Texto de 2005
"Senhora do Destino" atrai 45 milhões de telespectadores diariamente. Reportagem da revista Veja explica bem o fenômeno. Mas não tira a conclusão necessária. A de que a estratégia das novelas globais é totalitária. Algo que vem sendo construído há 40 anos.
A novela "Senhora do Destino" da TV Globo foi para a capa da Veja de 09/02/2005. O motivo disso não é apenas a boa relação entre as duas maiores porta-vozes dos interesses conservadores. Segundo o Ibope a novela de Aguinaldo Silva tem uma audiência de cerca de 45 milhões de pessoas diariamente. Em 2 de fevereiro, ela teria sido assistida em 80 de cada 100 lares do País.
Por incrível que pareça a matéria de Veja é até bem feita. Claro que não tem uma vírgula de críticas. Mas, aplica um raio-x no esquema global de novelas que pode nos ajudar a entender as razões para tanta audiência. Pra começar destaca o uso da velha e atraente oposição entre o Bem e o Mal. No caso, as personagens Maria do Carmo (Suzana Vieira) e Nazaré (Renata Sorrah). Ricardo Valladares, autor da reportagem, explica que "na literatura e na dramaturgia 'sérias' as fronteiras entre bem e mal tendem a ser borradas". É verdade. O jornalista também diz que "uma das principais marcas da ficção popular tem sido a falta de pudor em dividir o mundo de maneira muito definida entre luz e trevas. Isso vale para o folhetim escrito, tanto quanto para o eletrônico". Um raciocínio correto, sem dúvida. Mas, para sermos coerentes com ele, teríamos que colocar a revista para a qual Valladares trabalha na categoria de folhetim, dada a facilidade com que trata os movimentos sociais como demônios.
A reportagem destaca que mesmo essa surrada fórmula que opõe bonzinhos e vilões apela para truques novos. Um deles é fazer de Nazaré uma espécie de "vilã de desenho animado", segundo as palavras de Aguinaldo Silva. A reportagem explica que a maldosa mulher "já apanhou e viu sua máscara cair em diversas situações. Sempre se reergue, ainda que estropiada". Renata Sorrah confirma essa idéia. Diz que é comum crianças lhe pedirem autógrafo mais do que seria normal para alguém que interpreta uma verdadeira bruxa má. Sinal de que a máquina de fazer novelas da Globo está sintonizada com a crescente adaptação infantil ao mal inevitável. Algo que vem sendo gradualmente trabalhado por desenhos animados, vídeo-games, filmes e programas de tevê. Não sem a enorme ajuda de uma realidade extremamente violenta.
Definindo o que as famílias devem conversar
Mas "Senhora do Destino" vai muito além da conhecida exploração da rivalidade entre mal e bem. A reportagem fala da já conhecida capacidade das novelas globais em introduzir temas polêmicos em suas tramas. E "Senhora do Destino" parece ter chegado ao máximo nesta fórmula. Há um casal feminino de homossexuais vivido por Eleonora (Mylla Christie) e Jenifer (Bárbara Borges). Glória Menezes faz o papel da baronesa de Bonsucesso, que sofre da doença de Alzheimer, comum entre idosos. Reginaldo (Eduardo Moscovis) é prefeito da fictícia Vila São Miguel. É o próprio modelo de político corrupto e conta com o apoio da mulher, Viviane (Leticia Spiller) para suas bandalheiras. Outro tema presente é a gravidez na adolescência, através da personagem Lady Daiane (Jéssica Sodré). E ainda há a violência doméstica, de que é vítima Rita (Adriana Lessa). Pobre e a negra, a personagem era uma esposa submissa que levava surras do marido, do qual felizmente se livrou. Cada um desses temas são abordados do modo mais didático e avançado possível. Os diálogos viram aulas sobre tolerância, prevenção, ética na política, condenação ao machismo, etc.
Qual é o problema nisso tudo? Em primeiro lugar, alguns temas são tratados de forma meio enfeitada. Por exemplo, o casal lésbico é vivido por duas atrizes consideradas bonitas. Um primeiro passo para amenizar a rejeição preconceituosa do público. Além disso, segundo a reportagem de Veja, o casal também conta com a simpatia da audiência "graças à forma como se construiu a relação de ambas. Elas tiveram a aprovação dos pais, vão morar juntas e pretendem adotar um filho". Sem dúvida, um caso raro.
No entanto, muitos diriam, com razão, que se trata de uma obra de ficção, não de um documentário. Está bem. Daremos o devido desconto. O problema é outro. É a tentativa sempre renovada pela Globo para preencher todos os espaços de pensamento e reflexão. A matéria de Valladares fala das novelas. Identifica corretamente a estratégia da emissora. Vejam o que ele diz: "Ao longo dos anos, os autores da Rede Globo refinaram uma série de técnicas para conquistar a atenção do público. São referências críticas na trama ao cenário político nacional, a abordagem de assuntos polêmicos como a homossexualidade ou a violência doméstica (que assim entram na pauta de conversa das famílias) e a prestação de informações sobre doenças e outras aflições do brasileiro - o chamado 'merchandising do bem'". É isso mesmo. Com a desculpa de que faz propaganda do bem, a Globo define o que deve ou não deve entrar na "conversa das famílias".
Separação entre realidade e aparência acomoda preconceitos
Ao mesmo tempo, há uma ilusão aí. Exatamente por ser algo de cima pra baixo, imposto pelo monopólio dos meios de comunicação, é que os efeitos desse "merchandising do bem" tendem a ser superficiais. Não mudam necessariamente comportamentos violentos, preconceituosos, desonestos etc. Ao contrário, estimulam os comportamentos de fachada. Que não vão às raízes dos problemas. É só observar o resultado de pesquisas sobre racismo. Por exemplo, em 2003 o Núcleo de Opinião Pública (NOP) da Fundação Perseu Abramo fez uma pesquisa nacional sobre a questão. O resultado surpreende: 90% da população diz existir racismo e, no entanto, só 19% manifestam preconceito.
Há uma grande separação entre realidade e aparência, que acomoda a sociedade a seus conflitos de classe, cor, orientação sexual, etc. O problema é que a tal "propaganda do bem" não tem qualquer correspondente na realidade. Os preconceitos não nascem apenas da pouca informação, da falta de diálogo etc. Medidas como mais escolas, emprego, mais informação e melhor qualidade de vida não diminuem automaticamente o preconceito. No entanto, criam condições para que isso aconteça.
Enquanto essas medidas não são colocadas em prática, as classes dominantes vão reinando tranqüilas. Fazendo uso não só da exploração, mas da divisão que os preconceitos e a violência causam entre os de baixo. E as novelas da Globo são parte importante dessa acomodação. São 45 milhões de pessoas vendo diariamente a imagem de uma vida mais justa e esquecendo de suas próprias desgraças.
Basta ver como as novelas impregnam toda a programação da poderosa emissora. Logo após o meio-dia, o "Vídeo-Show" mostra trechos de novelas, entrevista seus atores e diretores, faz jogos para ver quem acerta mais questões sobre novelas novas e antigas. Durante a tarde, novelas antigas são repetidas em "Vale a pena ver de novo". A partir das 17:30h, "Malhação" inaugura a maratona de folhetins, interrompida apenas pelo Jornal Nacional. E este último, sempre teve mais atores do que jornalistas na apresentação do que parecem ser mais imagens bem feitas do que notícias. O "Casseta e Planeta" avacalha as novelas, o "Faustão" só elogia. O fato é que todos colaboram para fazer "as famílias conversarem" sobre as produções globais.
Enfim, a reportagem de Valladares é bem feita, apesar de ter sido publicada na mais conservadora e pior revista do País. Deve ser por isso mesmo que a matéria não mostra que toda essa capacidade dramatúrgica da Rede Globo está a serviço de uma estratégia totalitária. Que quer impor tudo o que ela pensa a todos. Sem deixar espaço para ninguém mais, a não ser para seus amigos poderosos. Uma estratégia de quem vem há 40 anos fazendo o jogo do poder participando dele, combatendo os movimentos sociais da forma mais inteligente e destrutiva. Pela guerra das idéias, pela omissão e distorção. Exibindo somente os pedaços da realidade que interessam aos poderosos. Falando de preconceitos, apenas para que circulem e se multipliquem de maneira mais comportada.
Aos 40 anos, a Globo continua pretendendo ser senhora de nosso destino. Continua se achando acima do bem e do mal. Cabe a nós dar fim a essa grande e poderosa fábrica de preconceitos
30 de out. de 2011
15 de out. de 2011
Romantismo, cinema e TV
Acreditem, o romantismo é um protesto contra a sociedade capitalista. O estranho é que Hollywood e a Globo usem e abusem desse tipo de protesto.
Texto de novembro de 2004
O que é o romantismo? Qualquer pessoa na rua responderia a essa pergunta citando canções de Roberto Carlos e até de Chico Buarque. Ou poemas de Vinícius, novelas de Janete Clair e filmes como “Love Story”, de Arthur Hiller (1970) “E o vento levou”, de Victor Fleming (1939) e até “Olga”, de Jayme Monjardim (2004). Aliás, uma das críticas mais comuns a este último filme é o fato de terem transformado a vida dos militantes comunistas, Olga e Prestes, num melodrama digno das novelas da Globo. Mas há os que defendem a produção exatamente por isso. “Afinal”, dizem eles, “para fazer chegar a história do casal comunista ao grande público é preciso dar lhe um formato bonito e atraente. Usar uma linguagem a que ele já está acostumado. Falar de amor e paixão”. O problema é: por que para ser atraente, uma obra cinematográfica ou televisiva precisa ser romântica? O que é o romantismo, afinal?
Uma vez Karl Marx disse algo assim: “O romantismo nasceu com o capitalismo e vai morrer com ele”. Por que? Porque o romantismo é um protesto contra a sociedade capitalista. É isso mesmo. Uma afirmação como esta deve ser uma surpresa para quem está acostumado a pensar em novelas, filmes, canções de amor, poesias melosas, como coisas que justificam uma vida conformada diante do capitalismo. Mas vamos com calma.
Tentemos definir o romantismo com a ajuda de um dos teóricos marxistas mais inteligentes e criativos da atualidade. Trata-se de Michael Löwy. Em um livro escrito com Robert Sayre chamado “Romantismo e Política”, os autores dizem “que a visão romântica é por essência uma reação contra as condições de vida na sociedade capitalista”. Mais especificamente, contra o “desencantamento” da vida. Um mundo onde impera o valor-de-troca. Uma sociedade fundada sobre o dinheiro e sobre a concorrência, que separa os indivíduos em “nômades egoístas, hostis e indiferentes aos outros”. Mas isso não significa que todo romântico é ou pode tornar-se socialista.
Existem vários romantismos, como existem várias formas de ser anticapitalista. Alguém que defenda o retorno à Idade Média, por exemplo, é anticapitalista. Quer a volta dos tempos dos cavaleiros e suas armaduras, dos reis e padres dominando a sociedade. Quadro bonito, mas ordinário. Afinal, quer a volta de uma opressão sobre a mulher ainda maior do que a que vemos hoje. Da religião autoritária, impondo sua fé a todos e castigando os que se recusam a segui-la. De reis e nobres parasitas vivendo da exploração de seus servos.
O mesmo pode ser dito sobre visões que idealizam a sociedade grega ou romana. Acham que nelas, sim, a inteligência, a elegância, a bravura imperavam. Esquecem que também imperavam a escravidão, um machismo que considerava a mulher um ser de segunda classe e até um autoritarismo que fez Sócrates se envenenar. Uma produção famosa de Hollywood que faz esse tipo de elogio a um passado nobre é “E o vento levou”. O casal principal do filme pertence ao galante mundo do sul dos Estados Unidos, arrasado pela Guerra Civil. Um lugar que seria bonito, se não tivesse sido construído com o sangue de milhões de escravos negros.
Também há romantismo de esquerda
Por outro lado, também há romantismos de esquerda. Aqueles que imaginam uma sociedade de iguais, onde não há propriedade privada, nem opressão sobre o semelhante. Esse tipo de romantismo costuma ver seu modelo nas tribos indígenas ou nas antigas sociedades pré-históricas. Imagina utopias, com justiça e liberdade. São como alguns socialistas utópicos dos séculos 18 e 19.
Além desse desconforto com o capitalismo, o romantismo também se caracteriza pela valorização do indivíduo. O desenvolvimento da idéia do sujeito individual está ligado ao nascimento e ao funcionamento do capitalismo. Afinal, para os patrões, é cômodo que cada trabalhador se considere um ser isolado e em competição com os outros trabalhadores. Alguém que pode vencer sozinho e não com seus camaradas do sindicato, do partido, da associação.
O romantismo também valoriza o indivíduo, mas num sentido heróico e dramático. Alguém que enfrenta as dificuldades da vida, do amor não correspondido ou do amor proibido, como em Romeu e Julieta. E o capitalismo é o exato contrário disso. É o culto do sujeito egoísta, preso a suas mesquinharias, aos valores materiais. O amor apaixonado é o oposto do casamento por conveniência, preso às convenções sociais. É o sentimento que precisa vencer os preconceitos de classe, de raça, de religião etc.
Outra característica do romantismo é a busca da totalidade. A comunhão do ser humano com a natureza, com o universo. Algo que o capitalismo não permite ao dividir a existência humana em tarefas parceladas, ao aprofundar a separação entre campo e cidade, esmagar até nossa compreensão das coisas sob uma avalanche de informações rápidas e desligadas entre si.
Indiana Jones, Romeu e Julieta, Olga e Prestes
Se o romantismo é tudo isso, ele é bom? Nem bom, nem ruim, necessariamente. O romantismo faz parte das contradições criadas pelo capitalismo. E quando ele se manifesta nas artes, essas contradições ficam mais visíveis. Mas, os produtores de filmes, novelas, os editores de livros, sabem usar essas contradições para dialogar com os anseios do público, mantendo-os amarrados à concepção de mundo burguesa.
É possível fazer uma novela e um filme não românticos. Existem muitos deles. Mas, os românticos acertam ao atingir diretamente a experiência de vida da grande maioria das pessoas. A experiência de indivíduos que se sentem sozinhos, mesmo quando estão em multidões. Que amam com medo de serem abandonados. São abandonados e temem começar a amar novamente. Querem fugir da vida chata e frustrante que vivem na realidade. Se identificam com as figuras heróicas como Indiana Jones, com lugares longínquos como a Terra Média, de “O Senhor dos Anéis”. Querem ser os casais trágicos como Romeu e Julieta ou Prestes e Olga. As pessoas se encantam com a natureza que é mostrada na televisão. A novela “Pantanal”, de Benedito Ruy Barbosa (1990), por exemplo. Os telespectadores se deliciam com novelas de época, onde o passado é reduzido a uma vida mais simples e inocente. É o caso de “Cabocla”, em exibição atualmente. São formas de fugir de um presente ou de um lugar incômodos.
Enfim, o romantismo é a linguagem que mais se aproxima da experiência concreta da maioria de nós. Começar a entender esse fenômeno é um bom começo para discutir como as obras estéticas atingem grandes multidões. Também é uma forma de construir caminhos para o diálogo. Muitos de nós já passaram pela experiência de tentar exibir filmes políticos para pessoas sem formação política. Cada vez mais, um “Encouraçado Potenkim”, de Sergei Eisenstein (1925), é menos suportável para quem já se acostumou aos padrões dos filmões americanos e produções da Globo. Roncos na sala de exibição não são raros.
O que fazer? Transformar o “Manifesto Comunista” em uma minissérie? Mostrar a história da Revolução Russa como um dramalhão mexicano? Não é o caso. Mas é preciso pensar e discutir mais sobre as produções culturais para os grandes públicos. Do contrário, só nos resta o caminho dos cineclubes voltados somente para alguns heróis românticos de esquerda.
Texto de novembro de 2004
O que é o romantismo? Qualquer pessoa na rua responderia a essa pergunta citando canções de Roberto Carlos e até de Chico Buarque. Ou poemas de Vinícius, novelas de Janete Clair e filmes como “Love Story”, de Arthur Hiller (1970) “E o vento levou”, de Victor Fleming (1939) e até “Olga”, de Jayme Monjardim (2004). Aliás, uma das críticas mais comuns a este último filme é o fato de terem transformado a vida dos militantes comunistas, Olga e Prestes, num melodrama digno das novelas da Globo. Mas há os que defendem a produção exatamente por isso. “Afinal”, dizem eles, “para fazer chegar a história do casal comunista ao grande público é preciso dar lhe um formato bonito e atraente. Usar uma linguagem a que ele já está acostumado. Falar de amor e paixão”. O problema é: por que para ser atraente, uma obra cinematográfica ou televisiva precisa ser romântica? O que é o romantismo, afinal?
Uma vez Karl Marx disse algo assim: “O romantismo nasceu com o capitalismo e vai morrer com ele”. Por que? Porque o romantismo é um protesto contra a sociedade capitalista. É isso mesmo. Uma afirmação como esta deve ser uma surpresa para quem está acostumado a pensar em novelas, filmes, canções de amor, poesias melosas, como coisas que justificam uma vida conformada diante do capitalismo. Mas vamos com calma.
Tentemos definir o romantismo com a ajuda de um dos teóricos marxistas mais inteligentes e criativos da atualidade. Trata-se de Michael Löwy. Em um livro escrito com Robert Sayre chamado “Romantismo e Política”, os autores dizem “que a visão romântica é por essência uma reação contra as condições de vida na sociedade capitalista”. Mais especificamente, contra o “desencantamento” da vida. Um mundo onde impera o valor-de-troca. Uma sociedade fundada sobre o dinheiro e sobre a concorrência, que separa os indivíduos em “nômades egoístas, hostis e indiferentes aos outros”. Mas isso não significa que todo romântico é ou pode tornar-se socialista.
Existem vários romantismos, como existem várias formas de ser anticapitalista. Alguém que defenda o retorno à Idade Média, por exemplo, é anticapitalista. Quer a volta dos tempos dos cavaleiros e suas armaduras, dos reis e padres dominando a sociedade. Quadro bonito, mas ordinário. Afinal, quer a volta de uma opressão sobre a mulher ainda maior do que a que vemos hoje. Da religião autoritária, impondo sua fé a todos e castigando os que se recusam a segui-la. De reis e nobres parasitas vivendo da exploração de seus servos.
O mesmo pode ser dito sobre visões que idealizam a sociedade grega ou romana. Acham que nelas, sim, a inteligência, a elegância, a bravura imperavam. Esquecem que também imperavam a escravidão, um machismo que considerava a mulher um ser de segunda classe e até um autoritarismo que fez Sócrates se envenenar. Uma produção famosa de Hollywood que faz esse tipo de elogio a um passado nobre é “E o vento levou”. O casal principal do filme pertence ao galante mundo do sul dos Estados Unidos, arrasado pela Guerra Civil. Um lugar que seria bonito, se não tivesse sido construído com o sangue de milhões de escravos negros.
Também há romantismo de esquerda
Por outro lado, também há romantismos de esquerda. Aqueles que imaginam uma sociedade de iguais, onde não há propriedade privada, nem opressão sobre o semelhante. Esse tipo de romantismo costuma ver seu modelo nas tribos indígenas ou nas antigas sociedades pré-históricas. Imagina utopias, com justiça e liberdade. São como alguns socialistas utópicos dos séculos 18 e 19.
Além desse desconforto com o capitalismo, o romantismo também se caracteriza pela valorização do indivíduo. O desenvolvimento da idéia do sujeito individual está ligado ao nascimento e ao funcionamento do capitalismo. Afinal, para os patrões, é cômodo que cada trabalhador se considere um ser isolado e em competição com os outros trabalhadores. Alguém que pode vencer sozinho e não com seus camaradas do sindicato, do partido, da associação.
O romantismo também valoriza o indivíduo, mas num sentido heróico e dramático. Alguém que enfrenta as dificuldades da vida, do amor não correspondido ou do amor proibido, como em Romeu e Julieta. E o capitalismo é o exato contrário disso. É o culto do sujeito egoísta, preso a suas mesquinharias, aos valores materiais. O amor apaixonado é o oposto do casamento por conveniência, preso às convenções sociais. É o sentimento que precisa vencer os preconceitos de classe, de raça, de religião etc.
Outra característica do romantismo é a busca da totalidade. A comunhão do ser humano com a natureza, com o universo. Algo que o capitalismo não permite ao dividir a existência humana em tarefas parceladas, ao aprofundar a separação entre campo e cidade, esmagar até nossa compreensão das coisas sob uma avalanche de informações rápidas e desligadas entre si.
Indiana Jones, Romeu e Julieta, Olga e Prestes
Se o romantismo é tudo isso, ele é bom? Nem bom, nem ruim, necessariamente. O romantismo faz parte das contradições criadas pelo capitalismo. E quando ele se manifesta nas artes, essas contradições ficam mais visíveis. Mas, os produtores de filmes, novelas, os editores de livros, sabem usar essas contradições para dialogar com os anseios do público, mantendo-os amarrados à concepção de mundo burguesa.
É possível fazer uma novela e um filme não românticos. Existem muitos deles. Mas, os românticos acertam ao atingir diretamente a experiência de vida da grande maioria das pessoas. A experiência de indivíduos que se sentem sozinhos, mesmo quando estão em multidões. Que amam com medo de serem abandonados. São abandonados e temem começar a amar novamente. Querem fugir da vida chata e frustrante que vivem na realidade. Se identificam com as figuras heróicas como Indiana Jones, com lugares longínquos como a Terra Média, de “O Senhor dos Anéis”. Querem ser os casais trágicos como Romeu e Julieta ou Prestes e Olga. As pessoas se encantam com a natureza que é mostrada na televisão. A novela “Pantanal”, de Benedito Ruy Barbosa (1990), por exemplo. Os telespectadores se deliciam com novelas de época, onde o passado é reduzido a uma vida mais simples e inocente. É o caso de “Cabocla”, em exibição atualmente. São formas de fugir de um presente ou de um lugar incômodos.
Enfim, o romantismo é a linguagem que mais se aproxima da experiência concreta da maioria de nós. Começar a entender esse fenômeno é um bom começo para discutir como as obras estéticas atingem grandes multidões. Também é uma forma de construir caminhos para o diálogo. Muitos de nós já passaram pela experiência de tentar exibir filmes políticos para pessoas sem formação política. Cada vez mais, um “Encouraçado Potenkim”, de Sergei Eisenstein (1925), é menos suportável para quem já se acostumou aos padrões dos filmões americanos e produções da Globo. Roncos na sala de exibição não são raros.
O que fazer? Transformar o “Manifesto Comunista” em uma minissérie? Mostrar a história da Revolução Russa como um dramalhão mexicano? Não é o caso. Mas é preciso pensar e discutir mais sobre as produções culturais para os grandes públicos. Do contrário, só nos resta o caminho dos cineclubes voltados somente para alguns heróis românticos de esquerda.
1 de out. de 2011
CBN: 15 anos tocando a mesma música
Texto de julho de 2006
A CBN faz 15 anos em outubro que vem. A rádio inovou ao assumir a transmissão de notícias como único objetivo. Seus programas são bem feitos, em linguagem correta e passam uma sensação de isenção. Longe disso, o que impera é a defesa das idéias neoliberais. Não tem música, mas o repertório não muda.
Quando surgiu, em 1991, a Central Brasileira de Notícias, tinha como modelo a TV CNN, americana. Queria fazer no rádio o que a emissora estadunidense fazia na televisão: veiculação de notícias 24 horas por dia. Daí, o mote “a rádio que só toca notícia”. Não se tratava somente de imitação. Era produto de uma idéia muito clara e da qual a Globo nunca teve dúvidas: controle de informação tem cada vez mais valor econômico, político e social. Além disso, era o início da grande ofensiva neoliberal no Brasil. A CBN surgiu, então, para fornecer informação em abundância, mas com a marca neoliberal.
Quinze anos depois, a CBN é um sucesso. Não é uma líder isolada no segmento. Em certos horários, a “Band News” e a “Jovem Pan”, em São Paulo, ganham. Mas é referência e obrigou suas concorrentes a imitá-la. Além disso, como disse sua diretora executiva, Mariza Tavares, é rentável. Apenas rentável? Provavelmente. Afinal, a função da CBN não é exatamente fazer dinheiro. É fazer cabeças.
Falando para as classes A e B
Tavares concedeu entrevista ao Observatório da Imprensa em junho passado. Um depoimento revelador sobre os objetivos da emissora que dirige. Segundo ela, “a cabeça da rede” é basicamente São Paulo. Por que? “São Paulo é o centro de decisões, o centro econômico, e a emissora tem que obedecer a isso”. Ou seja, a rádio que só toca notícia quase só fala para um público definido. Aqueles que têm ou estão próximos ao poder econômico. Os números do Ibope não desmentem isso: dados do último trimestre de 2005 mostravam que o público da CBN era mais masculino (64%) e predominantemente das classes chamadas A e B (66%;).
É verdade que a programação realmente presta serviços importantes. Principalmente, nas grandes cidades como São Paulo e seu trânsito caótico. E tem um estilo mais limpo na transmissão. Sem as apelações comuns utilizadas por outros programas e locutores, que não escondem seu ódio de classe, enquanto defendem a pena-de-morte e prisão de crianças, por exemplo. Um dos maiores responsáveis por isso é Heródoto Barbeiro. O principal âncora da CBN também deu entrevista ao Observatório da Imprensa e definiu como grandes trunfos da CBN, “isenção, pluralismo, perseguição diária da conduta ética”. E é esta a impressão que o ouvinte comum acaba tendo. Mariza Tavares reforça essa idéia ao dizer que “tem gente que acha que nós somos petistas, os petistas acham que somos tucanos. Acho que isso é bom”.
Claro que na atual confusão, opor tucanos e petistas não faz muito sentido. Pelo menos, para a maioria dos petistas que usam crachá. Mas também dá uma idéia daquilo que realmente é a programação da CBN. Heródoto é um dos que afirmam que a CBN sempre ouve o outro lado. E que o compromisso da rádio é com a notícia. Na realidade, são poucos os lados que a rádio ouve. Quase todos eles ligados ao verdadeiro compromisso da CBN: com os elogios às maravilhas do mercado.
A grande maioria dos entrevistados é formada por políticos, empresários, professores universitários, sindicalistas. Quase todos, antigos ou recentes devotos da fé neoliberal. Vez por outra, ouvem-se as vozes de lideranças populares e outras pessoas que não comungam da crença no “deus mercado”. Mas acabam fazendo o papel de figuras folclóricas em meio ao ambiente geral criado pela rádio. Um ambiente que é perfeitamente traduzido por seus âncoras e comentaristas.
O petista Heródoto Barbeiro, por exemplo, é discreto. Fala muito sobre cidadania e responsabilidade social de empresas, mas não vai mais longe que isso. Se pressionado, também fala em “populismo” quando o assunto é aumento dos gastos sociais. “Calote” quando alguém aponta o absurdo da dívida pública brasileira, e por aí vai. Outro âncora da rádio é Carlos Sardenberg. Bem menos discreto que Barbeiro, é tucano em cada um de seus comentários a favor das leis do mercado. Miriam Leitão é a porta-voz das receitas neoliberais, desde a época de Collor.
Lucia Hippólito aborda o mundo da política de maneira aparentemente crítica, mas seus comentários não passam da defesa da política institucional sem exageros. E exagero é denunciar o parlamento como a farsa que é. Mais ou menos na mesma linha de Franklin Martins. Gilberto Dimenstein é irritante com seu discurso “faça você mesmo aquilo que os governantes deveriam fazer com o dinheiro dos impostos arrancados dos mais pobres”. Arnaldo Jabor, então, é o retrato perfeito do conservadorismo beirando o fascismo, junto com muita informação distorcida e defesa incondicional do neoliberalismo.
Candidata a “guia” dos menos endinheirados
A CBN é como as rádios que tocam música. O repertório é restrito aos artistas cujas gravadoras pagaram seu “jabá”. Do mesmo modo, a música que toca na emissora da Globo é uma só, a do pensamento único neoliberal. O “jabá” vem na forma de patrocínios empresariais. E governamentais, claro.
O grande problema dessa história é que a CBN não “faz a cabeça” somente dos mais endinheirados. As chamadas classes C, D e E são responsáveis por 34% da audiência da rádio. E a própria Mariza Tavares alerta para outro fenômeno. Na mesma entrevista, falando sobre os que ganham menos, ela diz:“Existe um movimento que não é de classe A-B, um enorme movimento de um contingente parcialmente invisível, ou pouco visível, querendo entender este mundo muito mais complicado. Quem são os guias? (...). É quem vai dar ferramentas para entender o mundo. Algo que nós achávamos que era prerrogativa do leitor de jornal, classe média, do público da CBN, mas não é só isso. Na verdade há um grande movimento subterrâneo, e sairá na frente quem entender como fornecer esse instrumental”.“Quem são os guias ?”, pergunta Mariza. A resposta é assustadora: uma forte candidata é a rádio de notícias da Globo.
É preciso ficar atento. A burguesia não perde tempo. E aproveita-se de um vazio deixado pela esquerda. Por um lado, mesmo que de forma precária, funcionam algumas rádios comunitárias em bairros pobres. Falam ao tal público “D e E”. Aos trancos e barrancos, é verdade. Mas, pelo menos, falam.
Por outro lado, como fica a chamada “classe C”? Esta não é forçada a formas coletivas de sobrevivência, como nas favelas e cortiços. São muito mais sujeitas a um modo de vida isolado de vizinhos e colegas de trabalho. E cada vez mais são alvo dessa disputa por hegemonia. A qualidade da técnica global de comunicação pode fazer enormes estragos nessa briga. A CBN vem fazendo sua parte.
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