. Querem ser os casais trágicos como Romeu e Julieta ou Prestes e Olga. As pessoas se encantam com a natureza que é mostrada na televisão. A novela “Pantanal”, de Benedito Ruy Barbosa (1990), por exemplo. Os telespectadores se deliciam com novelas de época, onde o passado é reduzido a uma vida mais simples e inocente. É o caso de “Cabocla”, em exibição atualmente. São formas de fugir de um presente ou de um lugar incômodos.
Enfim, o romantismo é a linguagem que mais se aproxima da experiência concreta da maioria de nós. Começar a entender esse fenômeno é um bom começo para discutir como as obras estéticas atingem grandes multidões. Também é uma forma de construir caminhos para o diálogo. Muitos de nós já passaram pela experiência de tentar exibir filmes políticos para pessoas sem formação política. Cada vez mais, um “Encouraçado Potenkim”, de Sergei Eisenstein (1925), é menos suportável para quem já se acostumou aos padrões dos filmões americanos e produções da Globo. Roncos na sala de exibição não são raros.
O que fazer? Transformar o “Manifesto Comunista” em uma minissérie? Mostrar a história da Revolução Russa como um dramalhão mexicano? Não é o caso. Mas é preciso pensar e discutir mais sobre as produções culturais para os grandes públicos. Do contrário, só nos resta o caminho dos cineclubes voltados somente para alguns heróis românticos de esquerda.
Texto de novembro de 2004
O que é o romantismo? Qualquer pessoa na rua responderia a essa pergunta citando canções de Roberto Carlos e até de Chico Buarque. Ou poemas de Vinícius, novelas de Janete Clair e filmes como “Love Story”, de Arthur Hiller (1970) “E o vento levou”, de Victor Fleming (1939) e até “Olga”, de Jayme Monjardim (2004). Aliás, uma das críticas mais comuns a este último filme é o fato de terem transformado a vida dos militantes comunistas, Olga e Prestes, num melodrama digno das novelas da Globo. Mas há os que defendem a produção exatamente por isso. “Afinal”, dizem eles, “para fazer chegar a história do casal comunista ao grande público é preciso dar lhe um formato bonito e atraente. Usar uma linguagem a que ele já está acostumado. Falar de amor e paixão”. O problema é: por que para ser atraente, uma obra cinematográfica ou televisiva precisa ser romântica? O que é o romantismo, afinal?
Uma vez Karl Marx disse algo assim: “O romantismo nasceu com o capitalismo e vai morrer com ele”. Por que? Porque o romantismo é um protesto contra a sociedade capitalista. É isso mesmo. Uma afirmação como esta deve ser uma surpresa para quem está acostumado a pensar em novelas, filmes, canções de amor, poesias melosas, como coisas que justificam uma vida conformada diante do capitalismo. Mas vamos com calma.
Tentemos definir o romantismo com a ajuda de um dos teóricos marxistas mais inteligentes e criativos da atualidade. Trata-se de Michael Löwy. Em um livro escrito com Robert Sayre chamado “Romantismo e Política”, os autores dizem “que a visão romântica é por essência uma reação contra as condições de vida na sociedade capitalista”. Mais especificamente, contra o “desencantamento” da vida. Um mundo onde impera o valor-de-troca. Uma sociedade fundada sobre o dinheiro e sobre a concorrência, que separa os indivíduos em “nômades egoístas, hostis e indiferentes aos outros”. Mas isso não significa que todo romântico é ou pode tornar-se socialista.
Existem vários romantismos, como existem várias formas de ser anticapitalista. Alguém que defenda o retorno à Idade Média, por exemplo, é anticapitalista. Quer a volta dos tempos dos cavaleiros e suas armaduras, dos reis e padres dominando a sociedade. Quadro bonito, mas ordinário. Afinal, quer a volta de uma opressão sobre a mulher ainda maior do que a que vemos hoje. Da religião autoritária, impondo sua fé a todos e castigando os que se recusam a segui-la. De reis e nobres parasitas vivendo da exploração de seus servos.
O mesmo pode ser dito sobre visões que idealizam a sociedade grega ou romana. Acham que nelas, sim, a inteligência, a elegância, a bravura imperavam. Esquecem que também imperavam a escravidão, um machismo que considerava a mulher um ser de segunda classe e até um autoritarismo que fez Sócrates se envenenar. Uma produção famosa de Hollywood que faz esse tipo de elogio a um passado nobre é “E o vento levou”. O casal principal do filme pertence ao galante mundo do sul dos Estados Unidos, arrasado pela Guerra Civil. Um lugar que seria bonito, se não tivesse sido construído com o sangue de milhões de escravos negros.
Também há romantismo de esquerda
Por outro lado, também há romantismos de esquerda. Aqueles que imaginam uma sociedade de iguais, onde não há propriedade privada, nem opressão sobre o semelhante. Esse tipo de romantismo costuma ver seu modelo nas tribos indígenas ou nas antigas sociedades pré-históricas. Imagina utopias, com justiça e liberdade. São como alguns socialistas utópicos dos séculos 18 e 19.
Além desse desconforto com o capitalismo, o romantismo também se caracteriza pela valorização do indivíduo. O desenvolvimento da idéia do sujeito individual está ligado ao nascimento e ao funcionamento do capitalismo. Afinal, para os patrões, é cômodo que cada trabalhador se considere um ser isolado e em competição com os outros trabalhadores. Alguém que pode vencer sozinho e não com seus camaradas do sindicato, do partido, da associação.
O romantismo também valoriza o indivíduo, mas num sentido heróico e dramático. Alguém que enfrenta as dificuldades da vida, do amor não correspondido ou do amor proibido, como em Romeu e Julieta. E o capitalismo é o exato contrário disso. É o culto do sujeito egoísta, preso a suas mesquinharias, aos valores materiais. O amor apaixonado é o oposto do casamento por conveniência, preso às convenções sociais. É o sentimento que precisa vencer os preconceitos de classe, de raça, de religião etc.
Outra característica do romantismo é a busca da totalidade. A comunhão do ser humano com a natureza, com o universo. Algo que o capitalismo não permite ao dividir a existência humana em tarefas parceladas, ao aprofundar a separação entre campo e cidade, esmagar até nossa compreensão das coisas sob uma avalanche de informações rápidas e desligadas entre si.
Indiana Jones, Romeu e Julieta, Olga e Prestes
Se o romantismo é tudo isso, ele é bom? Nem bom, nem ruim, necessariamente. O romantismo faz parte das contradições criadas pelo capitalismo. E quando ele se manifesta nas artes, essas contradições ficam mais visíveis. Mas, os produtores de filmes, novelas, os editores de livros, sabem usar essas contradições para dialogar com os anseios do público, mantendo-os amarrados à concepção de mundo burguesa.
É possível fazer uma novela e um filme não românticos. Existem muitos deles. Mas, os românticos acertam ao atingir diretamente a experiência de vida da grande maioria das pessoas. A experiência de indivíduos que se sentem sozinhos, mesmo quando estão em multidões. Que amam com medo de serem abandonados. São abandonados e temem começar a amar novamente. Querem fugir da vida chata e frustrante que vivem na realidade. Se identificam com as figuras heróicas como Indiana Jones, com lugares longínquos como a Terra Média, de “O Senhor dos Anéis”. Querem ser os casais trágicos como Romeu e Julieta ou Prestes e Olga. As pessoas se encantam com a natureza que é mostrada na televisão. A novela “Pantanal”, de Benedito Ruy Barbosa (1990), por exemplo. Os telespectadores se deliciam com novelas de época, onde o passado é reduzido a uma vida mais simples e inocente. É o caso de “Cabocla”, em exibição atualmente. São formas de fugir de um presente ou de um lugar incômodos.
Enfim, o romantismo é a linguagem que mais se aproxima da experiência concreta da maioria de nós. Começar a entender esse fenômeno é um bom começo para discutir como as obras estéticas atingem grandes multidões. Também é uma forma de construir caminhos para o diálogo. Muitos de nós já passaram pela experiência de tentar exibir filmes políticos para pessoas sem formação política. Cada vez mais, um “Encouraçado Potenkim”, de Sergei Eisenstein (1925), é menos suportável para quem já se acostumou aos padrões dos filmões americanos e produções da Globo. Roncos na sala de exibição não são raros.
O que fazer? Transformar o “Manifesto Comunista” em uma minissérie? Mostrar a história da Revolução Russa como um dramalhão mexicano? Não é o caso. Mas é preciso pensar e discutir mais sobre as produções culturais para os grandes públicos. Do contrário, só nos resta o caminho dos cineclubes voltados somente para alguns heróis românticos de esquerda.
1 de out. de 2011
CBN: 15 anos tocando a mesma música
Texto de julho de 2006
A CBN faz 15 anos em outubro que vem. A rádio inovou ao assumir a transmissão de notícias como único objetivo. Seus programas são bem feitos, em linguagem correta e passam uma sensação de isenção. Longe disso, o que impera é a defesa das idéias neoliberais. Não tem música, mas o repertório não muda.
Quando surgiu, em 1991, a Central Brasileira de Notícias, tinha como modelo a TV CNN, americana. Queria fazer no rádio o que a emissora estadunidense fazia na televisão: veiculação de notícias 24 horas por dia. Daí, o mote “a rádio que só toca notícia”. Não se tratava somente de imitação. Era produto de uma idéia muito clara e da qual a Globo nunca teve dúvidas: controle de informação tem cada vez mais valor econômico, político e social. Além disso, era o início da grande ofensiva neoliberal no Brasil. A CBN surgiu, então, para fornecer informação em abundância, mas com a marca neoliberal.
Quinze anos depois, a CBN é um sucesso. Não é uma líder isolada no segmento. Em certos horários, a “Band News” e a “Jovem Pan”, em São Paulo, ganham. Mas é referência e obrigou suas concorrentes a imitá-la. Além disso, como disse sua diretora executiva, Mariza Tavares, é rentável. Apenas rentável? Provavelmente. Afinal, a função da CBN não é exatamente fazer dinheiro. É fazer cabeças.
Falando para as classes A e B
Tavares concedeu entrevista ao Observatório da Imprensa em junho passado. Um depoimento revelador sobre os objetivos da emissora que dirige. Segundo ela, “a cabeça da rede” é basicamente São Paulo. Por que? “São Paulo é o centro de decisões, o centro econômico, e a emissora tem que obedecer a isso”. Ou seja, a rádio que só toca notícia quase só fala para um público definido. Aqueles que têm ou estão próximos ao poder econômico. Os números do Ibope não desmentem isso: dados do último trimestre de 2005 mostravam que o público da CBN era mais masculino (64%) e predominantemente das classes chamadas A e B (66%;).
É verdade que a programação realmente presta serviços importantes. Principalmente, nas grandes cidades como São Paulo e seu trânsito caótico. E tem um estilo mais limpo na transmissão. Sem as apelações comuns utilizadas por outros programas e locutores, que não escondem seu ódio de classe, enquanto defendem a pena-de-morte e prisão de crianças, por exemplo. Um dos maiores responsáveis por isso é Heródoto Barbeiro. O principal âncora da CBN também deu entrevista ao Observatório da Imprensa e definiu como grandes trunfos da CBN, “isenção, pluralismo, perseguição diária da conduta ética”. E é esta a impressão que o ouvinte comum acaba tendo. Mariza Tavares reforça essa idéia ao dizer que “tem gente que acha que nós somos petistas, os petistas acham que somos tucanos. Acho que isso é bom”.
Claro que na atual confusão, opor tucanos e petistas não faz muito sentido. Pelo menos, para a maioria dos petistas que usam crachá. Mas também dá uma idéia daquilo que realmente é a programação da CBN. Heródoto é um dos que afirmam que a CBN sempre ouve o outro lado. E que o compromisso da rádio é com a notícia. Na realidade, são poucos os lados que a rádio ouve. Quase todos eles ligados ao verdadeiro compromisso da CBN: com os elogios às maravilhas do mercado.
A grande maioria dos entrevistados é formada por políticos, empresários, professores universitários, sindicalistas. Quase todos, antigos ou recentes devotos da fé neoliberal. Vez por outra, ouvem-se as vozes de lideranças populares e outras pessoas que não comungam da crença no “deus mercado”. Mas acabam fazendo o papel de figuras folclóricas em meio ao ambiente geral criado pela rádio. Um ambiente que é perfeitamente traduzido por seus âncoras e comentaristas.
O petista Heródoto Barbeiro, por exemplo, é discreto. Fala muito sobre cidadania e responsabilidade social de empresas, mas não vai mais longe que isso. Se pressionado, também fala em “populismo” quando o assunto é aumento dos gastos sociais. “Calote” quando alguém aponta o absurdo da dívida pública brasileira, e por aí vai. Outro âncora da rádio é Carlos Sardenberg. Bem menos discreto que Barbeiro, é tucano em cada um de seus comentários a favor das leis do mercado. Miriam Leitão é a porta-voz das receitas neoliberais, desde a época de Collor.
Lucia Hippólito aborda o mundo da política de maneira aparentemente crítica, mas seus comentários não passam da defesa da política institucional sem exageros. E exagero é denunciar o parlamento como a farsa que é. Mais ou menos na mesma linha de Franklin Martins. Gilberto Dimenstein é irritante com seu discurso “faça você mesmo aquilo que os governantes deveriam fazer com o dinheiro dos impostos arrancados dos mais pobres”. Arnaldo Jabor, então, é o retrato perfeito do conservadorismo beirando o fascismo, junto com muita informação distorcida e defesa incondicional do neoliberalismo.
Candidata a “guia” dos menos endinheirados
A CBN é como as rádios que tocam música. O repertório é restrito aos artistas cujas gravadoras pagaram seu “jabá”. Do mesmo modo, a música que toca na emissora da Globo é uma só, a do pensamento único neoliberal. O “jabá” vem na forma de patrocínios empresariais. E governamentais, claro.
O grande problema dessa história é que a CBN não “faz a cabeça” somente dos mais endinheirados. As chamadas classes C, D e E são responsáveis por 34% da audiência da rádio. E a própria Mariza Tavares alerta para outro fenômeno. Na mesma entrevista, falando sobre os que ganham menos, ela diz:“Existe um movimento que não é de classe A-B, um enorme movimento de um contingente parcialmente invisível, ou pouco visível, querendo entender este mundo muito mais complicado. Quem são os guias? (...). É quem vai dar ferramentas para entender o mundo. Algo que nós achávamos que era prerrogativa do leitor de jornal, classe média, do público da CBN, mas não é só isso. Na verdade há um grande movimento subterrâneo, e sairá na frente quem entender como fornecer esse instrumental”.“Quem são os guias ?”, pergunta Mariza. A resposta é assustadora: uma forte candidata é a rádio de notícias da Globo.
É preciso ficar atento. A burguesia não perde tempo. E aproveita-se de um vazio deixado pela esquerda. Por um lado, mesmo que de forma precária, funcionam algumas rádios comunitárias em bairros pobres. Falam ao tal público “D e E”. Aos trancos e barrancos, é verdade. Mas, pelo menos, falam.
Por outro lado, como fica a chamada “classe C”? Esta não é forçada a formas coletivas de sobrevivência, como nas favelas e cortiços. São muito mais sujeitas a um modo de vida isolado de vizinhos e colegas de trabalho. E cada vez mais são alvo dessa disputa por hegemonia. A qualidade da técnica global de comunicação pode fazer enormes estragos nessa briga. A CBN vem fazendo sua parte.
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5 de set. de 2011
Antonio Fagundes e os sete minutos
Texto de novembro de 2003
Sete minutos, peça de Antonio Fagundes, ataca a imposição de padrões televisivos, mas pode ser vista em DVD. É uma contradição, sem dúvida. Mas é uma contradição interessante.
A peça foi escrita por Antonio Fagundes (a primeira de sua carreira) e dirigida por Bibi Ferreira. O espetáculo começa com uma encenação de Macbeth, de Shakespeare. O personagem de Fagundes (o Ator) está dizendo a famosa frase “A vida é uma sombra que passa ...”, quando é interrompido por uma cascata de tosses de um espectador. Irritado, o Ator sai de cena.
O cenário passa a ser o camarim. O Ator reclama dos constantes barulhos e interrupções que já ouviu da platéia em seus 37 anos de carreira. Papéis de bala, sacos de batatas fritas, celulares, bocejos, pigarros e as inevitáveis tosses. A cena é engraçada, mas começa a parecer apenas um desabafo até que a peça toma outros rumos.
Um mini-debate se instala entre o Ator e a Empresária (Suzy Rêgo). Ele insiste que ninguém respeita ou liga para teatro. Ela pondera que as pessoas não têm dinheiro nem para o ônibus, etc. Ele responde que elas têm dinheiro sim, mas gastam em bingos, vão aos estádios etc. Enfim, mais ou menos como aquelas conversas de boteco que raramente chegam a algum lugar.
Seguem-se cenas muito engraçadas até chegarmos à explicação do fenômeno que inspirou a peça. Trata-se do ritmo imposto pela programação televisiva no Brasil. Para ficar mais claro, apelemos para o próprio texto de Fagundes, na voz de seu personagem:
De qualquer maneira, o interessante é que o texto de Chauí também fala de um conhecido ensaio do filósofo alemão Walter Benjamin chamado A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica. Este texto fala da rápida reprodução e comercialização das obras artísticas e suas contradições. Marilena Chauí comenta o ensaio de Benjamin chamando a atenção para os aspectos positivos e negativos do fenômeno.
De um lado, ele coloca à disposição da maioria, obras a que apenas uma minoria tinha acesso até então. De outro lado, o capitalismo se apropriou desses avanços para criar toda uma produção e um mercado novos. Mais uma forma de obter altos lucros às custas da banalização da criatividade humana. É a chamada indústria cultural, que, hoje, identificamos facilmente no cinema, na tevê, rádio, discos, e, ao contrário do que sugere Sete minutos, também no teatro.
Afinal, o teatro, apesar de seus 2 mil anos de existência, também vem sendo padronizado pelo ritmo da grande mídia. Um sucesso como Os Mistérios de Irma Vap, por exemplo, não precisou necessariamente seguir ciclos de 7 em 7 minutos, mas tem um ritmo próximo ao que estamos acostumados a ver na tevê. A maior razão de sua aceitação pode ser o talento de seus atores, Ney Latorraca e Marco Nanini. O fator ritmo, no entanto, deve ter colaborado. Esse parece ser o caso de outras peças de sucesso. Principalmente, as de humor, como Trair e coçar é só começar e Caixa dois.
Aí é que entram em cenas as contradições da peça de Fagundes. O ator e produtor faz uma declaração de amor ao teatro, critica o ritmo televisivo, elogia a presença do público, convida-o à proximidade, a abrir mão das certezas. Mas coloca sua peça à venda na forma de um disco digital que pode ser levado para casa e visto de forma quase solitária. Um artefato que permite as interrupções que o personagem de Fagundes pede que não sejam feitas. Que segmenta a obra em faixas, como num disco de música. Cronometra sua duração e permite acelerar ou retardar a exibição.
Mas, não são contradições no sentido negativo. São da mesma natureza daquelas apontadas pelo comentário de Chauí ao texto de Benjamin. A obra de Fagundes denuncia um aspecto importante da indústria cultural, mas faz uso de um seu instrumento para divulgar essa denúncia. Ao dizer o que diz a partir de um palco, Sete minutos faz sua parte junto ao público de teatro. Mas, ao lançar mão do DVD, atinge também um público que já desistiu do teatro ou nunca conheceu sua riqueza devido às pretensas facilidades da telinha. O saldo dessas contradições é positivo.
Por outro lado, é preciso elogiar a iniciativa de Antonio Fagundes. Ele é astro de primeira linha da Globo. Fez 21 novelas e dezenas de minisséries. No cinema, apareceu em 37 longa-metragens. Apesar de todo esse sucesso, nunca deixou os palcos. Aos 51 anos de idade, é ator de teatro desde os 14 anos. Fez mais de 40 espetáculos teatrais. Poderia estar acomodado. Mas preferiu enfrentar a contraditória condição de quem é astro global, mas ama os palcos. Essa peça é a escolha pela paixão do teatro e pela crítica à televisão.
A utilização do formato digital talvez tenha o objetivo de mostrar que não se trata de, pura e simplesmente, condenar a tevê como veículo de comunicação e até de formação. Ela pode e tem que ser melhor do que é. Sete minutos pode ajudar na medida em que funcione como complicador do cotidiano simplificado que todos acabamos por viver. Indo ou não ao teatro, vendo ou não televisão.
Sete minutos, peça de Antonio Fagundes, ataca a imposição de padrões televisivos, mas pode ser vista em DVD. É uma contradição, sem dúvida. Mas é uma contradição interessante.
A peça foi escrita por Antonio Fagundes (a primeira de sua carreira) e dirigida por Bibi Ferreira. O espetáculo começa com uma encenação de Macbeth, de Shakespeare. O personagem de Fagundes (o Ator) está dizendo a famosa frase “A vida é uma sombra que passa ...”, quando é interrompido por uma cascata de tosses de um espectador. Irritado, o Ator sai de cena.
O cenário passa a ser o camarim. O Ator reclama dos constantes barulhos e interrupções que já ouviu da platéia em seus 37 anos de carreira. Papéis de bala, sacos de batatas fritas, celulares, bocejos, pigarros e as inevitáveis tosses. A cena é engraçada, mas começa a parecer apenas um desabafo até que a peça toma outros rumos.
Um mini-debate se instala entre o Ator e a Empresária (Suzy Rêgo). Ele insiste que ninguém respeita ou liga para teatro. Ela pondera que as pessoas não têm dinheiro nem para o ônibus, etc. Ele responde que elas têm dinheiro sim, mas gastam em bingos, vão aos estádios etc. Enfim, mais ou menos como aquelas conversas de boteco que raramente chegam a algum lugar.
Seguem-se cenas muito engraçadas até chegarmos à explicação do fenômeno que inspirou a peça. Trata-se do ritmo imposto pela programação televisiva no Brasil. Para ficar mais claro, apelemos para o próprio texto de Fagundes, na voz de seu personagem:
Somos um País desacostumado ao ato de pensar. Nossa formação cultural tá reduzida àquela dúzia de filmes americanos traduzido em ação, ação...Nosso padrão de televisão, rápido,esperto, ágil, dinâmico, prende a nossa atenção por, no máximo, 7 minutos. O tempo aproximado de cada segmento antes do intervalo comercial. Nada mais nos exige maior reflexão.No DVD, Fagundes comenta que teve a idéia dos 7 minutos desde 1993. No entanto, essa tese também está presente no livro Convite à Filosofia, de Marilena Chauí (Ática, 2000 – pág. 326).
Até mesmo o melhor programa está sujeito a essa lei férrea, do tempo máximo de 7 minutos. Então eu vou ao banheiro, eu tomo café, eu telefono, eu descanso. Eu tenho tempo pra isso. O intervalo comercial, como em nenhuma parte do mundo, dura quase que os mesmos 7 minutos. Divididos em mensagens rápidas de 15, 30 segundos, que prendem a minha atenção, caso eu não tenha mais nada pra fazer, por um espaço de tempo cada vez menor. (...)
Nossos melhores pensamentos, nossas maiores reflexões, nossa mais apurada percepção do mundo, não passam dos 7 minutos a que fomos condicionados. Até mesmo as nossas emoções obedecem a essa regra de tempo. E não é pra menos. A leitura diária dos jornais nos obriga a isso. Mas se fôssemos capazes de manter a nossa indignação por um espaço de tempo maior, só Deus sabe que caminhos estaríamos trilhando agora. (...)
Nossos espetáculos duram mais do que 7 minutos e fazemos assim porque é possível estarmos juntos por mais tempo. Trocando, refletindo, sonhando. Que bom que vocês vieram (...) para dividir as nossas dúvidas, repartir os nossos sonhos e multiplicar as nossas vontades de que tudo isso um dia não passe de uma peça de teatro. Mas sem interrupções...por favor?
De qualquer maneira, o interessante é que o texto de Chauí também fala de um conhecido ensaio do filósofo alemão Walter Benjamin chamado A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica. Este texto fala da rápida reprodução e comercialização das obras artísticas e suas contradições. Marilena Chauí comenta o ensaio de Benjamin chamando a atenção para os aspectos positivos e negativos do fenômeno.
De um lado, ele coloca à disposição da maioria, obras a que apenas uma minoria tinha acesso até então. De outro lado, o capitalismo se apropriou desses avanços para criar toda uma produção e um mercado novos. Mais uma forma de obter altos lucros às custas da banalização da criatividade humana. É a chamada indústria cultural, que, hoje, identificamos facilmente no cinema, na tevê, rádio, discos, e, ao contrário do que sugere Sete minutos, também no teatro.
Afinal, o teatro, apesar de seus 2 mil anos de existência, também vem sendo padronizado pelo ritmo da grande mídia. Um sucesso como Os Mistérios de Irma Vap, por exemplo, não precisou necessariamente seguir ciclos de 7 em 7 minutos, mas tem um ritmo próximo ao que estamos acostumados a ver na tevê. A maior razão de sua aceitação pode ser o talento de seus atores, Ney Latorraca e Marco Nanini. O fator ritmo, no entanto, deve ter colaborado. Esse parece ser o caso de outras peças de sucesso. Principalmente, as de humor, como Trair e coçar é só começar e Caixa dois.
Aí é que entram em cenas as contradições da peça de Fagundes. O ator e produtor faz uma declaração de amor ao teatro, critica o ritmo televisivo, elogia a presença do público, convida-o à proximidade, a abrir mão das certezas. Mas coloca sua peça à venda na forma de um disco digital que pode ser levado para casa e visto de forma quase solitária. Um artefato que permite as interrupções que o personagem de Fagundes pede que não sejam feitas. Que segmenta a obra em faixas, como num disco de música. Cronometra sua duração e permite acelerar ou retardar a exibição.
Mas, não são contradições no sentido negativo. São da mesma natureza daquelas apontadas pelo comentário de Chauí ao texto de Benjamin. A obra de Fagundes denuncia um aspecto importante da indústria cultural, mas faz uso de um seu instrumento para divulgar essa denúncia. Ao dizer o que diz a partir de um palco, Sete minutos faz sua parte junto ao público de teatro. Mas, ao lançar mão do DVD, atinge também um público que já desistiu do teatro ou nunca conheceu sua riqueza devido às pretensas facilidades da telinha. O saldo dessas contradições é positivo.
Por outro lado, é preciso elogiar a iniciativa de Antonio Fagundes. Ele é astro de primeira linha da Globo. Fez 21 novelas e dezenas de minisséries. No cinema, apareceu em 37 longa-metragens. Apesar de todo esse sucesso, nunca deixou os palcos. Aos 51 anos de idade, é ator de teatro desde os 14 anos. Fez mais de 40 espetáculos teatrais. Poderia estar acomodado. Mas preferiu enfrentar a contraditória condição de quem é astro global, mas ama os palcos. Essa peça é a escolha pela paixão do teatro e pela crítica à televisão.
A utilização do formato digital talvez tenha o objetivo de mostrar que não se trata de, pura e simplesmente, condenar a tevê como veículo de comunicação e até de formação. Ela pode e tem que ser melhor do que é. Sete minutos pode ajudar na medida em que funcione como complicador do cotidiano simplificado que todos acabamos por viver. Indo ou não ao teatro, vendo ou não televisão.
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3 de ago. de 2011
No princípio era o verbo. Agora, é Matrix
Texto de julho de 2007
O primeiro meio de comunicação dos seres humanos foi a fala. Hoje, a função tripla (triple-play) permite recebermos imagens, informações e som num único aparelho. Mas, sob a lógica capitalista, quase não falamos, só ouvimos. Não imaginamos, só assistimos.
O primeiro e mais eficiente meio de comunicação dos seres humanos foi a fala. É quando o som ganha peso simbólico na forma de palavras que a comunicação chega para ficar como patrimônio exclusivo de nossa espécie. “No princípio era o Verbo...”. Além da fala, havia somente as pinturas e esculturas. Muito som e algumas imagens.
Foram necessários cerca de 95 mil anos para que uma nova evolução acontecesse na comunicação humana. Foi o surgimento da escrita. Agora, os relatos podiam ser registrados em meio material e permanecerem fiéis a si mesmos. Sai a criatividade humana sem maiores controles que não os construídos por consenso, entra a exatidão de alguns poucos que dominavam a técnica da escrita.
Eram sacerdotes e burocratas, que passaram a registrar as tradições culturais e religiosas, os estoques de produtos, os impostos devidos, a história oficial. Tudo escrito em pedras, placas, papiros e pergaminhos. Dominar a escrita era dominar informações importantes e justificar o poder, diminuindo a necessidade de utilizar a violência.
A revolução tecnológica seguinte nas comunicações aconteceu uns 7 mil anos depois. No século 15, Gutenberg inventou a imprensa. O texto escrito já podia ser reproduzido em escala maior. Trata-se de uma técnica que já teria sido descoberta na China e no Japão, sem maiores conseqüências. É que o alemão fez sua contribuição tecnológica no lugar e momento certos. O interesse pelas ciências surgido no Renascimento precisava de uma maior difusão e troca de informações. E ficava mais fácil fazer isso através de textos impressos. Além disso, a burguesia soube usar muito bem a escrita impressa.
Em primeiro lugar, para divulgar suas idéias revolucionárias. Até a Revolução Francesa, havia apenas um jornal na França. O do rei. De julho a dezembro de 1789, surgiram 184 novos jornais em Paris. No ano seguinte, foram mais 335. Mas, a palavra impressa também foi importante para permitir o avanço na pesquisa de novos meios de produção, e, claro, para justificar ascenso da burguesia à condição de classe dominante.
O domínio da natureza através de técnicas cada vez mais complexas levou rapidamente a uma nova mudança radical nas comunicações. Desta vez, cerca de 400 anos depois da última. A captura e domesticação do som permitiram o surgimento do rádio. A fala voltava a ter importância na comunicação humana. Mas o uso do rádio para a troca de informações entre pessoas logo foi bloqueado. Ao invés disso, o rádio ficou surdo e passou a apenas falar com as pessoas.
Surgia a radiodifusão. Ferramenta fundamental para o capitalismo. Afinal, o modo de produção capitalista é o único que tem crises porque produz demais e não de menos. Manter o nível de consumo é seu grande problema. A propaganda é a alma do negócio. O rádio surge para ajudar a vender. Mas não só.
Pessoas reunidas em frente a um aparelho de rádio não conversam entre si. Todos escutam a mesma voz, o mesmo discurso, a mesma música. Como disse Marx, as idéias dominantes em uma sociedade são as idéias da classe dominante. A voz do rádio era a voz de seus donos. Compre mercadorias e receba inteiramente grátis as idéias dominantes.
Essa passividade diante de um meio de comunicação permaneceu e aumentou quando se aprendeu a usar a luz para fixar imagens e, logo depois, para colocá-las em movimento. A fotografia virou filme. Na primeira sessão comercial de cinema, os irmãos Lumiére exibiram a imagem de um trem entrando na estação de Lyon. Dizem que alguns dos presentes ficaram com medo de serem atropelados. Ficariam ainda mais assustados se o filme já contasse com uma trilha sonora. Mas o som não tardaria a chegar.
O primeiro filme sonoro é de 1927. Chaplin dizia que não haveria futuro para o cinema com som. Afinal, a universalidade dos gestos humanos presentes nos filmes mudos ultrapassava os limites das várias línguas. Mas o criador de Carlitos não contava com a força da indústria cultural ianque. Os filmes chegam a todos os lugares do mundo legendados, dublados ou simplesmente falados em inglês, que foi imposto como um moderno latim.
Menos de 100 anos depois da chegada do trem dos irmãos Lumiére, o cinema foi para dentro das casas transformado em televisão. Era o rádio e o cinema, num único aparelho, presente em quase todos os lugares do planeta. Os meios pareciam convergir. A fala, a imagem, o movimento, de um lado. Avassaladores. De outro, avassalado, o espectador. Do latim “spectátoróris”, ou seja, “contemplador, observador”, segundo o dicionário Houaiss. Mais precisamente, pessoa passiva.
Uns 40 anos atrás, aconteceu a mais recente revolução nas comunicações. Ela foi possibilitada pela microeletrônica e pela informática e permitiu criar uma base material única. É a tecnologia digital, utilizada tanto na linha de montagem das empresas automobilísticas, como na campanha publicitária para estimular o consumo de automóveis.
A digitalização permitiu a convergência da organização da informação de tal forma que informações, som e imagem podem chegar todos ao mesmo tempo através de um único aparelho. É o chamado “triple-play” ou tripla função. Enquanto isso, a palavra escrita é utilizada plenamente por cada vez menos pessoas. A maioria só domina a escrita e a leitura para tarefas muito básicas. E, tal como na época anterior à escrita, a fala e as imagens estabelecem seu predomínio.
Só que, agora, elas não são produtos de uma convivência comunitária, com suas múltiplas conversas e seus relatos coletivos. Na sociedade de massas, o verbo e a imagens vêm em pacotes prontos e fechados a sugestões. Nossos antepassados ficariam espantados com nossa submissão a nossas próprias conquistas tecnológicas. Quase não falamos, só ouvimos. Não imaginamos, só assistimos.
No outro lado disso, estariam os meios de comunicação que permaneceram interativos. São o correio eletrônico e o telefone. Por eles, duas ou mais pessoas podem trocar o conteúdo que quiserem. Claro que muito desse conteúdo é determinado pelas idéias, conceitos, hábitos, costumes, preconceitos, crenças, visões de mundo dominantes.
Mas, sempre há um espaço para uma comunicação própria, alternativa, diferente. Inadmissível, pensa o sistema. Se depender da lógica capitalista, essa relativa liberdade vai ter cada vez menos espaço. A internete, além de estar muito longe da universalização, não está a salvo de ser monopolizada. É possível, por exemplo, diferenciar o desempenho do tráfego de dados, obrigando os usuários a pagar por uma transmissão de informações mais rápida e de qualidade melhor.
Quanto ao telefone, a invasão dos celulares é esmagadora. Já se fala em metade da população mundial com esse tipo de equipamento. E o funcionamento pleno da função tripla vai tornar esses aparelhos cada vez mais receptores de conteúdos prontos. Em outras palavras, vamos ter mais dificuldade em falar uns com os outros porque estaremos assistindo programas, jogos de futebol, musicais e filmes em nossos terminais móveis.
Cada vez mais nosso tempo livre será invadido por esse bombardeio midiático. Nosso repertório vai se encolhendo e se ajustando ao que as grandes empresas de bens simbólicos produzem, para preencher ao máximo nosso campo visual e auditivo. Uma permanente pressão a favor do consumo desenfreado e do conformismo social.
No entanto, nem tudo são flores para o Capital. Toda essa tecnologia tornou mais difícil a determinação do que seja propriedade privada. Os programas de computadores já não são mais vendidos como qualquer mercadoria. Apenas têm seu uso autorizado por uma licença. Isso facilita a cópia não autorizada. A informação é um elemento estratégico na atual fase do capitalismo.
Mas, informação é um bem diferente dos outros. No momento em que é usada ela ganha valor, ao invés de perder, como acontece com as outras mercadorias. Ela escapa por entre as garras do Capital. Como disse Thomas Jefferson uma vez:
Do ponto de vista do combate à dominação, as tecnologias também se tornaram mais acessíveis. Já não é tão caro montar uma rádio ou uma tv. É certo que serão comunitárias com todas as suas limitações de alcance, sem falar na repressão pura e simples que se abate sobre elas. A internete também apresenta boas perspectivas e elas podem ser muito melhores se conseguíssemos ligar a rede de TV digital à rede mundial de computadores. A internete ficaria acessível para a maioria da população.
Na verdade, a capacidade de transmissão de informações conquistada pela humanidade pode ser um grande avanço para a interação universal dos seres humanos em toda sua diversidade. Para isso seria preciso acabar com as atuais relações sociais. Criar novas formas de convivência e seus instrumentos.
Seria preciso partir da base material alcançada pela atual tecnologia, mas adaptá-la a outros objetivos que não a apropriação privada dos produtos do trabalho humano. Enquanto isso, permanece a ameaça de nos tornarmos cada vez mais extensões de nossos terminais eletrônicos. Matrix é aqui.
O primeiro meio de comunicação dos seres humanos foi a fala. Hoje, a função tripla (triple-play) permite recebermos imagens, informações e som num único aparelho. Mas, sob a lógica capitalista, quase não falamos, só ouvimos. Não imaginamos, só assistimos.
O primeiro e mais eficiente meio de comunicação dos seres humanos foi a fala. É quando o som ganha peso simbólico na forma de palavras que a comunicação chega para ficar como patrimônio exclusivo de nossa espécie. “No princípio era o Verbo...”. Além da fala, havia somente as pinturas e esculturas. Muito som e algumas imagens.
Foram necessários cerca de 95 mil anos para que uma nova evolução acontecesse na comunicação humana. Foi o surgimento da escrita. Agora, os relatos podiam ser registrados em meio material e permanecerem fiéis a si mesmos. Sai a criatividade humana sem maiores controles que não os construídos por consenso, entra a exatidão de alguns poucos que dominavam a técnica da escrita.
Eram sacerdotes e burocratas, que passaram a registrar as tradições culturais e religiosas, os estoques de produtos, os impostos devidos, a história oficial. Tudo escrito em pedras, placas, papiros e pergaminhos. Dominar a escrita era dominar informações importantes e justificar o poder, diminuindo a necessidade de utilizar a violência.
A revolução tecnológica seguinte nas comunicações aconteceu uns 7 mil anos depois. No século 15, Gutenberg inventou a imprensa. O texto escrito já podia ser reproduzido em escala maior. Trata-se de uma técnica que já teria sido descoberta na China e no Japão, sem maiores conseqüências. É que o alemão fez sua contribuição tecnológica no lugar e momento certos. O interesse pelas ciências surgido no Renascimento precisava de uma maior difusão e troca de informações. E ficava mais fácil fazer isso através de textos impressos. Além disso, a burguesia soube usar muito bem a escrita impressa.
Em primeiro lugar, para divulgar suas idéias revolucionárias. Até a Revolução Francesa, havia apenas um jornal na França. O do rei. De julho a dezembro de 1789, surgiram 184 novos jornais em Paris. No ano seguinte, foram mais 335. Mas, a palavra impressa também foi importante para permitir o avanço na pesquisa de novos meios de produção, e, claro, para justificar ascenso da burguesia à condição de classe dominante.
O domínio da natureza através de técnicas cada vez mais complexas levou rapidamente a uma nova mudança radical nas comunicações. Desta vez, cerca de 400 anos depois da última. A captura e domesticação do som permitiram o surgimento do rádio. A fala voltava a ter importância na comunicação humana. Mas o uso do rádio para a troca de informações entre pessoas logo foi bloqueado. Ao invés disso, o rádio ficou surdo e passou a apenas falar com as pessoas.
Surgia a radiodifusão. Ferramenta fundamental para o capitalismo. Afinal, o modo de produção capitalista é o único que tem crises porque produz demais e não de menos. Manter o nível de consumo é seu grande problema. A propaganda é a alma do negócio. O rádio surge para ajudar a vender. Mas não só.
Pessoas reunidas em frente a um aparelho de rádio não conversam entre si. Todos escutam a mesma voz, o mesmo discurso, a mesma música. Como disse Marx, as idéias dominantes em uma sociedade são as idéias da classe dominante. A voz do rádio era a voz de seus donos. Compre mercadorias e receba inteiramente grátis as idéias dominantes.
Essa passividade diante de um meio de comunicação permaneceu e aumentou quando se aprendeu a usar a luz para fixar imagens e, logo depois, para colocá-las em movimento. A fotografia virou filme. Na primeira sessão comercial de cinema, os irmãos Lumiére exibiram a imagem de um trem entrando na estação de Lyon. Dizem que alguns dos presentes ficaram com medo de serem atropelados. Ficariam ainda mais assustados se o filme já contasse com uma trilha sonora. Mas o som não tardaria a chegar.
O primeiro filme sonoro é de 1927. Chaplin dizia que não haveria futuro para o cinema com som. Afinal, a universalidade dos gestos humanos presentes nos filmes mudos ultrapassava os limites das várias línguas. Mas o criador de Carlitos não contava com a força da indústria cultural ianque. Os filmes chegam a todos os lugares do mundo legendados, dublados ou simplesmente falados em inglês, que foi imposto como um moderno latim.
Menos de 100 anos depois da chegada do trem dos irmãos Lumiére, o cinema foi para dentro das casas transformado em televisão. Era o rádio e o cinema, num único aparelho, presente em quase todos os lugares do planeta. Os meios pareciam convergir. A fala, a imagem, o movimento, de um lado. Avassaladores. De outro, avassalado, o espectador. Do latim “spectátoróris”, ou seja, “contemplador, observador”, segundo o dicionário Houaiss. Mais precisamente, pessoa passiva.
Uns 40 anos atrás, aconteceu a mais recente revolução nas comunicações. Ela foi possibilitada pela microeletrônica e pela informática e permitiu criar uma base material única. É a tecnologia digital, utilizada tanto na linha de montagem das empresas automobilísticas, como na campanha publicitária para estimular o consumo de automóveis.
A digitalização permitiu a convergência da organização da informação de tal forma que informações, som e imagem podem chegar todos ao mesmo tempo através de um único aparelho. É o chamado “triple-play” ou tripla função. Enquanto isso, a palavra escrita é utilizada plenamente por cada vez menos pessoas. A maioria só domina a escrita e a leitura para tarefas muito básicas. E, tal como na época anterior à escrita, a fala e as imagens estabelecem seu predomínio.
Só que, agora, elas não são produtos de uma convivência comunitária, com suas múltiplas conversas e seus relatos coletivos. Na sociedade de massas, o verbo e a imagens vêm em pacotes prontos e fechados a sugestões. Nossos antepassados ficariam espantados com nossa submissão a nossas próprias conquistas tecnológicas. Quase não falamos, só ouvimos. Não imaginamos, só assistimos.
No outro lado disso, estariam os meios de comunicação que permaneceram interativos. São o correio eletrônico e o telefone. Por eles, duas ou mais pessoas podem trocar o conteúdo que quiserem. Claro que muito desse conteúdo é determinado pelas idéias, conceitos, hábitos, costumes, preconceitos, crenças, visões de mundo dominantes.
Mas, sempre há um espaço para uma comunicação própria, alternativa, diferente. Inadmissível, pensa o sistema. Se depender da lógica capitalista, essa relativa liberdade vai ter cada vez menos espaço. A internete, além de estar muito longe da universalização, não está a salvo de ser monopolizada. É possível, por exemplo, diferenciar o desempenho do tráfego de dados, obrigando os usuários a pagar por uma transmissão de informações mais rápida e de qualidade melhor.
Quanto ao telefone, a invasão dos celulares é esmagadora. Já se fala em metade da população mundial com esse tipo de equipamento. E o funcionamento pleno da função tripla vai tornar esses aparelhos cada vez mais receptores de conteúdos prontos. Em outras palavras, vamos ter mais dificuldade em falar uns com os outros porque estaremos assistindo programas, jogos de futebol, musicais e filmes em nossos terminais móveis.
Cada vez mais nosso tempo livre será invadido por esse bombardeio midiático. Nosso repertório vai se encolhendo e se ajustando ao que as grandes empresas de bens simbólicos produzem, para preencher ao máximo nosso campo visual e auditivo. Uma permanente pressão a favor do consumo desenfreado e do conformismo social.
No entanto, nem tudo são flores para o Capital. Toda essa tecnologia tornou mais difícil a determinação do que seja propriedade privada. Os programas de computadores já não são mais vendidos como qualquer mercadoria. Apenas têm seu uso autorizado por uma licença. Isso facilita a cópia não autorizada. A informação é um elemento estratégico na atual fase do capitalismo.
Mas, informação é um bem diferente dos outros. No momento em que é usada ela ganha valor, ao invés de perder, como acontece com as outras mercadorias. Ela escapa por entre as garras do Capital. Como disse Thomas Jefferson uma vez:
...se a natureza produziu uma coisa menos suscetível de propriedade exclusiva (...), é a ação do poder de pensar que chamamos de idéia. Aquele que recebe uma idéia de mim, recebe instrução para si sem que haja diminuição da minha, da mesma forma que quem acende um lampião no meu, recebe luz sem que a minha seja apagada.Daí, as polêmicas em torno das patentes e, principalmente, da propriedade intelectual.
Do ponto de vista do combate à dominação, as tecnologias também se tornaram mais acessíveis. Já não é tão caro montar uma rádio ou uma tv. É certo que serão comunitárias com todas as suas limitações de alcance, sem falar na repressão pura e simples que se abate sobre elas. A internete também apresenta boas perspectivas e elas podem ser muito melhores se conseguíssemos ligar a rede de TV digital à rede mundial de computadores. A internete ficaria acessível para a maioria da população.
Na verdade, a capacidade de transmissão de informações conquistada pela humanidade pode ser um grande avanço para a interação universal dos seres humanos em toda sua diversidade. Para isso seria preciso acabar com as atuais relações sociais. Criar novas formas de convivência e seus instrumentos.
Seria preciso partir da base material alcançada pela atual tecnologia, mas adaptá-la a outros objetivos que não a apropriação privada dos produtos do trabalho humano. Enquanto isso, permanece a ameaça de nos tornarmos cada vez mais extensões de nossos terminais eletrônicos. Matrix é aqui.
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29 de jul. de 2011
A grande mídia e o princípio da incerteza
Texto de julho de 2006
O modo como a grande mídia age é parecido com o chamado "princípio da incerteza" da física quântica. Quanto menor o objeto estudado, menor a precisão com que é registrado. O tamanho da mídia altera os fatos que pretende descrever. A única certeza é a de que esse mecanismo está a serviços dos poderosos.
Em 1997, Patrick Champagne publicou o artigo "A Visão Mediática", em um livro organizado por Pierre Bourdieu chamado "A Miséria do Mundo". Nele, Champagne alertava para o modo como a mídia focalizava problemas sociais nas grandes cidades. Segundo ele, a mídia aumenta alguns problemas por interesses próprios. Exagera para vender mais, aterrorizar ou fazer uso político. Mas, essa interferência também leva os setores focalizados a assimilar essa interferência e se preparar para dizer "o que a mídia quer".
Ônibus 174 e PCC
Em 12 de junho de 2000, o seqüestro de um ônibus no Rio de Janeiro foi filmado em tempo real. Por quatro horas, as televisões mostraram o caso ao vivo, paralisando o país. Mais tarde, o acontecimento transformou-se num ótimo e triste filme. "Ônibus 174" de José Padilha mostra toda a estupidez que cercou o episódio. Mas, também é um claro testemunho da enorme influência que a presença da mídia no local teve no desfecho do caso. Tanto Sandro, o seqüestrador, como a polícia, tiveram o tempo todo a mídia como referência maior. Permanecer sob os holofotes era fundamental para Sandro. Evitar a morte tanto do criminoso, como da refém diante das câmeras era crucial para as autoridades. Somente a incompetência e a crueldade policial acabaram levando a um desfecho mortal para ambos.
Mais recentemente, em maio e julho de 2006, a organização criminosa PCC (Primeiro Comando da Capital) fez uma série de ataques em São Paulo e outros estados. Seu líder é conhecido como Marcola. Em 23/5/2006, o colunista Arnaldo Jabor publicou "Estamos todos no inferno", no jornal "O Globo". Tratava-se de uma entrevista imaginária com Marcola. Nela, o líder criminoso faz discursos falando sobre problemas sociais, luta de classes, corrupção e falência do Estado etc. Na internete, o texto ganhou condição de entrevista verdadeira. Mais confusão. Muita gente viu no chefe do PCC um novo líder revolucionário ou algo assim. Esse pessoal iniciou (ou retomou) teorias sobre o "crime organizado" como nova vanguarda ou coisa parecida. Desmentidos circularam pela internete e alguns jornais. Mas, ainda há quem pense que a entrevista é verdadeira e tira as conclusões mais estranhas com base nisso.
O “empurrão” da luz e o peso da mídia
Tudo isso mostra como a grande mídia não se limita a registrar os fatos. Ao contrário, na medida em que o faz interfere em suas conseqüências. Seja distorcendo o passado, seja condicionando o futuro. Parece o que acontece quando entra em ação o chamado "princípio da incerteza" na física quântica.
Em 1927, Werner Heisenberg formulou esse famoso princípio matemático. Como explica Marcelo Gleiser (Folha de São Paulo – 16/11/2003) em dimensões muito pequenas:
Mas, no caso da grande mídia, não é o objeto que é pequeno. E ela, como instrumento monopolizado e a serviço dos poderosos, que se agigantou diante de outros elementos. Desse modo, modifica aquilo que registra. No caso de Jabor há um agravante. A ficção se mistura ao noticiário. A mídia vai tornando-se uma coisa só. Informação e invenção confundem coordenadas já tão embaralhadas.
Numa tal situação, é claro que há um elemento involuntário. O próprio peso da grande mídia acaba distorcendo os fatos, independente da vontade de quem nela trabalha. O problema é que não estamos falando de leis da física. Por trás de uma ferramenta tão poderosa há interesses bastante definidos. Aí, não há incerteza. O objetivo é claro e certo: causar confusão para manter a dominação ideológica e vencer desafios à ela. São os interesses de seus proprietários, seus patrocinadores e daqueles que zelam pela manutenção dos monopólios: empresários e governos.
O modo como a grande mídia age é parecido com o chamado "princípio da incerteza" da física quântica. Quanto menor o objeto estudado, menor a precisão com que é registrado. O tamanho da mídia altera os fatos que pretende descrever. A única certeza é a de que esse mecanismo está a serviços dos poderosos.
Em 1997, Patrick Champagne publicou o artigo "A Visão Mediática", em um livro organizado por Pierre Bourdieu chamado "A Miséria do Mundo". Nele, Champagne alertava para o modo como a mídia focalizava problemas sociais nas grandes cidades. Segundo ele, a mídia aumenta alguns problemas por interesses próprios. Exagera para vender mais, aterrorizar ou fazer uso político. Mas, essa interferência também leva os setores focalizados a assimilar essa interferência e se preparar para dizer "o que a mídia quer".
Ônibus 174 e PCC
Em 12 de junho de 2000, o seqüestro de um ônibus no Rio de Janeiro foi filmado em tempo real. Por quatro horas, as televisões mostraram o caso ao vivo, paralisando o país. Mais tarde, o acontecimento transformou-se num ótimo e triste filme. "Ônibus 174" de José Padilha mostra toda a estupidez que cercou o episódio. Mas, também é um claro testemunho da enorme influência que a presença da mídia no local teve no desfecho do caso. Tanto Sandro, o seqüestrador, como a polícia, tiveram o tempo todo a mídia como referência maior. Permanecer sob os holofotes era fundamental para Sandro. Evitar a morte tanto do criminoso, como da refém diante das câmeras era crucial para as autoridades. Somente a incompetência e a crueldade policial acabaram levando a um desfecho mortal para ambos.
Mais recentemente, em maio e julho de 2006, a organização criminosa PCC (Primeiro Comando da Capital) fez uma série de ataques em São Paulo e outros estados. Seu líder é conhecido como Marcola. Em 23/5/2006, o colunista Arnaldo Jabor publicou "Estamos todos no inferno", no jornal "O Globo". Tratava-se de uma entrevista imaginária com Marcola. Nela, o líder criminoso faz discursos falando sobre problemas sociais, luta de classes, corrupção e falência do Estado etc. Na internete, o texto ganhou condição de entrevista verdadeira. Mais confusão. Muita gente viu no chefe do PCC um novo líder revolucionário ou algo assim. Esse pessoal iniciou (ou retomou) teorias sobre o "crime organizado" como nova vanguarda ou coisa parecida. Desmentidos circularam pela internete e alguns jornais. Mas, ainda há quem pense que a entrevista é verdadeira e tira as conclusões mais estranhas com base nisso.
O “empurrão” da luz e o peso da mídia
Tudo isso mostra como a grande mídia não se limita a registrar os fatos. Ao contrário, na medida em que o faz interfere em suas conseqüências. Seja distorcendo o passado, seja condicionando o futuro. Parece o que acontece quando entra em ação o chamado "princípio da incerteza" na física quântica.
Em 1927, Werner Heisenberg formulou esse famoso princípio matemático. Como explica Marcelo Gleiser (Folha de São Paulo – 16/11/2003) em dimensões muito pequenas:
"...existe um limite máximo na precisão com que a posição e a velocidade de uma partícula, como o elétron, podem ser medidas conjuntamente. Nessas dimensões tão minúsculas, medir significa perturbar (...). É que as dimensões são tão pequenas, que a luz utilizada para observar “empurra” o objeto, alterando suas coordenadas".O pesquisador nunca sabe exatamente onde está seu objeto de estudo. Já, as coisas à nossa volta são grandes demais para que isso aconteça. Assim, quanto maior o tamanho, menor a incerteza quanto a suas medidas.
Mas, no caso da grande mídia, não é o objeto que é pequeno. E ela, como instrumento monopolizado e a serviço dos poderosos, que se agigantou diante de outros elementos. Desse modo, modifica aquilo que registra. No caso de Jabor há um agravante. A ficção se mistura ao noticiário. A mídia vai tornando-se uma coisa só. Informação e invenção confundem coordenadas já tão embaralhadas.
Numa tal situação, é claro que há um elemento involuntário. O próprio peso da grande mídia acaba distorcendo os fatos, independente da vontade de quem nela trabalha. O problema é que não estamos falando de leis da física. Por trás de uma ferramenta tão poderosa há interesses bastante definidos. Aí, não há incerteza. O objetivo é claro e certo: causar confusão para manter a dominação ideológica e vencer desafios à ela. São os interesses de seus proprietários, seus patrocinadores e daqueles que zelam pela manutenção dos monopólios: empresários e governos.
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mídia
16 de mai. de 2011
Videogames, violência e indústria da diversão
A indústria de games vem tornando-se mais poderosa que a do cinema. Os jogos violentos são sua principal atração. Mas é perigoso fazer uma ligação direta entre o aumento de sua influência e o crescimento da violência social. É preciso combater a indústria da diversão sem desrespeitar a inteligência de seu público.
Em julho de 2008, “Harry Potter” quebrou o recorde histórico de bilheteria para filmes na semana de estréia. Arrecadou US$ 394 milhões. Desde então, nenhuma produção superou a marca, incluindo Avatar, de James Cameron.
Mas, em maio do mesmo ano, o jogo GTA IV vendeu US$ 500 milhões em uma semana. Deixou o filme da franquia Potter para trás em mais de US$ 100 milhões. E em dezembro de 2010, “Call of Duty” havia alcançado US$ 1 bilhão em vendas, cerca de um mês após seu lançamento.
Não à toa, o próprio cinema vem tentando surfar nesta onda. São cada vez mais comuns filmes baseados em personagens e situações criados para os videogames. Por outro lado, filmes de sucesso podem tornar-se bem sucedidas adaptações para games.
“Call of Duty” simula situações de combate. Sua primeira versão tinha como cenário batalhas travadas durante a Segunda Guerra Mundial. Mas sua versão “Modern Warfare 2” é ambientado nos tempos atuais e em grande cidades. Algumas ações se passam no Rio de Janeiro, com direito a invasão de favelas e tiros em moradores como um mal necessário.
GTA é a sigla para “Grand Theft Auto”. É o nome que a polícia americana usa para identificar furtos de automóveis de valor elevado. O jogo explora situações de extrema violência, roubos, homicídios e prostituição.
Mais recentemente, foi lançado o game Bully. O cenário é uma escola. O jogador é um aluno. Sua missão é sobreviver às panelinhas de alunos, enfrentar o autoritarismo de professores, lidar com brincadeiras maldosas, conquistar garotas e também aprontar com os outros para ganhar pontos.
A indústria dos videogames é coisa muito séria. Está cada vez mais poderosa. No ano passado lucrou US$ 24 bilhões. Números como este e o perfil dos jogos mais vendidos são preocupantes. Mostram o crescimento da influência de um tipo de mídia que ainda recebe pouca atenção.
E quando recebem, costumam despertar reações pouco sutis. Por exemplo, quando os jogos eletrônicos são acusados de tornar os jovens mais violentos. Não há estudos aprofundados sobre tal relação. Nem em relação à TV e ao cinema, que são bem mais antigos, há provas definitivas de que suas atrações tornem seu público mais violento.
Se esta relação de causa e efeito fosse tão direta, conviveríamos com centenas de maníacos assassinos em nossos bairros, famílias, locais de trabalho e de estudo. É só olhar em volta para descobrir muitos adeptos dos jogos, filmes e programas violentos. A maioria deles, envolvida em pacatas atividades e rotinas de vida.
O Japão, por exemplo, tem um dos maiores mercados do mundo para produtos que têm a violência extrema como tema. No entanto, apresenta índices de crimes violentos muito baixos. A violência que atinge os jovens daquele país parece ser de outra natureza. Um fenômeno que se manifesta em um grande número de suicídios.
Não se trata de dizer que os videogames, filmes e séries de TV violentos são inofensivos. Mas, é preciso tomar cuidado com relações que enxerguem no público um amontoado de teleguiados. Ou de seres facilmente programáveis por empresas todo-poderosas.
Críticas como essas foram muito comuns, por exemplo, na época em que as histórias em quadrinhos começaram a se tornar popular. As restrições a esse tipo de produção começou com Mussolini, mas foi adotada também nos Estados Unidos no Pós-Guerra.
O grande problema da condenação pura e simples de produtos como quadrinhos e videogames é ignorar seu apelo lúdico. Uma dimensão legítima e necessária da condição humana.
A indústria do videogame, como a do cinema e dos quadrinhos, somente faz sucesso duradouro quando atende a este apelo sem subestimar a inteligência de seu público-alvo. E é este erro que não podemos cometer ao fazer a crítica desse tipo de indústria. Acusá-la de manipular pura e simplesmente as pessoas pode ser entendido por estas como um menosprezo a sua capacidade crítica.
E isso só piora quando as críticas partem de quem não tem a menor familiaridade com o rico universo que abrange jogos, quadrinhos, seriados e cinema. Os encarregados de criar os elementos desse cosmo são artistas bem pagos, inteligentes, bem informados e muito criativos.
Ao mesmo tempo, a indústria sabe aproveitar as sugestões e idéias que surgem de ambientes virtuais que reúnem fãs e adeptos quase profissionais. Tal ambiente vem dando aos games cada vez mais complexidade, força dramática e qualidade artística.
O fato é que o sucesso dos jogos violentos deve-se muito mais ao ambiente social em que são criados. Seria cômodo dizer que são os games violentos que alimentam a violência. E seria fácil combater tais efeitos. Bastaria proibir sua circulação, como se tenta fazer com armas e drogas.
A ação dos games é mais sutil. Trata-se de reforçar uma lógica social de extrema competição individualista e discriminatória. Mas precisa fazer isso em meio a uma disputa de mercado. Por isso, as estratégias podem variar conforme o momento, o lugar do mercado e a faixa de público que se quer atingir. Daí, os inúmeros tipos de jogos e sua evolução ao longo do tempo.
Nada disso dispensa a necessidade de denunciar a lógica da indústria de games e das diversões em geral. Mas, é preciso fazê-lo unindo razão e sensibilidade de modo a respeitar a inteligência alheia. De preferência, contando com aliados que atuem nesse campo, que já vai se transformando em uma nova e poderosa “arte”.
Do contrário, seria como virar as costas ao cinema, ignorando produções que defenderam a necessidade de lutar por transformações sociais. Correríamos o risco de nos tornar não uma esquerda crítica, mas rabugenta e atrasada. Melhor dizendo, “sem noção!”
Em julho de 2008, “Harry Potter” quebrou o recorde histórico de bilheteria para filmes na semana de estréia. Arrecadou US$ 394 milhões. Desde então, nenhuma produção superou a marca, incluindo Avatar, de James Cameron.
Mas, em maio do mesmo ano, o jogo GTA IV vendeu US$ 500 milhões em uma semana. Deixou o filme da franquia Potter para trás em mais de US$ 100 milhões. E em dezembro de 2010, “Call of Duty” havia alcançado US$ 1 bilhão em vendas, cerca de um mês após seu lançamento.
Não à toa, o próprio cinema vem tentando surfar nesta onda. São cada vez mais comuns filmes baseados em personagens e situações criados para os videogames. Por outro lado, filmes de sucesso podem tornar-se bem sucedidas adaptações para games.
“Call of Duty” simula situações de combate. Sua primeira versão tinha como cenário batalhas travadas durante a Segunda Guerra Mundial. Mas sua versão “Modern Warfare 2” é ambientado nos tempos atuais e em grande cidades. Algumas ações se passam no Rio de Janeiro, com direito a invasão de favelas e tiros em moradores como um mal necessário.
GTA é a sigla para “Grand Theft Auto”. É o nome que a polícia americana usa para identificar furtos de automóveis de valor elevado. O jogo explora situações de extrema violência, roubos, homicídios e prostituição.
Mais recentemente, foi lançado o game Bully. O cenário é uma escola. O jogador é um aluno. Sua missão é sobreviver às panelinhas de alunos, enfrentar o autoritarismo de professores, lidar com brincadeiras maldosas, conquistar garotas e também aprontar com os outros para ganhar pontos.
A indústria dos videogames é coisa muito séria. Está cada vez mais poderosa. No ano passado lucrou US$ 24 bilhões. Números como este e o perfil dos jogos mais vendidos são preocupantes. Mostram o crescimento da influência de um tipo de mídia que ainda recebe pouca atenção.
E quando recebem, costumam despertar reações pouco sutis. Por exemplo, quando os jogos eletrônicos são acusados de tornar os jovens mais violentos. Não há estudos aprofundados sobre tal relação. Nem em relação à TV e ao cinema, que são bem mais antigos, há provas definitivas de que suas atrações tornem seu público mais violento.
Se esta relação de causa e efeito fosse tão direta, conviveríamos com centenas de maníacos assassinos em nossos bairros, famílias, locais de trabalho e de estudo. É só olhar em volta para descobrir muitos adeptos dos jogos, filmes e programas violentos. A maioria deles, envolvida em pacatas atividades e rotinas de vida.
O Japão, por exemplo, tem um dos maiores mercados do mundo para produtos que têm a violência extrema como tema. No entanto, apresenta índices de crimes violentos muito baixos. A violência que atinge os jovens daquele país parece ser de outra natureza. Um fenômeno que se manifesta em um grande número de suicídios.
Não se trata de dizer que os videogames, filmes e séries de TV violentos são inofensivos. Mas, é preciso tomar cuidado com relações que enxerguem no público um amontoado de teleguiados. Ou de seres facilmente programáveis por empresas todo-poderosas.
Críticas como essas foram muito comuns, por exemplo, na época em que as histórias em quadrinhos começaram a se tornar popular. As restrições a esse tipo de produção começou com Mussolini, mas foi adotada também nos Estados Unidos no Pós-Guerra.
O grande problema da condenação pura e simples de produtos como quadrinhos e videogames é ignorar seu apelo lúdico. Uma dimensão legítima e necessária da condição humana.
A indústria do videogame, como a do cinema e dos quadrinhos, somente faz sucesso duradouro quando atende a este apelo sem subestimar a inteligência de seu público-alvo. E é este erro que não podemos cometer ao fazer a crítica desse tipo de indústria. Acusá-la de manipular pura e simplesmente as pessoas pode ser entendido por estas como um menosprezo a sua capacidade crítica.
E isso só piora quando as críticas partem de quem não tem a menor familiaridade com o rico universo que abrange jogos, quadrinhos, seriados e cinema. Os encarregados de criar os elementos desse cosmo são artistas bem pagos, inteligentes, bem informados e muito criativos.
Ao mesmo tempo, a indústria sabe aproveitar as sugestões e idéias que surgem de ambientes virtuais que reúnem fãs e adeptos quase profissionais. Tal ambiente vem dando aos games cada vez mais complexidade, força dramática e qualidade artística.
O fato é que o sucesso dos jogos violentos deve-se muito mais ao ambiente social em que são criados. Seria cômodo dizer que são os games violentos que alimentam a violência. E seria fácil combater tais efeitos. Bastaria proibir sua circulação, como se tenta fazer com armas e drogas.
A ação dos games é mais sutil. Trata-se de reforçar uma lógica social de extrema competição individualista e discriminatória. Mas precisa fazer isso em meio a uma disputa de mercado. Por isso, as estratégias podem variar conforme o momento, o lugar do mercado e a faixa de público que se quer atingir. Daí, os inúmeros tipos de jogos e sua evolução ao longo do tempo.
Nada disso dispensa a necessidade de denunciar a lógica da indústria de games e das diversões em geral. Mas, é preciso fazê-lo unindo razão e sensibilidade de modo a respeitar a inteligência alheia. De preferência, contando com aliados que atuem nesse campo, que já vai se transformando em uma nova e poderosa “arte”.
Do contrário, seria como virar as costas ao cinema, ignorando produções que defenderam a necessidade de lutar por transformações sociais. Correríamos o risco de nos tornar não uma esquerda crítica, mas rabugenta e atrasada. Melhor dizendo, “sem noção!”
26 de fev. de 2011
Folha: de rabo preso com a ditadura de plantão
A Folha de S. Paulo acaba de completar 90 anos. Aproveitou para confessar seu apoio ao regime militar. Na verdade, comemora a vitória do Projeto Folha, em que trocou seu apoio à ditadura política pela fé na ditadura econômica.
A Folha de S. Paulo completou 90 anos no sábado, dia 19 de fevereiro. Nascido em 1921, o jornal só ganhou o nome atual em 1931. Até então, era Folha da Noite. De 1986 a 2010 foi a publicação jornalística de maior circulação do País. Perdeu o primeiro lugar para o tablóide mineiro Super Notícia. Mas, sem dúvida segue sendo um dos mais influentes no País.
Relembrando sua história, o jornal fez uma confissão rara em sua edição do dia 20/02. Assumiu claramente seu apoio ao golpe militar de 1964. Disse que sua redação foi entregue jornalistas “entusiasmados com a linha dura militar” como parte de uma reação da empresa “à atuação clandestina” de militantes da Ação Libertadora Nacional (ALN) nas dependências do próprio jornal. Uma desculpa mais que esfarrapada.
Quanto ao uso de suas caminhonetes de entrega de jornal por agentes da repressão, a Folha atribui o relato a denúncias de presos políticos e não as confirma. Mesmo assim, surpreende a admissão do papel do jornal no apoio à ditadura. Ou não?
Na verdade, esse repentino ataque de franqueza nada tem de contraditório. A Folha fez um movimento inteligente no início dos anos 1980. Pressentindo a crise do regime militar, trocou seu apoio à ditadura dos generais pela militância pela ditadura do mercado. Essa guinada recebeu o nome de Projeto Folha. O próprio histórico publicado no jornal ajuda a esclarecer:
“Respondendo a essa fragmentação, continua o texto da Folha, a direção do jornal elegeu o pluralismo e o apartidarismo (...) como os principais pilares do Projeto Folha”. Segundo o final feliz do histórico do jornalão paulista, “o Projeto Folha transformou-se numa influente escola de jornalismo”. Teria se tornado um veiculo apartidário e comprometido com a sociedade civil. Ou conforme campanha publicitária dos anos 1980, um jornal “de rabo preso com o leitor”.
José Arbex foi um dos jornalistas que acompanhou esse projeto muito de perto. Fazia parte da redação da Folha na época de sua implantação. Em seu livro “Shownarlismo” (Casa Amarela-2001), Arbex diz que o Projeto Folha significou a adoção do discurso para o mercado. Nada mais do que o tratamento da notícia como mercadoria.
A pose da Folha como porta-voz da democracia, escondia uma política interna autoritária. Um rígido controle industrial e ideológico da produção de informação materializado em seu famoso Manual de Redação. Arbex diz que o jornal escolheu “a estratégia de transformar a democracia em marketing”.
Na verdade, trata-se da adoção da “democracia de mercado”, em que o que importa é o funcionamento das leis capitalistas. Se a Folha sobreviveu à censura dos generais, por que não veria com tranqüilidade a implantação de um sistema baseado em eleições e outras liberdades? Afinal, a condição de monopólio da mídia empresarial já lhe garantia poder suficiente para funcionar como um bloqueio econômico à verdadeira liberdade de informação. Foi isso o que a Folha enxergou antes de sua concorrência.
O Projeto Folha implicava uma opção clara. Era pelo fim do apoio da empresa à ditadura política dos militares. Mas também pelo engajamento na defesa do livre funcionamento da ditadura das leis do mercado. Uma postura que ajudava também a reforçar o lado conservador da “transição democrática”. Aquele que tentou e conseguiu manter o essencial dos aparelhos de repressão reforçados pela ditadura militar. Algo que resultou, por exemplo, no tratamento ilegal e violento dispensado pelas polícias e forças de segurança a pobres e negros. Assim como na criminalização dos movimentos sociais.
Essa promessa de fé no império da acumulação do capital ajuda a explicar algumas recaídas que lembram a relação submissa do jornal em relação ao regime militar. Uma delas foi o episódio da “ditabranda”, palavra inventada pela Folha em editorial de fevereiro de 2009. O neologismo procurava dar à ditadura de 64 um caráter moderado.
Esta espécie de ato falho talvez revele disposição em aceitar a volta do uso de medidas ditatoriais. Basta que se mostrem necessárias para garantir a enorme concentração de poder e lucros das grandes corporações.
Mas, a razão mais concreta da recente “confissão” da Folha parece ser mais simples. Por ocasião de seus 90 anos, o jornal colocou à disposição do público seu conteúdo integral desde 1921. São quase 2 milhões de páginas totalmente indexadas. Uma medida que certamente deixa mais óbvias muitas das relações podres da Folha com o poder.
Aí, a melhor política passa a ser confessar logo aquilo que vai ficar claro demais para ser negado. Mais uma amostra da linha flexível do jornal quando se trata de manter o essencial de seu projeto. Além disso, aproveita o momento em que os principais atores políticos do País se recusam a acertar contas com os carrascos da ditadura.
O aniversário da Folha mereceu um discurso da presidenta da República em evento comemorativo. Dilma não nega nem renega sua atuação na resistência à ditadura. Mas, manteve em seu governo Nelson Jobim, figura submissa à cúpula conservadora das Forças Armadas. A última proeza de Jobim foi propor a cassação da anistia concedida a militares que se rebelaram contra o golpe de 64.
Acrescente-se a isso a presença de Dilma nas comemorações do jornalão paulista. Péssimo sinal. O evento festejava mais uma vitória da mídia empresarial. Saudava sua capacidade de disfarçar seus interesses particulares e antipopulares com a máscara da liberdade de imprensa. Comemorava a maestria da Folha em esconder seu rabo preso às ditaduras de plantão. As políticas e as econômicas.
A Folha de S. Paulo completou 90 anos no sábado, dia 19 de fevereiro. Nascido em 1921, o jornal só ganhou o nome atual em 1931. Até então, era Folha da Noite. De 1986 a 2010 foi a publicação jornalística de maior circulação do País. Perdeu o primeiro lugar para o tablóide mineiro Super Notícia. Mas, sem dúvida segue sendo um dos mais influentes no País.
Relembrando sua história, o jornal fez uma confissão rara em sua edição do dia 20/02. Assumiu claramente seu apoio ao golpe militar de 1964. Disse que sua redação foi entregue jornalistas “entusiasmados com a linha dura militar” como parte de uma reação da empresa “à atuação clandestina” de militantes da Ação Libertadora Nacional (ALN) nas dependências do próprio jornal. Uma desculpa mais que esfarrapada.
Quanto ao uso de suas caminhonetes de entrega de jornal por agentes da repressão, a Folha atribui o relato a denúncias de presos políticos e não as confirma. Mesmo assim, surpreende a admissão do papel do jornal no apoio à ditadura. Ou não?
Na verdade, esse repentino ataque de franqueza nada tem de contraditório. A Folha fez um movimento inteligente no início dos anos 1980. Pressentindo a crise do regime militar, trocou seu apoio à ditadura dos generais pela militância pela ditadura do mercado. Essa guinada recebeu o nome de Projeto Folha. O próprio histórico publicado no jornal ajuda a esclarecer:
A Folha foi o jornal que mais se associou às Diretas. Seu engajamento é anterior ao das principais lideranças de oposição que, em fins de 1983, ainda não formavam uma frente compacta, deixando prevalecer os interesses partidários. Nessa altura, quando o movimento mal conseguia encher uma praça, o jornal criticou o sectarismo dos políticos e o silêncio da imprensa.Ou seja, sentindo as dificuldades do governo dos generais para se manter no poder, a Folha cobrava da classe dominante unidade em torno de outro projeto. O movimento das Diretas teria sido o “o apogeu do consenso suprapartidário das oposições”. Mas, uma vez derrotada a emenda que propunha eleições diretas para presidente, “cada partido tratou de traçar sua própria estratégia”.
“Respondendo a essa fragmentação, continua o texto da Folha, a direção do jornal elegeu o pluralismo e o apartidarismo (...) como os principais pilares do Projeto Folha”. Segundo o final feliz do histórico do jornalão paulista, “o Projeto Folha transformou-se numa influente escola de jornalismo”. Teria se tornado um veiculo apartidário e comprometido com a sociedade civil. Ou conforme campanha publicitária dos anos 1980, um jornal “de rabo preso com o leitor”.
José Arbex foi um dos jornalistas que acompanhou esse projeto muito de perto. Fazia parte da redação da Folha na época de sua implantação. Em seu livro “Shownarlismo” (Casa Amarela-2001), Arbex diz que o Projeto Folha significou a adoção do discurso para o mercado. Nada mais do que o tratamento da notícia como mercadoria.
A pose da Folha como porta-voz da democracia, escondia uma política interna autoritária. Um rígido controle industrial e ideológico da produção de informação materializado em seu famoso Manual de Redação. Arbex diz que o jornal escolheu “a estratégia de transformar a democracia em marketing”.
Na verdade, trata-se da adoção da “democracia de mercado”, em que o que importa é o funcionamento das leis capitalistas. Se a Folha sobreviveu à censura dos generais, por que não veria com tranqüilidade a implantação de um sistema baseado em eleições e outras liberdades? Afinal, a condição de monopólio da mídia empresarial já lhe garantia poder suficiente para funcionar como um bloqueio econômico à verdadeira liberdade de informação. Foi isso o que a Folha enxergou antes de sua concorrência.
O Projeto Folha implicava uma opção clara. Era pelo fim do apoio da empresa à ditadura política dos militares. Mas também pelo engajamento na defesa do livre funcionamento da ditadura das leis do mercado. Uma postura que ajudava também a reforçar o lado conservador da “transição democrática”. Aquele que tentou e conseguiu manter o essencial dos aparelhos de repressão reforçados pela ditadura militar. Algo que resultou, por exemplo, no tratamento ilegal e violento dispensado pelas polícias e forças de segurança a pobres e negros. Assim como na criminalização dos movimentos sociais.
Essa promessa de fé no império da acumulação do capital ajuda a explicar algumas recaídas que lembram a relação submissa do jornal em relação ao regime militar. Uma delas foi o episódio da “ditabranda”, palavra inventada pela Folha em editorial de fevereiro de 2009. O neologismo procurava dar à ditadura de 64 um caráter moderado.
Esta espécie de ato falho talvez revele disposição em aceitar a volta do uso de medidas ditatoriais. Basta que se mostrem necessárias para garantir a enorme concentração de poder e lucros das grandes corporações.
Mas, a razão mais concreta da recente “confissão” da Folha parece ser mais simples. Por ocasião de seus 90 anos, o jornal colocou à disposição do público seu conteúdo integral desde 1921. São quase 2 milhões de páginas totalmente indexadas. Uma medida que certamente deixa mais óbvias muitas das relações podres da Folha com o poder.
Aí, a melhor política passa a ser confessar logo aquilo que vai ficar claro demais para ser negado. Mais uma amostra da linha flexível do jornal quando se trata de manter o essencial de seu projeto. Além disso, aproveita o momento em que os principais atores políticos do País se recusam a acertar contas com os carrascos da ditadura.
O aniversário da Folha mereceu um discurso da presidenta da República em evento comemorativo. Dilma não nega nem renega sua atuação na resistência à ditadura. Mas, manteve em seu governo Nelson Jobim, figura submissa à cúpula conservadora das Forças Armadas. A última proeza de Jobim foi propor a cassação da anistia concedida a militares que se rebelaram contra o golpe de 64.
Acrescente-se a isso a presença de Dilma nas comemorações do jornalão paulista. Péssimo sinal. O evento festejava mais uma vitória da mídia empresarial. Saudava sua capacidade de disfarçar seus interesses particulares e antipopulares com a máscara da liberdade de imprensa. Comemorava a maestria da Folha em esconder seu rabo preso às ditaduras de plantão. As políticas e as econômicas.
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