"Ensaio sobre a cegueira" e "Nevoeiro" falam sobre a cegueira que ataca as pessoas na ausência de regras sociais. O primeiro é otimista, o segundo, não. Mas, sob a lógica do cinema para multidões, ambos acabam fazendo o jogo pessimista que interessa a quem manda.
São dois filmes diferentes. Mas também parecidos. "Ensaio sobre a cegueira", de Fernando Meirelles, adapta a obra de José Saramago. É filme para o Oscar e agrada aos mais exigentes amantes do cinema. O outro é "Nevoeiro", de Frank Darabont, baseado em livro de Stephen King. É quase um filme B, não deve receber indicação para o Oscar e ficará longe dos cinemas de arte.
Ambos mostram a convivência humana em situações-limite. No filme baseado em Saramago, uma epidemia de cegueira ataca a sociedade. A confusão se instala. Não há mais regras, leis, moral, governo. Os primeiros atingidos pela epidemia são isolados em uma espécie de asilo. Lá são deixados por sua conta e risco. O caos se instala. Preconceitos e neuroses explodem. Alguns usam de força física para se beneficiar. Comportam-se como criminosos. As mulheres chegam a ser usadas como moeda em troca de comida.
O mesmo pode ser dito da produção de Darabont. No filme, um denso nevoeiro se espalha por uma pequena cidade americana. Em meio à névoa estão criaturas terríveis, que devoram pessoas em poucos segundos. Um grupo fica preso em supermercado. Porém, há tanto perigo dentro como fora do lugar. As pessoas se desentendem. Suas vaidades e discordâncias vêm à tona. Uma religiosa fanática diz que se trata do apocalipse. Exige que alguns dentre eles sejam sacrificados, pois fazem parte dos pecadores que provocaram a maldição.
Claro que os dois filmes trazem "mensagens" diferentes. Saramago diz que seu livro queria mostrar que o ser humano é um animal doente. Mas sua obra e seus posicionamentos políticos mostram que ele acredita numa cura, ainda que não seja garantida. Já o terror de King parece dizer que a doença é incurável. O modo como os dois filmes terminam deixa transparecer essa diferença de pontos de vista. O final do filme de Meirelles é otimista, o desfecho do outro, não.
No entanto, essa interpretação diferenciada pode não ser consenso. Ao contrário, a leitura pessimista do filme de Meirelles pode tornar-se majoritária.
Quem conhece os livros de King, sabe que ele não tem preocupações de caráter político e social. Por isso mesmo, quem assistir a "Nevoeiro" tenderá a interpretá-lo de maneira mais fiel em relação à obra do escritor. Tudo indica que filme e livro apontam para as mesmas conclusões.
No caso da obra de Meirelles, a adaptação cinematográfica também é coerente com o livro. O próprio autor aprovou. Mas, para que tal interpretação se confirme seria preciso que os espectadores tivessem lido o romance. A obra de Saramago traz inúmeras reflexões, ironias, pistas sobre o que ele pensa do mundo. Seu alvo é a forma de vida social atual, sob o império do capital e do poder burguês, mesmo que não o diga explicitamente.
O problema é que a grande maioria do público do filme de Meirelles não teve e não terá contato com o livro. O próprio ritmo cinematográfico pode fazer as pessoas pensarem que o ser humano não tem jeito, mesmo. É cruel e egoísta por natureza. Basta uma situação anormal para mostrar isso.
Infelizmente, esse tipo de conclusão faz o jogo daqueles que estão nas posições de comando. Afinal, se os seres humanos deixados à sua própria sorte só sabem guerrear entre si como bestas-feras, melhor manter tudo como está. Com sua ordem, regras e leis injustas. E quanto mais rígidas, melhor.
O fato é que a doença dos seres humanos é o modo como ele se organiza socialmente. Hoje, sob a concorrência selvagem do capitalismo, o que os dois filmes mostram é o mais provável. Treinados para nos tratar como competidores e inimigos em potencial, as situações extremas realmente nos empurram para a crueldade, o egoísmo, a exploração, a violência sobre os mais fracos.
Só que, na verdade, situações extremas já são parte de nosso dia-a-dia. Se quisermos superar a cegueira que reina no mundo, precisaremos quebrar as regras atuais. Negar a lógica egoísta e de competição selvagem do capitalismo. Os valores que realmente importam não nos são ensinados pela ordem que hoje impera. Ao contrário, eles foram sendo fortalecidos na luta contra o capitalismo. São a solidariedade, a justiça, o respeito pela vida e a obrigação de agir contra as injustiças.
Em geral, filmes como "Nevoeiro" querem nos fazer crer que se o mundo é ruim como está, ficaria pior se deixasse de ser como é. Este não seria o caso do filme de Meirelles, se toda a lógica do cinema para grandes públicos não o empurrasse nessa direção. O diretor está de parabéns pela adaptação, mas a mensagem presente no livro não deve sobreviver a sua exibição para milhões de pessoas nas telas. Deve ser por isso que está lá.
Sérgio Domingues
7 de nov. de 2008
3 de out. de 2008
“Linha de passe” fica longe de quem interessa
O filme pode ajudar na denúncia da triste realidade da vida na periferia das grandes cidades. Mas é uma obra que não vai chegar à maioria dos pobres urbanos. Superar esta distância não é uma tarefa do cinema comercial. É dos próprios explorados e oprimidos.
O título da obra de Walter Salles e Daniela Thomas refere-se à brincadeira em que vários jogadores controlam uma bola com os pés entre si sem deixá-la cair no chão. Simboliza bem a situação que o filme mostra. São quatro jovens da periferia paulistana, cuja mãe é solteira, trabalha como empregada doméstica e está grávida do quinto filho. Em meio aos problemas típicos da juventude pobre, os quatro tentam manter a bola no alto. Ou seja, ficar longe do crime, das drogas, da miséria e da apatia.
As dificuldades para arranjar emprego, melhorar o salário ou apenas consumir são enormes. Um deles é motoboy e fazer isso em São Paulo significa ganhar a vida com uma das ocupações mais violentas, cansativas e mal pagas do mundo. O outro é aspirante a jogador de futebol. Tem talento, mas não consegue entrar nos grandes clubes porque não tem dinheiro para pagar o “jabá”. O terceiro é evangélico e trabalha num posto de gasolina, agüentando todo tipo de humilhação por parte do patrão. O caçula, ainda criança, vive atormentado por não saber quem é seu pai.
“Linha de passe” é muito bem feito. Com ótimo elenco e direção. Mas, se o filme tem uma grande qualidade é a denúncia da realidade cruel da vida na periferia das grandes cidades brasileiras. Principalmente, para jovens e mulheres. Para quem cobra um cinema mais ligado à realidade e à necessidade de sua transformação, é um bom filme. Poderia até ser útil na luta contra a hegemonia dominante.
Mas, não é bem assim. Em primeiro lugar, ele deve ficar restrito a um público pequeno. Mais da metade da população brasileira nunca foi ao cinema. E a maioria dos que vão ao cinema, gastam seus trocados em filmões americanos e assemelhados. O público de estréia da obra de Salles e Thomas foi de 33 mil espectadores. Na mesma época, a estréia do americano “Hellboy” atraiu quase 150 mil. Por outro lado, 98% das casas brasileiras possuem pelo menos um aparelho de TV. Ou seja, é possível dizer que o cinema não atinge as multidões brasileiras.
Em segundo lugar, está a própria reação do público que seria o mais interessado. Estamos falando dos pobres das periferias urbanas. A Folha de São Paulo e a Unicef organizaram uma sessão do filme para 250 pessoas moradores da periferia pobre de São Paulo. Segundo o jornal, as reações não foram muito positivas. Os convidados disseram não ter gostado do clima triste. Reclamaram da imagem sempre negativa da periferia. Argumentaram que comunidades pobres têm muitos momentos de alegria, de solidariedade e é rica em iniciativas culturais e festivas. E nada disso apareceu em “Linha de passe”.
É impossível saber se essas opiniões correspondem ao que pensaria a maioria da população pobre de uma cidade, caso assistisse ao filme. Mas, é muito provável que a produção realmente não agradasse esse tipo de público. É bem possível que as pessoas que não gostaram de “Linha de Passe” na sessão especial estejam acostumadas a assistir filmes, seriados e novelas com o padrão Globo “de realidade”.
Estamos falando de obras de ficção que podem até apresentar algum tipo de problema social. Denunciar os preconceitos, a violência e outras questões que fazem parte da realidade da maioria. Mas, tais iniciativas acabam neutralizadas pelos esquemas do final feliz. Pela sensação de que a vida é assim mesmo. Pela idéia de que de um modo ou de outro, tudo vai se encaixar. Enfim, de que basta sermos perseverantes, pacíficos e, principalmente, respeitadores da ordem e dos poderes constituídos para tudo dar certo.
É possível afirmar que a grande maioria dos espectadores de “Linha de passe” é formada por pessoas com escolaridade alta, bom nível de informação e cultura e senso crítico em relação à realidade social. Trocando em miúdos, gente que já está ganha para uma certa sensibilidade em relação aos problemas da realidade social. A questão é que este tipo de público ou é muito pequeno para tentar mudar essa realidade, ou nem tem interesse em fazê-lo.
Claro que “Linha de passe” vai chegar à TV, um dia. Mas, será mostrado em meio a novelas, séries, filmes e outros programas que incentivam o conformismo. Além disso, deverá ser exibido tarde da noite, para um público parecido ao que já o teria visto no cinema.
Em outras palavras, “Linha de passe” não é um elemento típico da grande mídia. Não atinge multidões e não defende idéias que procuram levar à comodidade social. Mas também não tem os elementos necessários para ser utilizado na luta contra a hegemonia dominante por si só.
Como ele, há centenas de filmes, talvez. Mas, são exibidos em pequenas salas, freqüentadas por gente de classe média das metrópoles. Nesse circuito ficam inofensivos e servem mais para aliviar a consciência dos mais preocupados socialmente.
O fato é que à medida que os grandes monopólios da mídia invadem a vida cotidiana, mais isola as pessoas em suas salas e quartos. Mais afasta de contatos comunitários e associativos. De tal modo que até a TV pode se dar ao luxo de falar de problemas sociais em alguns de seus programas. Seus controladores sabem que a maior parte dos telespectadores permanecerá apática. A grande mídia não determina apenas aquilo que se vê, mas também o modo como se vê.
Apesar disso tudo, não se trata de fazermos filmes no estilo da Globo ou de Hollywood para chegar às multidões. O ideal mesmo é que os próprios setores explorados e abandonados das grandes cidades produzam seus próprios bens culturais. Não adianta cobrar dos filmes comerciais que mostrem a resistência, a solidariedade e a riqueza cultural das periferias. Eles não são feitos para isso. Quem deve começar a fazer cinema e outros produtos audiovisuais são os setores organizados das próprias comunidades pobres.
Infelizmente, não adianta esperar financiamentos governamentais para esse tipo de atividade. Isso seria entrar num terreno que já pertence aos grandes meios de comunicação e de produção cultural. E é mais fácil fazer uma revolução social no Brasil do que desmontar esses monopólios. Uma produção desse tipo só poderá surgir da iniciativa das organizações populares. De preferência, unidas em redes.
Por outro lado, a tecnologia atual barateou a produção áudio-visual. Continua difícil, mas já não é impossível produzir material que seja atraente, inteligente e contra-hegemônico. Que combine denúncia, diversão, poesia, beleza e qualidade técnica. E o uso da internete permite alcançar públicos maiores.
As organizações e entidades populares de esquerda devem se manter na luta pela democratização dos meios de comunicação. Devem exigir políticas públicas de apoio à cultura popular. Mas, faz parte dessa luta a produção de seus próprios bens e armas culturais. Seu próprio arsenal de comunicação, educação e formação. A partir das lutas e da vida dos explorados. E isso inclui aproveitar algumas lições do trabalho de bons diretores, como Walter Salles, Daniela Thomaz e outros profissionais do cinema comercial.
Sérgio Domingues
O título da obra de Walter Salles e Daniela Thomas refere-se à brincadeira em que vários jogadores controlam uma bola com os pés entre si sem deixá-la cair no chão. Simboliza bem a situação que o filme mostra. São quatro jovens da periferia paulistana, cuja mãe é solteira, trabalha como empregada doméstica e está grávida do quinto filho. Em meio aos problemas típicos da juventude pobre, os quatro tentam manter a bola no alto. Ou seja, ficar longe do crime, das drogas, da miséria e da apatia.
As dificuldades para arranjar emprego, melhorar o salário ou apenas consumir são enormes. Um deles é motoboy e fazer isso em São Paulo significa ganhar a vida com uma das ocupações mais violentas, cansativas e mal pagas do mundo. O outro é aspirante a jogador de futebol. Tem talento, mas não consegue entrar nos grandes clubes porque não tem dinheiro para pagar o “jabá”. O terceiro é evangélico e trabalha num posto de gasolina, agüentando todo tipo de humilhação por parte do patrão. O caçula, ainda criança, vive atormentado por não saber quem é seu pai.
“Linha de passe” é muito bem feito. Com ótimo elenco e direção. Mas, se o filme tem uma grande qualidade é a denúncia da realidade cruel da vida na periferia das grandes cidades brasileiras. Principalmente, para jovens e mulheres. Para quem cobra um cinema mais ligado à realidade e à necessidade de sua transformação, é um bom filme. Poderia até ser útil na luta contra a hegemonia dominante.
Mas, não é bem assim. Em primeiro lugar, ele deve ficar restrito a um público pequeno. Mais da metade da população brasileira nunca foi ao cinema. E a maioria dos que vão ao cinema, gastam seus trocados em filmões americanos e assemelhados. O público de estréia da obra de Salles e Thomas foi de 33 mil espectadores. Na mesma época, a estréia do americano “Hellboy” atraiu quase 150 mil. Por outro lado, 98% das casas brasileiras possuem pelo menos um aparelho de TV. Ou seja, é possível dizer que o cinema não atinge as multidões brasileiras.
Em segundo lugar, está a própria reação do público que seria o mais interessado. Estamos falando dos pobres das periferias urbanas. A Folha de São Paulo e a Unicef organizaram uma sessão do filme para 250 pessoas moradores da periferia pobre de São Paulo. Segundo o jornal, as reações não foram muito positivas. Os convidados disseram não ter gostado do clima triste. Reclamaram da imagem sempre negativa da periferia. Argumentaram que comunidades pobres têm muitos momentos de alegria, de solidariedade e é rica em iniciativas culturais e festivas. E nada disso apareceu em “Linha de passe”.
É impossível saber se essas opiniões correspondem ao que pensaria a maioria da população pobre de uma cidade, caso assistisse ao filme. Mas, é muito provável que a produção realmente não agradasse esse tipo de público. É bem possível que as pessoas que não gostaram de “Linha de Passe” na sessão especial estejam acostumadas a assistir filmes, seriados e novelas com o padrão Globo “de realidade”.
Estamos falando de obras de ficção que podem até apresentar algum tipo de problema social. Denunciar os preconceitos, a violência e outras questões que fazem parte da realidade da maioria. Mas, tais iniciativas acabam neutralizadas pelos esquemas do final feliz. Pela sensação de que a vida é assim mesmo. Pela idéia de que de um modo ou de outro, tudo vai se encaixar. Enfim, de que basta sermos perseverantes, pacíficos e, principalmente, respeitadores da ordem e dos poderes constituídos para tudo dar certo.
É possível afirmar que a grande maioria dos espectadores de “Linha de passe” é formada por pessoas com escolaridade alta, bom nível de informação e cultura e senso crítico em relação à realidade social. Trocando em miúdos, gente que já está ganha para uma certa sensibilidade em relação aos problemas da realidade social. A questão é que este tipo de público ou é muito pequeno para tentar mudar essa realidade, ou nem tem interesse em fazê-lo.
Claro que “Linha de passe” vai chegar à TV, um dia. Mas, será mostrado em meio a novelas, séries, filmes e outros programas que incentivam o conformismo. Além disso, deverá ser exibido tarde da noite, para um público parecido ao que já o teria visto no cinema.
Em outras palavras, “Linha de passe” não é um elemento típico da grande mídia. Não atinge multidões e não defende idéias que procuram levar à comodidade social. Mas também não tem os elementos necessários para ser utilizado na luta contra a hegemonia dominante por si só.
Como ele, há centenas de filmes, talvez. Mas, são exibidos em pequenas salas, freqüentadas por gente de classe média das metrópoles. Nesse circuito ficam inofensivos e servem mais para aliviar a consciência dos mais preocupados socialmente.
O fato é que à medida que os grandes monopólios da mídia invadem a vida cotidiana, mais isola as pessoas em suas salas e quartos. Mais afasta de contatos comunitários e associativos. De tal modo que até a TV pode se dar ao luxo de falar de problemas sociais em alguns de seus programas. Seus controladores sabem que a maior parte dos telespectadores permanecerá apática. A grande mídia não determina apenas aquilo que se vê, mas também o modo como se vê.
Apesar disso tudo, não se trata de fazermos filmes no estilo da Globo ou de Hollywood para chegar às multidões. O ideal mesmo é que os próprios setores explorados e abandonados das grandes cidades produzam seus próprios bens culturais. Não adianta cobrar dos filmes comerciais que mostrem a resistência, a solidariedade e a riqueza cultural das periferias. Eles não são feitos para isso. Quem deve começar a fazer cinema e outros produtos audiovisuais são os setores organizados das próprias comunidades pobres.
Infelizmente, não adianta esperar financiamentos governamentais para esse tipo de atividade. Isso seria entrar num terreno que já pertence aos grandes meios de comunicação e de produção cultural. E é mais fácil fazer uma revolução social no Brasil do que desmontar esses monopólios. Uma produção desse tipo só poderá surgir da iniciativa das organizações populares. De preferência, unidas em redes.
Por outro lado, a tecnologia atual barateou a produção áudio-visual. Continua difícil, mas já não é impossível produzir material que seja atraente, inteligente e contra-hegemônico. Que combine denúncia, diversão, poesia, beleza e qualidade técnica. E o uso da internete permite alcançar públicos maiores.
As organizações e entidades populares de esquerda devem se manter na luta pela democratização dos meios de comunicação. Devem exigir políticas públicas de apoio à cultura popular. Mas, faz parte dessa luta a produção de seus próprios bens e armas culturais. Seu próprio arsenal de comunicação, educação e formação. A partir das lutas e da vida dos explorados. E isso inclui aproveitar algumas lições do trabalho de bons diretores, como Walter Salles, Daniela Thomaz e outros profissionais do cinema comercial.
Sérgio Domingues
18 de ago. de 2008
Nem Batman, nem Coringa
"Batman, o cavaleiro das trevas" mostra que o Homem-Morcego e o Coringa sofrem da mesma doença. São criaturas violentas que se relacionam com a violência das grandes cidades. Mas, na vida real, tanto mocinhos como bandidos acabam servindo aos interesses dos poderosos.
Desde sua criação, Batman teve várias fases. Bob Kane e Bill Finger criaram o personagem em 1939. Eram tempos de guerra, crise econômica e desespero social. Em Gotham City, a criminalidade estava à solta e a corrupção era generalizada. O Homem-Morcego era violento e cruel. Quase um marginal.
Mais tarde, o clima de otimismo do pós-Guerra parece ter deixado o super-herói menos implacável. Surgiu Robin, um parceiro mais jovem que dava um toque paternal ao personagem. Nos alegres anos 60, Batman virou comédia de TV. Muitas cores no lugar das sombras. Batman virou o cidadão que respeitava o sinal vermelho até quando perseguia bandidos.
Nos final dos anos 80, imperavam as sombras do neoliberalismo vitorioso. Frank Miller lança a HQ "O cavaleiro das trevas". Resgata a origem escura de Batman. O cinema tentou aproveitar o sucesso. Tim Burton fez a primeira adaptação. Vieram mais três seqüências. O problema é que em todas elas ainda havia uma mistura mal resolvida entre a versão do Batman dos anos 30 e a colorida, dos anos 60.
Só em 2005, "Batman Begins" acerta no ponto. O diretor Chris Nolan baseou seu filme em "Batman: Ano Um" (1988), outra obra-prima de Frank Miller, com desenhos de David Mazzuchelli. Dessa vez, a adaptação foi fiel ao jeito noturno do Homem-Morcego. Talvez, porque já vivíamos a era Bush, com sua violência e intolerância.
Em 2008, Nolan repete a dose com "Batman, o cavaleiro das trevas". O filme tem vida própria, mas inspira-se em "A Piada Mortal" (1988), escrita por Alan Moore e desenhada por Dave Gibbons. A obra procura mostrar que não há grandes diferenças entre o Coringa e o homem fantasiado de morcego. Ambos são doentios.
É este o clima do filme de Nolan. Parece que há algo de muito errado em uma sociedade que precisa dos serviços de um vingador fantasiado. Uma prova disso é o surgimento de imitadores de Batman, que tentam ajudá-lo no combate ao crime, mas só tornam as coisas mais complicadas.
Um diálogo entre Bruce Wayne (Christian Bale) e o promotor público, Harvey Dent (Aaron Eckhart), é revelador. Wayne questiona as ações de Batman. Ao invés de um vingador vestido de negro, ele gostaria de ver em ação um cavaleiro branco da Justiça. E este seria o próprio Dent, conhecido por ser incorruptível e funcionário exemplar. Mas, o promotor defende o Homem-Morcego. Diz que situações de emergência pedem medidas de emergência.
Já o Coringa, interpretado com talento por Heath Ledger, nega que seja um criminoso comum. Ele não está atrás de dinheiro. Só quer se divertir com suas bombas. Não está na vida criminosa porque precisa, nem porque quer. Ele parece ter passado por um trauma que o prendeu naquele papel. "Sou como aqueles cachorros que correm atrás de um carro. Se ele parar, não sei o que fazer", diz o vilão.
Ora, Wayne também passou por um trauma. Quando criança, viu seus pais serem mortos por um ladrão. Daí, resolveu virar um combatente do crime. Uma escolha aparentemente mais saudável do que a de Coringa. No entanto, está sempre a um passo de se tornar violento e arbitrário no mesmo grau. Como Coringa, Wayne também está preso em seu papel.
Em Gotham City, tanto Batman quanto Harvey Dent querem derrotar o crime. Mas, se as leis não forem suficientes para isso, não vacilam em tentar fazê-lo à margem delas. Na vida real, as grandes cidades também têm seus Coringas. São os traficantes de drogas ou bandos organizados, como o PCC. De outro lado, uma polícia violenta, que muitas vezes age ilegalmente em defesa da lei. Por fim, há os grupos de extermínio. As famosas milícias. Grupos violentos que dizem proteger a população das favelas, enquanto arrancam dinheiro dela. No Rio de Janeiro, um deles adotou o nome de "Liga da Justiça". Uma referência a um grupo de super-heróis integrado por Batman e Robin.
No final do filme, o comissário Gordon (Gary Oldman) diz que Batman não é bandido, nem mocinho: “é apenas o Cavaleiro das Trevas”. A escuridão da vida social justificaria os métodos ilegais e violentos do mascarado. No cinema, isso é promessa de mais diversão. Na vida real, é sinal de perigo.
Milícias, crime organizado, polícia violenta, tudo isso é parte da mesma lógica de dominação. A criminalidade toma conta. Mas o combate a ela é pretexto para atingir vítimas bem definidas: pobres, negros, lutadores sociais e cidadãos sem direitos.
Não estamos em Gotham City. Entre Batman, Dent e Coringa, não ficamos com nenhum. Nossas alternativas somente surgirão da consciência de que a violência social é resultado de um conflito de classes. E que se houver alguma saída, ela virá da luta dos de baixo contra os de cima.
Sérgio Domingues
Desde sua criação, Batman teve várias fases. Bob Kane e Bill Finger criaram o personagem em 1939. Eram tempos de guerra, crise econômica e desespero social. Em Gotham City, a criminalidade estava à solta e a corrupção era generalizada. O Homem-Morcego era violento e cruel. Quase um marginal.
Mais tarde, o clima de otimismo do pós-Guerra parece ter deixado o super-herói menos implacável. Surgiu Robin, um parceiro mais jovem que dava um toque paternal ao personagem. Nos alegres anos 60, Batman virou comédia de TV. Muitas cores no lugar das sombras. Batman virou o cidadão que respeitava o sinal vermelho até quando perseguia bandidos.
Nos final dos anos 80, imperavam as sombras do neoliberalismo vitorioso. Frank Miller lança a HQ "O cavaleiro das trevas". Resgata a origem escura de Batman. O cinema tentou aproveitar o sucesso. Tim Burton fez a primeira adaptação. Vieram mais três seqüências. O problema é que em todas elas ainda havia uma mistura mal resolvida entre a versão do Batman dos anos 30 e a colorida, dos anos 60.
Só em 2005, "Batman Begins" acerta no ponto. O diretor Chris Nolan baseou seu filme em "Batman: Ano Um" (1988), outra obra-prima de Frank Miller, com desenhos de David Mazzuchelli. Dessa vez, a adaptação foi fiel ao jeito noturno do Homem-Morcego. Talvez, porque já vivíamos a era Bush, com sua violência e intolerância.
Em 2008, Nolan repete a dose com "Batman, o cavaleiro das trevas". O filme tem vida própria, mas inspira-se em "A Piada Mortal" (1988), escrita por Alan Moore e desenhada por Dave Gibbons. A obra procura mostrar que não há grandes diferenças entre o Coringa e o homem fantasiado de morcego. Ambos são doentios.
É este o clima do filme de Nolan. Parece que há algo de muito errado em uma sociedade que precisa dos serviços de um vingador fantasiado. Uma prova disso é o surgimento de imitadores de Batman, que tentam ajudá-lo no combate ao crime, mas só tornam as coisas mais complicadas.
Um diálogo entre Bruce Wayne (Christian Bale) e o promotor público, Harvey Dent (Aaron Eckhart), é revelador. Wayne questiona as ações de Batman. Ao invés de um vingador vestido de negro, ele gostaria de ver em ação um cavaleiro branco da Justiça. E este seria o próprio Dent, conhecido por ser incorruptível e funcionário exemplar. Mas, o promotor defende o Homem-Morcego. Diz que situações de emergência pedem medidas de emergência.
Já o Coringa, interpretado com talento por Heath Ledger, nega que seja um criminoso comum. Ele não está atrás de dinheiro. Só quer se divertir com suas bombas. Não está na vida criminosa porque precisa, nem porque quer. Ele parece ter passado por um trauma que o prendeu naquele papel. "Sou como aqueles cachorros que correm atrás de um carro. Se ele parar, não sei o que fazer", diz o vilão.
Ora, Wayne também passou por um trauma. Quando criança, viu seus pais serem mortos por um ladrão. Daí, resolveu virar um combatente do crime. Uma escolha aparentemente mais saudável do que a de Coringa. No entanto, está sempre a um passo de se tornar violento e arbitrário no mesmo grau. Como Coringa, Wayne também está preso em seu papel.
Em Gotham City, tanto Batman quanto Harvey Dent querem derrotar o crime. Mas, se as leis não forem suficientes para isso, não vacilam em tentar fazê-lo à margem delas. Na vida real, as grandes cidades também têm seus Coringas. São os traficantes de drogas ou bandos organizados, como o PCC. De outro lado, uma polícia violenta, que muitas vezes age ilegalmente em defesa da lei. Por fim, há os grupos de extermínio. As famosas milícias. Grupos violentos que dizem proteger a população das favelas, enquanto arrancam dinheiro dela. No Rio de Janeiro, um deles adotou o nome de "Liga da Justiça". Uma referência a um grupo de super-heróis integrado por Batman e Robin.
No final do filme, o comissário Gordon (Gary Oldman) diz que Batman não é bandido, nem mocinho: “é apenas o Cavaleiro das Trevas”. A escuridão da vida social justificaria os métodos ilegais e violentos do mascarado. No cinema, isso é promessa de mais diversão. Na vida real, é sinal de perigo.
Milícias, crime organizado, polícia violenta, tudo isso é parte da mesma lógica de dominação. A criminalidade toma conta. Mas o combate a ela é pretexto para atingir vítimas bem definidas: pobres, negros, lutadores sociais e cidadãos sem direitos.
Não estamos em Gotham City. Entre Batman, Dent e Coringa, não ficamos com nenhum. Nossas alternativas somente surgirão da consciência de que a violência social é resultado de um conflito de classes. E que se houver alguma saída, ela virá da luta dos de baixo contra os de cima.
Sérgio Domingues
30 de jul. de 2008
Era uma vez ... o apartheid brasileiro
O filme de Breno Silveira tem muito de novela ou minissérie da Globo. Desse ponto de vista, não vale grande coisa. Por outro lado, é possível enxergar nele uma denúncia da forte divisão entre ricos e pobres no Brasil.
A estória de "Era uma vez..." é convencional. Dé (Thiago Martins) é um jovem criado na favela de Cantagalo. Nina (Vitória Frate) é a garota de classe média alta, branca e de olhos claros. Ambos moram em Ipanema.
Tudo começou porque Dé trabalha num quiosque em frente ao apartamento luxuoso de Nina. Mas, eles só se conhecem quando ela atravessa a avenida em direção à praia e senta num banco. Já é tarde da noite. Um grupo de crianças negras e pobres se aproxima ameaçadoramente. Dé salva a garota de um possível assalto. E leva a "princesa" de volta a seu "castelo". Nina entrou sem querer no mundo dele. Dé aproveitou a chance.
Dé não é negro. Agora que se aproximou de Nina, tenta se passar por rico. Em uma festa na praia avista a garota. Mal se aproxima, é expulso por um segurança. A famosa democracia que reina na praia, não reina para todos. Quando finalmente consegue entrar na festa, é porque se fez passar por vendedor de bebidas.
Mas, Dé reconhece um surfista com quem fez amizade em seu trabalho no quiosque. Através dele, consegue permanecer na festa sem precisar fingir que é vendedor. Agora, é ele que está no mundo dela. Vai tudo bem até que Dé beija Nina. Aí, o surfista coloca o favelado em seu lugar. Avisa a garota que ele é apenas o vendedor de cachorro-quente. Conversa, gentileza, dividir um baseado, é uma coisa. Namorar uma garota da turma é outra bem diferente.
O porteiro do prédio em que mora Nina avisa ao "doutor" que a filha está namorando um garoto do morro. Primeiro, tranqüiliza. Diz que o rapaz é honesto e trabalhador. Depois, assusta. É preciso cuidado para que não venha uma gravidez indesejada: "sabe como são esses jovens", diz ele. Afinal, ele é porteiro. Há muito tempo, aprendeu a ficar no lugar que lhe cabe na sociedade.
O pai se assusta. Ser pobre não é problema. Vender cachorro-quente é honesto. Mas, atravessar a avenida para namorar sua filha, já é muito abuso.
Quando Nina vai visitar o morro, Dé mostra o prédio em que ela mora. É possível ver a área de serviço dali. Ele diz que sempre esperou que ela aparecesse para poder vê-la. Mas, ela nunca foi à área de serviço. Claro. Não é um lugar da casa que ela freqüente. É onde fica a criadagem.
Dé quer estudar para melhorar de vida. Quer sair do morro e merecer a princesa loira. Quer vir pro lado de cá. Quem está do lado de lá, mesmo, é seu irmão de adoção. É Carlão (Rocco Pitanga), que foi preso sem cometer crime algum. Mas, é negro. Foi para a cadeia e ficou por lá. Se entrou inocente, saiu criminoso. Aderiu ao tráfico. Era o jeito de ficar vivo, disse ele ao irmão.
Carlão não tem dúvidas sobre seu destino. Se quiser melhorar de vida, será do jeito que lhe sobrou. Tomando o morro e controlando o tráfico. Quando se endivida com outros traficantes e policiais corruptos, Carlão apela. Ele não tinha ilusões sobre a possibilidade de entrar no mundo dos brancos e ricos. Por isso, não vacilou. Seqüestrou a namorada rica de seu próprio irmão. Na confusão, acaba morrendo. Carlão nasceu do lado de lá e por lá ficou.
Apesar de tudo isso, o casal continua firme. Acham que o amor vencerá todas as barreiras. Tentam fugir para viver juntos e felizes. O apartheid não permite e o final é trágico.
Apartheid é uma palavra que veio da África do Sul e quer dizer separação. No Brasil, não existe apartheid oficial. Nunca houve leis proibindo a convivência de brancos e negros. Mas, não é preciso. No Brasil, os pobres são quase todos negros. Só isso já é suficiente para lhes mostrar onde é seu lugar. Mas, se houver dúvidas, a polícia e o Estado em geral se encarregam de deixar bem claro. Os pobres que não são negros sofrem menos discriminação. Mas, sofrem. É assim que funciona o apartheid brasileiro.
Cumprimentar e ser gentil com porteiros, empregadas, motoristas, garçons e balconistas é uma coisa. Dividir a mesma mesa, acolher em casa, ver a irmã ou a filha casar com um deles? Ah, isso já é uma coisa bem diferente.
A grande diferença é que estamos no Rio de Janeiro. A pobreza fica logo ali, no alto e em volta. Em seus morros, ela se debruça sobre a riqueza e o luxo. A vista do mar e das montanhas lá de cima é linda. Mas, das lajes e quintais das favelas também é possível ver as piscinas das coberturas luxuosas. Onde trabalham os que vivem nos morros.
O final do filme é decepcionante. Só se explica por uma razão. O que interessa ao diretor não é o conto de fadas que o título sugere. Mas, mostrar uma sociedade dividida. O apartheid de um jeito muito brasileiro. Se o filme de Breno Silveira vale alguma coisa, é por isso.
Sérgio Domingues
A estória de "Era uma vez..." é convencional. Dé (Thiago Martins) é um jovem criado na favela de Cantagalo. Nina (Vitória Frate) é a garota de classe média alta, branca e de olhos claros. Ambos moram em Ipanema.
Tudo começou porque Dé trabalha num quiosque em frente ao apartamento luxuoso de Nina. Mas, eles só se conhecem quando ela atravessa a avenida em direção à praia e senta num banco. Já é tarde da noite. Um grupo de crianças negras e pobres se aproxima ameaçadoramente. Dé salva a garota de um possível assalto. E leva a "princesa" de volta a seu "castelo". Nina entrou sem querer no mundo dele. Dé aproveitou a chance.
Dé não é negro. Agora que se aproximou de Nina, tenta se passar por rico. Em uma festa na praia avista a garota. Mal se aproxima, é expulso por um segurança. A famosa democracia que reina na praia, não reina para todos. Quando finalmente consegue entrar na festa, é porque se fez passar por vendedor de bebidas.
Mas, Dé reconhece um surfista com quem fez amizade em seu trabalho no quiosque. Através dele, consegue permanecer na festa sem precisar fingir que é vendedor. Agora, é ele que está no mundo dela. Vai tudo bem até que Dé beija Nina. Aí, o surfista coloca o favelado em seu lugar. Avisa a garota que ele é apenas o vendedor de cachorro-quente. Conversa, gentileza, dividir um baseado, é uma coisa. Namorar uma garota da turma é outra bem diferente.
O porteiro do prédio em que mora Nina avisa ao "doutor" que a filha está namorando um garoto do morro. Primeiro, tranqüiliza. Diz que o rapaz é honesto e trabalhador. Depois, assusta. É preciso cuidado para que não venha uma gravidez indesejada: "sabe como são esses jovens", diz ele. Afinal, ele é porteiro. Há muito tempo, aprendeu a ficar no lugar que lhe cabe na sociedade.
O pai se assusta. Ser pobre não é problema. Vender cachorro-quente é honesto. Mas, atravessar a avenida para namorar sua filha, já é muito abuso.
Quando Nina vai visitar o morro, Dé mostra o prédio em que ela mora. É possível ver a área de serviço dali. Ele diz que sempre esperou que ela aparecesse para poder vê-la. Mas, ela nunca foi à área de serviço. Claro. Não é um lugar da casa que ela freqüente. É onde fica a criadagem.
Dé quer estudar para melhorar de vida. Quer sair do morro e merecer a princesa loira. Quer vir pro lado de cá. Quem está do lado de lá, mesmo, é seu irmão de adoção. É Carlão (Rocco Pitanga), que foi preso sem cometer crime algum. Mas, é negro. Foi para a cadeia e ficou por lá. Se entrou inocente, saiu criminoso. Aderiu ao tráfico. Era o jeito de ficar vivo, disse ele ao irmão.
Carlão não tem dúvidas sobre seu destino. Se quiser melhorar de vida, será do jeito que lhe sobrou. Tomando o morro e controlando o tráfico. Quando se endivida com outros traficantes e policiais corruptos, Carlão apela. Ele não tinha ilusões sobre a possibilidade de entrar no mundo dos brancos e ricos. Por isso, não vacilou. Seqüestrou a namorada rica de seu próprio irmão. Na confusão, acaba morrendo. Carlão nasceu do lado de lá e por lá ficou.
Apesar de tudo isso, o casal continua firme. Acham que o amor vencerá todas as barreiras. Tentam fugir para viver juntos e felizes. O apartheid não permite e o final é trágico.
Apartheid é uma palavra que veio da África do Sul e quer dizer separação. No Brasil, não existe apartheid oficial. Nunca houve leis proibindo a convivência de brancos e negros. Mas, não é preciso. No Brasil, os pobres são quase todos negros. Só isso já é suficiente para lhes mostrar onde é seu lugar. Mas, se houver dúvidas, a polícia e o Estado em geral se encarregam de deixar bem claro. Os pobres que não são negros sofrem menos discriminação. Mas, sofrem. É assim que funciona o apartheid brasileiro.
Cumprimentar e ser gentil com porteiros, empregadas, motoristas, garçons e balconistas é uma coisa. Dividir a mesma mesa, acolher em casa, ver a irmã ou a filha casar com um deles? Ah, isso já é uma coisa bem diferente.
A grande diferença é que estamos no Rio de Janeiro. A pobreza fica logo ali, no alto e em volta. Em seus morros, ela se debruça sobre a riqueza e o luxo. A vista do mar e das montanhas lá de cima é linda. Mas, das lajes e quintais das favelas também é possível ver as piscinas das coberturas luxuosas. Onde trabalham os que vivem nos morros.
O final do filme é decepcionante. Só se explica por uma razão. O que interessa ao diretor não é o conto de fadas que o título sugere. Mas, mostrar uma sociedade dividida. O apartheid de um jeito muito brasileiro. Se o filme de Breno Silveira vale alguma coisa, é por isso.
Sérgio Domingues
1 de jul. de 2008
Disputando nossos símbolos com a direita
“Personal Che” mostra como Guevara virou santo, garoto-propaganda e até ídolo de neonazistas. Mas, os símbolos dos socialistas estão em disputa. Cabe a nós não perdê-los para os inimigos.
Para fazer seu documentário, Douglas Duarte e Adriana Marino viajaram por vários países do mundo. Seu objetivo era ver o que Che Guevara representava para as pessoas, mais de 40 anos depois de sua morte. Estiveram na Bolívia, China, Alemanha, Estados Unidos, Líbano e Cuba.
Na pequena vila boliviana de La Higuera, Guevara foi covardemente assassinado pelo exército daquele país com ajuda da CIA. A maioria de seus habitantes passou a considerá-lo um santo, com direito a velas e oratório. Em Cuba, o filme dá destaque a um admirador bem mais informado. Conhece muitos detalhes da vida e da morte do Che. Só não conhecia as famosas fotos de Guevara morto. Aparentemente proibidas ou de circulação restrita em Cuba.
No Líbano, a vida de Guevara é tema de um musical. O ator que o interpreta também mostra conhecer bem o personagem. Mas, coloca-o no mesmo nível de seus ídolos religiosos islâmicos. Em Hong Kong, um deputado é voz isolada no parlamento local. Inspirado no revolucionário argentino, ele se reivindica marxista e denuncia a repressão e exploração do regime de seu país.
Um porto-riquenho que mora nos Estados Unidos tem enorme coleção de camisetas, pôsteres, quadros de seu ídolo. É mais um fã do que um seguidor político de Guevara. O filme também mostra o Che adotado pelo mundo da moda. A famosa foto de Alberto Korda virou estampa em roupas usadas por pessoas de todas as classes sociais. Mas, a maioria mal sabe dizer quem foi ele.
Da Alemanha vem o exemplo mais chocante. Um grupo neonazista adotou Guevara e Hitler como seus ídolos. Ambos teriam sido “revolucionários que lutaram pela liberdade de suas pátrias”.
Tudo isso mostra que Che Guevara tornou-se uma grande figura simbólica. Alguns elementos foram determinantes para isso. Um deles foi ter vivido em uma época que começava a ser marcada pela expansão mundial dos meios-de-comunicação. Sua figura correu o mundo facilmente. E sua opção pela luta armada também ajudou a torná-lo popular junto a um público acostumado pela própria indústria cultural a admirar ações heróicas a cargo de indivíduos corajosos.
O problema é que os mesmos meios que o tornaram popular se encarregaram de apagar e embaralhar muitos detalhes sobre sua vida. Com isso, muitos de seus admiradores encaixam sua figura no que lhes parecem ser causa dignas por que lutar. Mesmo que algumas acabem pertencendo à vergonhosa sujeira fascista. Este é o grande risco que envolve as figuras simbólicas.
Não há como nos livrarmos dos símbolos. Os seres humanos tornaram-se simbólicos desde que aprenderam a dar nome às coisas. Por outro lado, os símbolos não são neutros, nem são fixos. Menos ainda em uma sociedade de classes. A classe dominante transforma tudo em mercadoria e utiliza valores a seu favor. É só ver o uso que a propaganda voltada para os jovens faz do Maio de 68, por exemplo. Ou a transformação de lutas populares em episódios românticos de novelas, filmes e minisséries.
Claro que transformar a vida e a obra de revolucionários socialistas em símbolos de luta é importante. No entanto, cada vez que tornamos um deles um herói quase santo, abrimos brechas para que nossos inimigos se aproveitem.
Marx, Engels e Lênin também se tornaram alvo de um culto quase religioso. Stalin foi o maior dos coveiros da revolução de 1917. Mas para melhor enterrá-la inventou uma mitologia revolucionária. Transformou o pensamento marxista em um evangelho. Alguns de seus formuladores em apóstolos. Outros, em Judas a serem perseguidos, como fez com Trotski e quase todos os líderes da Revolução Russa. E para si mesmo, Stalin reservou a função de grande sacerdote. Algo muito parecido ocorreu em Cuba, onde Che também virou um santo oficial.
Quando escolhemos fazer tal uso dos símbolos, adotamos o campo de batalha do inimigo. As religiões não são necessariamente conservadoras. Apenas quando são usadas para justificar a dominação e a exploração. Os camponeses de La Higuera cultuam Guevara como a um santo. Mas, pelo menos, é positivo que vejam nele alguém que lutou por justiça.
Já os santos inventados por Stálin, foram utilizados para reforçar o poder da classe que dominava o Estado soviético. Sua função era conservadora. A construção do socialismo passa a ser coisa de uns poucos iluminados. As ações e escritos de grandes lutadores viram fórmulas que são repetidas automaticamente. Partidos e organizações tornam-se seitas dominadas por cardeais. Nossos símbolos e idéias somem na circulação geral das mercadorias e valores da burguesia.
O documentário dá a entender que o verdadeiro Che já se perdeu. Não é o caso. De Guevara, temos a obra escrita, as ações políticas, biografias e estudos sobre sua atuação. Elementos que permitem entender como pensava e o que defendeu. Possibilitam tirar lições, seguir exemplos e evitar erros. O Che é uma importante referência para quem luta pelo socialismo. Aceitá-lo como santo ou infalível é entregá-lo ao inimigo.
Sérgio Domingues – Julho de 2008
Para fazer seu documentário, Douglas Duarte e Adriana Marino viajaram por vários países do mundo. Seu objetivo era ver o que Che Guevara representava para as pessoas, mais de 40 anos depois de sua morte. Estiveram na Bolívia, China, Alemanha, Estados Unidos, Líbano e Cuba.
Na pequena vila boliviana de La Higuera, Guevara foi covardemente assassinado pelo exército daquele país com ajuda da CIA. A maioria de seus habitantes passou a considerá-lo um santo, com direito a velas e oratório. Em Cuba, o filme dá destaque a um admirador bem mais informado. Conhece muitos detalhes da vida e da morte do Che. Só não conhecia as famosas fotos de Guevara morto. Aparentemente proibidas ou de circulação restrita em Cuba.
No Líbano, a vida de Guevara é tema de um musical. O ator que o interpreta também mostra conhecer bem o personagem. Mas, coloca-o no mesmo nível de seus ídolos religiosos islâmicos. Em Hong Kong, um deputado é voz isolada no parlamento local. Inspirado no revolucionário argentino, ele se reivindica marxista e denuncia a repressão e exploração do regime de seu país.
Um porto-riquenho que mora nos Estados Unidos tem enorme coleção de camisetas, pôsteres, quadros de seu ídolo. É mais um fã do que um seguidor político de Guevara. O filme também mostra o Che adotado pelo mundo da moda. A famosa foto de Alberto Korda virou estampa em roupas usadas por pessoas de todas as classes sociais. Mas, a maioria mal sabe dizer quem foi ele.
Da Alemanha vem o exemplo mais chocante. Um grupo neonazista adotou Guevara e Hitler como seus ídolos. Ambos teriam sido “revolucionários que lutaram pela liberdade de suas pátrias”.
Tudo isso mostra que Che Guevara tornou-se uma grande figura simbólica. Alguns elementos foram determinantes para isso. Um deles foi ter vivido em uma época que começava a ser marcada pela expansão mundial dos meios-de-comunicação. Sua figura correu o mundo facilmente. E sua opção pela luta armada também ajudou a torná-lo popular junto a um público acostumado pela própria indústria cultural a admirar ações heróicas a cargo de indivíduos corajosos.
O problema é que os mesmos meios que o tornaram popular se encarregaram de apagar e embaralhar muitos detalhes sobre sua vida. Com isso, muitos de seus admiradores encaixam sua figura no que lhes parecem ser causa dignas por que lutar. Mesmo que algumas acabem pertencendo à vergonhosa sujeira fascista. Este é o grande risco que envolve as figuras simbólicas.
Não há como nos livrarmos dos símbolos. Os seres humanos tornaram-se simbólicos desde que aprenderam a dar nome às coisas. Por outro lado, os símbolos não são neutros, nem são fixos. Menos ainda em uma sociedade de classes. A classe dominante transforma tudo em mercadoria e utiliza valores a seu favor. É só ver o uso que a propaganda voltada para os jovens faz do Maio de 68, por exemplo. Ou a transformação de lutas populares em episódios românticos de novelas, filmes e minisséries.
Claro que transformar a vida e a obra de revolucionários socialistas em símbolos de luta é importante. No entanto, cada vez que tornamos um deles um herói quase santo, abrimos brechas para que nossos inimigos se aproveitem.
Marx, Engels e Lênin também se tornaram alvo de um culto quase religioso. Stalin foi o maior dos coveiros da revolução de 1917. Mas para melhor enterrá-la inventou uma mitologia revolucionária. Transformou o pensamento marxista em um evangelho. Alguns de seus formuladores em apóstolos. Outros, em Judas a serem perseguidos, como fez com Trotski e quase todos os líderes da Revolução Russa. E para si mesmo, Stalin reservou a função de grande sacerdote. Algo muito parecido ocorreu em Cuba, onde Che também virou um santo oficial.
Quando escolhemos fazer tal uso dos símbolos, adotamos o campo de batalha do inimigo. As religiões não são necessariamente conservadoras. Apenas quando são usadas para justificar a dominação e a exploração. Os camponeses de La Higuera cultuam Guevara como a um santo. Mas, pelo menos, é positivo que vejam nele alguém que lutou por justiça.
Já os santos inventados por Stálin, foram utilizados para reforçar o poder da classe que dominava o Estado soviético. Sua função era conservadora. A construção do socialismo passa a ser coisa de uns poucos iluminados. As ações e escritos de grandes lutadores viram fórmulas que são repetidas automaticamente. Partidos e organizações tornam-se seitas dominadas por cardeais. Nossos símbolos e idéias somem na circulação geral das mercadorias e valores da burguesia.
O documentário dá a entender que o verdadeiro Che já se perdeu. Não é o caso. De Guevara, temos a obra escrita, as ações políticas, biografias e estudos sobre sua atuação. Elementos que permitem entender como pensava e o que defendeu. Possibilitam tirar lições, seguir exemplos e evitar erros. O Che é uma importante referência para quem luta pelo socialismo. Aceitá-lo como santo ou infalível é entregá-lo ao inimigo.
Sérgio Domingues – Julho de 2008
Mídia Vigiada em novo endereço
Depois de que minha página sumiu do Kit.net, cá estamos num blog do Google. Antes era o monopólio da Globo. Agora, é o da Google. É assim que ficamos sempre muito perto da grande mídia.
Aparentemente, um vírus atacou o site da Globo.
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