Uma série de grande sucesso nos Estados
Unidos e um documentário brasileiro mostram toda a arbitrariedade da estrutura
judiciária contemporânea. Outro elemento comum aos dois países é a adoção de
leis que pretendem criminalizar a pobreza e os movimentos sociais.
Making a murderer
A série “Making a murderer” (“Fabricando um assassino”), da Netflix, é o grande
sucesso da temporada nos Estados Unidos. Escrito e dirigido por Laura Ricciardi
e Moira Demos, o documentário conta a história de Steven Avery, acusado de ter
cometido crime sexual, em 1985. Condenado com base em provas frágeis, sua
sentença é anulada em 2003. Colocado em liberdade após 18 anos de prisão, ele processa
a justiça de sua cidade exigindo uma indenização de U$ 36 milhões.
Mas pouco tempo depois de sua libertação, uma jovem desaparece. Buscas
policiais chegam à propriedade da família de Avery e encontram restos de um
cadáver, o carro da vítima e outras evidências que apontam para Steven como autor do novo crime. A série,
basicamente, mostra as muitas inconsistências da acusação. Entre elas, a
participação nas investigações dos mesmos policiais que Avery estava
processando e claros sinais de evidências forjadas na suposta cena do crime.
Um dos aspectos que mais assusta no seriado é a impossibilidade de reverter uma
decisão, uma vez que ela é tomada pelo sistema judicial. A anulação da sentença
que condenou Avery em 1985 é um caso raro, mas os que trabalharam por sua condenação
não tiveram sossego enquanto não o implicaram em novo crime. Outro aspecto
assustador é o caráter de infabilidade quase sagrada com que os agentes da
justiça e da lei são ungidos pela sociedade.
Mesmo diante de sérias falhas e procedimentos bastante questionáveis dos
policiais envolvidos, era muito comum o argumento de que não se podia desmoralizá-los
publicamente. Para isso colabora bastante a atuação da grande mídia, cuja
necessidade de manter seu suposto caráter de portadora da verdade dos fatos a
coloca ao lado dos agentes da lei - como a igualar-se a eles na condição de
autoridades sobre as quais não cabem maiores questionamentos.
Além disso, a cobertura jornalística do julgamento serviu com um elemento de
forte distorção contra as pretensões de inocência a que tem direito qualquer
réu. Em um dado momento, por exemplo, a acusação apresenta uma testemunha cujos
depoimentos são aparentemente definitivos em favor da condenação de Avery. Mais
à frente, no entanto, revela-se o caráter completamente inconsistente e viciado
das declarações e a defesa acaba tendo que solicitar a retirada da testemunha do
julgamento e a consequente desconsideração de suas declarações pelos jurados.
Perguntado pelos jornalistas se o recuo teria sido uma vitória do réu, um dos
advogados de defesa responde negativamente. Afinal, diz ele, todo o estrago
feito pelos depoimentos prestados dificilmente seria sanado, em especial por
sua ampla difusão na grande imprensa. As mesmas pessoas que viram nas
declarações da testemunha provas irrefutáveis da culpa de Avery, teriam grandes
dificuldades para entender por que, agora, elas já não seriam válidas, pois não
teriam o mesmo acesso aos motivos que levaram à sua invalidação. E o que vale
para o público em geral, vale para os jurados: de forma alguma estão livres das
pressões da opinião pública.
A forma como Avery é tratado deixa claro que uma vez acusada, a pessoa é considerada
culpada, ainda que isso não venha a ser confirmado por uma sentença. É como se
o sistema judicial não pudesse admitir qualquer possibilidade de falha. O preço
pago por alguns prováveis inocentes seria pequeno diante da necessidade de
continuar condenando os ”verdadeiros culpados”.
O fato é que a presunção de inocência, que deveria proteger todo acusado, é
esmagada por uma suposta infabilidade das decisões da justiça.
Claro que este quadro precisa ser relativizado pela condição social daqueles
que se confrontam com ele. Os Avery são brancos, loiros, de olhos claros, mas
nunca foram bem vistos pela comunidade local, considerados desordeiros e de
hábitos “pouco cristãos”. A família pertence a uma classe média baixa, que exerce
uma atividade de pouco ou nenhum prestígio social: possui um grande
ferro-velho, explorado por seus próprios membros.
Os Avery não tinham dinheiro ou influência para se defender. O erro de que
Steven foi vítima e o levou à prisão foi revertido por uma organização civil
cujos membros utilizavam casos desse tipo para ampliar sua influência político-eleitoral.
Quando foi feita a segunda acusação contra Steven, se afastaram do caso e retiraram
seu nome da relação de pessoas a quem prestaram auxílio.
Os advogados contratados para defender Steven no segundo julgamento estavam
entre os melhores e mais caros do país. Mas foram pagos por meio de um acordo
com a justiça local. No lugar da indenização de U$ 36 milhões que estava pleiteando,
Steven aceitou U$ 400 mil para pagar pelos serviços de seus novos defensores.
Foi a primeira condenação e sua inesperada reversão que deu a Steven os meios financeiros
para se defender com um mínimo de chances no segundo julgamento, assessorado
por advogados capazes de desmontar as teses da acusação. É muito provável que
esta combinação de fatores tenha dado ao caso tanta repercussão na mídia, levando-o
a transformar-se em um seriado de sucesso.
Mas independentemente do desfecho do caso Avery, dezenas, talvez centenas, de
milhares de pessoas continuam a lotar o sistema carcerário estadunidense sendo
inocentes ou estando submetidas a penas desproporcionalmente elevadas em
relação aos crimes que cometeram. São quase todas pretas. A quase totalidade delas,
pobre ou remediada.
Sem Pena
O mesmo cenário pode ser pintado para retratar a situação penal no Brasil,
ainda que com tintas mais fortes. É o que mostra, por exemplo, o documentário “Sem
Pena”, de 2014.
Muito longe de receber a mesma repercussão, a produção de Eugênio Puppo aborda
o sistema carcerário brasileiro, principalmente por meio de sua porta de
entrada. Sempre aberta para os pobres e pretos e dando passagem a estadias
longas que nada devem ao Inferno descrito por Dante em “A Divina Comédia”.
No filme, os depoimentos são dados apenas por vozes, sem focalizar o rosto de
seus donos, a não ser no final, durante os créditos. O primeiro a testemunhar é
um rapaz que foi confundido com o agressor de uma jovem. Preso, é submetido a
um reconhecimento induzido. Colocado entre homens com tipo físico completamente
diferente em relação ao dele, com o rosto marcado por hematomas resultantes de
murros e pancadas recebidas na fase de “interrogatório”, a vítima não teve
dúvidas quanto a identificá-lo como autor das agressões. Uma vez processado, o
rapaz descobre que outras acusações caem sobre ele de modo a “resolver” casos
sem suspeitos e melhorar as estatísticas da polícia.
Em outro caso, uma usuária é condenada por porte de maconha. Cumprida a pena,
ela é novamente procurada pela polícia que a acusa de ser fugitiva da justiça.
O problema é que a vara de execução penal em que estava o processo dela não
informou às outras varas do cumprimento da pena. Mas as coisas se resolveriam
se a acusada concordasse em acertar sua situação informalmente, mediante uma
“pequena recompensa”.
Outra voz ouvida é a de um detento, que faz a seguinte afirmação sobre as
condições prisionais: “coloca um cavalo aqui pra ver o que acontece. Ele fica
louco”. Ele se refere, claro, a dez ou quinze anos de prisão em celas sujas e
superlotadas. Muitas vezes, o detento não tem nem mesmo uma sentença que
justifique sua permanência ali. Esta é a situação de um entre quatro presos no
Brasil.
Não é o caso de um policial condenado por crimes cometidos em serviço. Segundo
ele, um traficante pode escapar de ser preso se pagar, por exemplo, uns 200 mil
reais ao policial destacado para detê-lo. Mas em seu lugar, outra pessoa será
detida, ainda que seja inocente, para que seja mantida a média estatística de “crimes
resolvidos”.
Em todos os casos, libertados depois de cumprida a pena ou por não deverem nada
à lei, os recém-saídos encontram a enorme dificuldade de se integrar novamente
à vida social. Como no caso de Avery, uma vez acusado, condenado. Uma vez
condenado, jamais perdoado.
Por fim, o testemunho de um secretário de segurança deixa tudo muito claro. Um
detento custa em média R$ 1.350,00 para o estado, diz ele. Mas essa média pode
cair, se aumentar a população carcerária. “Quanto mais vazios os presídios,
maior a despesa. Presídio bom é presídio cheio”, conclui, sem deixar muita
margem a dúvidas. Esta conta, certamente, ajuda a explicar o fato de o Brasil registrar
a quarta maior população carcerária do mundo.
Legislação antiterrorista
Mas a situação pode piorar ainda mais.
Rafael Braga circulava pelo centro da cidade coletando material reciclável.
Dormia nas ruas até que completasse a coleta para voltar a sua casa, no
Complexo da Penha. Durante as manifestações de junho de 2013, ele foi preso e condenado
a 4 anos e 8 meses de reclusão pelo crime de “porte de material explosivo”. Na realidade,
ele carregava duas garrafas plásticas de produtos de limpeza, próximo a uma
manifestação realizada em 20 de junho.
Depois de muita luta e mobilização envolvendo amigos, parentes e movimentos
sociais, ele foi autorizado a cumprir a pena em regime aberto, em junho de
2015.
Em janeiro de 2016, no entanto, Rafael voltou a ser preso, acusado de portar
drogas e associar-se ao tráfico. O Instituto de Defensores de Direitos Humanos
acompanha o caso e garante que a acusação não tem qualquer fundamento.
Mas, como no caso de Avery, nos Estados Unidos, Rafael está pagando por
tornar-se não somente um acusado, preto e pobre, mas protagonista de um caso em
que fica clara toda a arbitrariedade do sistema judiciário.
A agravar todo esse quadro, há um projeto-de-lei de iniciativa do governo e em
debate no Congresso que pretende aprovar uma legislação “antiterrorista” no
País. Uma proposta que já vem sendo denunciada por várias organizações
nacionais e internacionais como uma forma de legalizar a criminalização dos
movimentos sociais e inviabilizar manifestações populares na base da repressão
pura e simples. Se o que aconteceu com Rafael viola direitos constitucionais e
liberdades fundamentais, a proposta em debate no Legislativo pretende legalizar
essas violações.
O que aconteceu com Avery e milhões de outros estadunidenses pobres e,
principalmente, pretos, tem muitas semelhanças com o que se passa no Brasil.
Faz parte de um sistema que fabrica os “criminosos” de que precisa para
justificar o investimento em gigantescas máquinas de repressão, voltadas para
controlar o que antigamente costumava ser chamado de “classes perigosas”. Ou
seja, aqueles que não têm lugar no sistema produtivo, a não ser em suas margens,
onde vivem de migalhas.
O jurista argentino Eugenio
Zaffaroni costuma dizer que a sociedade em que vivemos só tem lugar para uns
2/3 viverem com alguma dignidade. O restante não alcançará jamais este patamar
e qualquer movimento em direção à busca de uma vida mais digna deve ser contido
com violência. Zaffaroni aponta na “guerra às drogas” um importante instrumento
nesse sentido. Sob o pretexto de combater o tráfico, milhões são jogados nas
cadeias no mundo todo.
Mas por que a sociedade em geral aceita esta
lógica?
O filósofo italiano Giorgio
Agamben talvez ajude a entender. Segundo ele, uma das características do
tratamento dispensado pelas estruturas contemporâneas de dominação aos
problemas sociais é concentrar-se em seus efeitos e não em suas causas.
Esta regra valeria para todos os domínios, da economia à ecologia, das
políticas externas e militares às medidas policiais.
Desse modo, se sofremos com problemas ambientais a solução não é mudar a matriz
energética do planeta. É usar tecnologias caras, complexas, perigosas e
dominadas por alguns monopólios gigantes.
Se o trânsito nas grandes cidades não anda, nada de investir em transporte
coletivo. Construam-se mais pontes e viadutos, abram-se mais ruas e novas
faixas nas avenidas.
Na saúde pública, medidas de prevenção ficam em segundo plano. Bem à frente,
vêm as caras e lucrativas tecnologias e substâncias para cuidar das doenças.
Para lidar com a crise econômica, mais recursos, que acabam por ser investidos
em aventuras especulativas semelhantes às que causaram a crise de 2008.
E, finalmente, a desigualdade social deve ser assumida como natural. No lugar
de combatê-la, é preciso construir mais prisões, aprovar leis mais severas, dar
liberdade à polícia para agir como bem entender.
O principal motor dessa inversão maluca é a busca por lucro. Objetivo cego que
pode inviabilizar de vez o metabolismo que nossa espécie mal consegue manter
com o planeta e consigo mesma.
É neste contexto que os documentários sobre
Avery e sobre o sistema prisional brasileiro se aproximam. É nesta situação que
a abusiva legislação repressiva adotada nos Estados Unidos após o 11 de
Setembro serve de modelo à “Lei Antiterrorista” em discussão no Brasil. É desse
modo que à fabricação de
bandidos pretende se juntar agora a produção de terroristas. Quase todos saídos
dos setores socialmente mais vulneráveis ou questionadores da ordem dominante.
Nosso desafio é tornar a vulnerabilidade dos primeiros um reforço decisivo à
ação contestadora dos segundos. Algo que só será possível se ficarmos atentos e
prontos para transformar em oportunidades subversivas as inúmeras e enormes
contradições que provoca a imposição de uma ordem ainda mais autoritária.
Referências:
AGAMBEN, Giorgio (2014) - “Por uma Teoria do Poder Destituinte”: https://5dias.wordpress.com/2014/02/11/por-uma-teoria-do-poder-destituinte-de-giorgio-agamben/ -
acesso em 31/01/16.
ZAFFARONI, Raúl Eugenio (2013) - “Cada país tem o número de presos que decide
politicamente ter”: www.brasildefato.com.br/node/14487 -
acesso em 31/01/16.
8 de fev. de 2016
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