23 de out. de 2010

Tropa 2: ainda conservador

O novo filme de José Padilha continua conservador. Agora, os políticos corruptos são os grandes vilões, mas aqueles que os corrompem ficam na sombra. As milícias da grande mídia agradecem.

As duas produções de Tropa de Elite são filmes de ação que pretendem fazer denúncia. Mas, não vão à raiz dos problemas que retratam de forma tão explícita. Ao fazer isso, acabam por justificar a forma como a sociedade brasileira está organizada. Com sua injustiça social, violência estatal contra os mais pobres, democracia de fachada e monopólios da grande mídia.

Em Tropa de Elite 2, os vilões são mais numerosos. A corrupção policial e os traficantes de drogas continuam presentes. Mas, a ação das milícias ganhou grande destaque. No filme anterior, boa parte da culpa da violência urbana cabia aos que compram drogas. Estranhamente, dessa vez, a mesma culpa não foi atribuída aos consumidores de TV paga. Um dos serviços vendidos ilegalmente por milicianos.

Tropa 2 chega a uma conclusão que já deveria ser óbvia em sua primeira edição. O único serviço público realmente presente e em funcionamento nas favelas é a polícia. Era questão de tempo para que policiais substituíssem o tráfico e se transformassem em tropa de ocupação com vontade própria. Mercenários dispostos a negociar o acesso às áreas ocupadas com os poderes constituídos. Entre estes, é claro, o poder estatal representado pelos políticos de plantão.

A cena em que Nascimento surra um secretário de estado vem arrancando aplausos nos cinemas. Simboliza a justa revolta popular contra os políticos em geral. O problema é que políticos profissionais não vivem apenas de seus altos salários. Nem se elegeram usando suas economias pessoais. Foram bancados por empresários. Em troca, a grande maioria deles trabalha como facilitadores de negócios para seus financiadores. E muitas vezes, o fazem dentro da lei.

Políticos envolvidos com criminosos comuns são poucos, mas fazem barulho suficiente para esconder ainda mais a já silenciosa ação de seus colegas. Membros das bancadas a serviço de ruralistas, proprietários de meios de comunicação, banqueiros, empreiteiros, mercenários religiosos e empresários de vários setores monopolizados da economia.

O personagem Fraga é uma justa homenagem ao deputado Marcelo Freixo (PSOL). Mas, na vida real, Freixo não apenas é um indivíduo corajoso e com princípios. É uma liderança apoiada em um trabalho de base desenvolvido nas comunidades pobres. Lugares massacrados pela ação conjunta do tráfico, da milícia e da polícia, incluindo o Bope. Ainda assim, Fraga não é o mocinho. Continua a ser Nascimento, com seus métodos violentos.

Mas, o filme de Padilha é conservador principalmente porque mostra a mídia empresarial como defensora da moralidade pública. No filme, a casa da milícia começou a cair porque uma jornalista foi assassinada. Na vida real algo muito parecido aconteceu. Uma equipe do jornal “O Dia” foi seqüestrada e submetida à tortura por milicianos. Até então, as autoridades e a própria imprensa fechavam o olhos para a ação violenta e covarde das milícias. Eram consideradas “formas comunitárias de auto-defesa”.

Na verdade, a responsabilidade da grande imprensa é enorme na montagem do cenário que possibilitou o surgimento das milícias. Cenário que não se limita ao Rio de Janeiro no início do século 21. Inclui um país inteiro vivendo séculos de injustiça social, racismo, truculência policial, criminalização da pobreza, autoritarismo, informação distorcida, preconceitos e corrupção.

Com Tropa de Elite, esquecemos de tudo isso. Vamos ao cinema e nos sentimos vingados pelos murros de Nascimento. Contemplados por denúncias encenadas em ritmo de filme americano. No lugar do debate organizado pela população em associações, partidos, sindicatos, sobram conversas de boteco sobre uma produção da Globo Filmes. No máximo, colóquios de classe média em mega-livrarias.

O final do filme promete uma continuação que chegaria mais fundo em suas denúncias. Difícil acreditar que a mira de Nascimento volte-se para o grande capital. Muitos de seus representantes financiam a vitoriosa produção. Querendo ou não seus realizadores, Tropa 2 trabalha para milícia midiática que justifica um dos sistemas de dominação mais violentos do mundo. E um dos mais inteligentes, também.

Leia também: As armas das tropas da elite não são só as de fogo

10 comentários:

Marcelo Cozzolino disse...

Não concordo com a visão de que o filme seja conservador. Não acho que a responsabilidade da mídia em fomentar a violência não esteja colocada. Está colocada no programa policial sensacionalista que pode ser entendido como uma amostragem do papel da mídia. É, de fato o filme pouco aborda a culpa do grande empresariado na situação. Mas daí a considerar o filme conservador tem uma longa distância. Também não está suficientemente destrinchado o que realmente está por trás do tráfico de drogas, mas já mostra esse como mal menor, e também não mais como a causa, na situação da violência do Rio de Janeiro. Não dá para esperar que em um só filme, ou dois, se destrinche tudo que está por trás de nossa deformada sociedade. Isso ainda mais sem fazer o filme chato, para não espantar o público de pouca visão política, que é o alvo mais importante.
De qualquer forma penso que esses filmes, principalmente o segundo, são um grande avanço para fazer as pessoas refletirem sobre a causa de fundo dos problemas. O primeiro tinha o pecado de, quando assistido por olhos conservadores de pouca visão, permitirem uma leitura de idolatria do BOPE, quando na verdade queria mostrar a violência desenfreada dele. O segundo evoluiu sendo mais claro, não permitindo uma interpretação diferente.

Unknown disse...

Marcelo, acho que o conservadorismo está exatamente no fato de que um filme produzido por um monopólio de mídia paute um debate como este. Com tal patrocínio, não dá pra esperar que um, dois ou 300 filmes façam isso. A mídia funciona como um partido da classe dominante com diversas alas ou correntes. Algumas delas apostam no sensacionalismo. Não é o caso da Globo, que pratica suas distorções de maneira mais sutil e inteligente. Entre estas formas, está a produção de filmes como o do Padilha. Valeu pelo comentário.
Abraço!

Marcelo Cozzolino disse...

Assim você está assumindo que por ter pego financiamento de fontes comprometidas Padilha necessáriamente teria um trabalho comprometido.Está avaliando a obra pela origem de seu financiamento e não pelo seu conteúdo.
Se a mesma obra tivesse sido financiada exclusivamente por ONG de direitos humanos sua crítica seria outra. Isso é preconteito...
A regra é o que você disse, mas há espaço para exceções. Exemplo disso é o filme "Viva Zapata!", feito por Hollywood em plena guerra fria, extremamente politizado (com teor anarquista).
Sobre o fato do narrador ser o coronel Nascimento, digo que isso foi fundamental no intúito do filme. O público alvo principal do filme é quem temm pensamento de extrema direita, acha que a violência só se resolve com mais violência. No início do filme o narrador se coloca como pensa alguém de extrema direita, inclusive debochando do defensor dos direitos humanos por defender criminosos. Nesse momento o narrador está ganhando identidade com o público que pensa assim.
Ao longo da história o narrador vê que pensava e agia errado, que era instrumento na mão de poderosos. Assim leva esse mesmo público a re-avaliar seus pensamentos. Se o narrador fosse o Fraga não teria o mesmo alcance.

Unknown disse...

Tudo bem, Marcelo, mas ainda acho que quem paga os músicos, escolhe a música. Podemos até gostar da música, mas não podemos perder isso de vista. Uma obra financiada por ONGs de direitos humanos dificilmente seria um blockbuster. Se fosse, o financiamento continuaria a ser altamente suspeito. E estou longe de achar que ONGs estejam livres de minhas suspeitas ou “preconceitos”.
Não me lembro direito de "Viva Zapata!", mas você mesmo diz que foi feito em plena guerra fria. A situação é outra. De qualquer maneira, é um filme de Hollywood. Por isso mesmo, deve ser avaliado criticamente como qualquer produto da indústria do cinema.
Será que o público alvo principal do filme é quem tem pensamento de extrema direita? Não acho. Se for, as bilheterias revelariam que estamos num país com público desse tipo. Não acho que haja sociedade com maioria de pessoas de extrema direita ou de extrema esquerda. A hegemonia burguesa vive da mediocridade. Não de extremos. Vive do meio termo. Somente em situações muito especiais, como na Alemanha e na Itália dos anos 20 e 30, pode se dizer que a extrema direita dominou.
O que você chama de identidade do narrador como personagem de direita entendo que seja uma caricatura que deve ser desmontada para ganhar o senso comum. E o senso comum é conservador. Não é de direita. Quem é de direita é reacionário. Quer a volta de um estado extremamente autoritário e de extrema exploração. Um filme da Globo não defende tal coisa. Nem seus produtores acreditam nisso.
“Se o narrador fosse o Fraga não teria o mesmo alcance”. Verdade. Numa sociedade em que o alcance tem de ser de massa. Mas, penso numa sociedade invadida por milhares de iniciativas de base. Não defendo Fragas de esquerda contra Nascimentos de direita. Isso seria entrar no jogo da grande mídia.
Marcelo, se todos os meus poucos leitores entrassem no debate como você entra, acreditaria na internete como ferramenta de mudanças. Pena que só alguns têm a coragem de fazê-lo como você. Valeu, de novo, compa!

Unknown disse...
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Marcelo Cozzolino disse...

Resumindo:

-Se a classe dominate puxa o debate de maneira errada, está manobrando.
-Se puxa o debate correto, está errada pois ela é a classe dominate e teria que puxar o debate de maneira errada.

Se correr o bicho pega...

Quando a Globo coloca debates populares na pauta, como a minisséria a "Cidade dos homens", mostrando o ponto de vista dos pobres, ela não está mudando de linha por que quer. Está mudando por que se não atacar ela o tema, perde o bonde da história e outros meios de comunicação crescem. Pode-se considerar que é uma conquista dos movimentos sociais, e das fontes alternativas de comunicação, a Globo ter que ceder e botar ela também a discussão.

A mídia não começou a tratar das milícias depois do sequestro dos repórteres do "O Dia". Tanto que os repórteres de "O Dia" estavam lá, fazendo uma imensa reportagem, antes de ter havido o sequestro (deles mesmo!). É claro que depois disso houve uma união da mídia, inclusive da Globo, contra as milícias. A reportagem de capa do "Extra" "Álvaro Lins e os quarenta deputados", quando rejeitarram o seu afastamento da Câmara, foi fundamental no processo e construída junto com o mandato do Freixo. As milícias estavam contestando o poder onipotente e onipresente da mídia e isso a irritou...

Outro trabalho de Padilha, ônibus 174, toma a visão do sequestrador, mostrando o que passou na vida. Eu não vi esse filme, mas o Rodrigo Pimentel, o principal inspirador do Capitão Nascimento, na época ficou irritado com a visão do filme (eu não assisti o filme). Por isso não acho que Padilha seja "de direita" ou neutro.
Coloco que o principal público alvo ser o de extrema direita por estar fazendo a leitura de que Padilha não visa apenas o lucro, mas fazer consciência. E o teor de extrema direita do narrador atinge mais fortemente esse público. Acho que ele avalia, e eu concordo com ele, que quem tem visão de extrema direita por ideologia, e não por oportunismo, não é um caso perdido, e, na questão da violência, é onde se pode ter mais lucro em se trabalhar. Aliás, Freixo só está vivo devido a ação da DRACO, da polícia civil. O resultado da CPI das milícias foi fruto do mandato do Freixo, e de trabalho militante dos movimentos sociais, mas também foi fruto de pessoas no governo que trabalham sério, principalmente no judiciário. Nem todos são coniventes com a máquina corrupta.

Recomendo que assista "Viva Zapata!". É extremamente politizado e agradável de assistitir, servindo até como filme de aventura. Deve ter passado no crivo da censura interna americana devido a considerarem o anarquismo como também uma crítica ao marxismo. Mas a crítica que o filme coloca serve tanto para o Comunismo soviético quanto para a "democracia" burguesa. O único momento que me lembro que é visível a propaganda amenicana é em uma curta falação em que elogiam a democracia do país do norte, ou algo assim. Eu arriscaria dizer que o autor/diretor do filme era anarquista e botou essa frase para a obra passar no crivo da censura. Parecido como faziam os compositores aqui no tempo da ditadura, disfarçando as mensagens.

Unknown disse...

Desculpe, Marcelo, mas é isso mesmo no caso da grande mídia. Se ficar o bicho come, se correr o bicho pega. A grande mídia é um instrumento de dominação de classe. Isso não impede que sofra pressões da realidade para moderar sua ação, como você levantou com razão. Mas, minha preocupação é que, primeiro, isso não tire de pauta a necessidade urgente de acabar com os monopólios da mídia e, segundo, que continuemoas a subestimar a necessidade de construir meios de comunicação e formação dos explorados e oprimidos a partir de baixo.
Não condeno a iniciativa do Freixo de ter participado do projeto. Mas, acho que temos que considerar isso um elemento muito pequeno perto do estrago que faz a grande imprensa e o cinemão todo o tempo. Abraço.

João Mauro disse...

Considero que não há muito a se esperar de um filme que tem estética hollywood/stalloniana, feito sob a lógica da supremacia da técnica sobre o conteúdo. É preciso também compreender que quem narra o filme é o Nascimento, um produto do meio.
Apesar disso, a continuação do Padilha é superior ao primeiro filme, sob o aspecto da técnica e também olhando-se o conteúdo.
É um avanço o Nascimento decidir aliar-se ao Fraga(belíssima homenagem ao Marcelo Freixo)e investir sobre as máfias que são compostas de políticos, policiais, sob a proteção da grande mídia(basta lembrar do personagem do André Mattos, a caricatura de Wagner Montes. E da cena em que o Fraga discute com o editor do jornal sobre a morte dos jornalistas. Só depois a imprensa "cumpre o seu papel"). Claro que são deixados de fora os capitalistas. Afinal, quem financia o cinema-lazer-espetáculo?

Edson Neves disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Edson Neves disse...

É no fundo todo mundo queria ser um capitão nascimento, e dar uns tirinhos nuns corruptos por aí. Mas não adianta pintar o burro de branco para parecer alazão, isso só dá no Shrek III.