“Quem quer ser milionário” não ganhou o Oscar à toa. Foi feito para agradar o público formado pela indústria cinematográfica. Sem querer, também acabou mostrando como o capitalismo rasga uma sociedade.
O filme de David Boyle tem vários elementos diferentes, mas bem combinados. A curiosidade em torno da cultura indiana. Ritmo veloz, ótimos atores, música bem escolhida. Muita miséria, crueldade e um final feliz graças ao amor. Aquele sentimento que pode tudo na indústria cultural e quase nada na vida real.
Mas, alguns momentos da produção são reveladores. Mostram bem os estragos que faz o capitalismo em um país milenar. A favela em que foram filmadas muitas cenas do filme é Dharavi, a maior da Ásia. Seus moradores fazem parte dos 8 milhões de favelados de Mumbai. Metade da população da cidade vive em bairros desse tipo. O filme não fala nada disso, mas as imagens de miséria mostram o resultado de alguns séculos de desenvolvimento capitalista. Um progresso que quase sempre beneficia uma minoria e marginaliza o restante.
A obra de Boyle também não fala diretamente dos conflitos religiosos. No entanto, a mãe dos garotos Jamal e Salim é morta a pauladas por ser muçulmana. É nas favelas que moram trabalhadores que ganham pouco, não contam com serviços públicos e convivem com o crime organizado. Tudo isso explode através de intolerâncias diversas.
A competição capitalista é outro elemento desorganizador na sociedade indiana. Até o século 19, a estrutura social indiana era dividida em castas. Os membros de uma casta nasciam e morriam dentro dela. Não podiam se misturar. Até as profissões eram definidas pelo nascimento. Os ingleses chegaram para mudar tudo isso.
Com eles, veio o capitalismo e sua feroz competição de mercado. Algo que não combina com o sistema de castas. Sem disputa por empregos, por exemplo, fica mais difícil diminuir o valor dos salários. Ao mesmo tempo, não interessa à nova ordem acabar totalmente com as tradições. A discriminação por origem de casta tornou-se ilegal. Mas, é amplamente tolerada. Afinal, sempre serviu para dividir os dominados. Atualmente, ajuda o sistema de exploração econômica a funcionar em paz. O antigo encontra-se com o moderno e ambos mantêm a dominação da maioria pela minoria.
Em meio a tudo isso, Jamal e Salim procuram sair da miséria. Órfãos e abandonados, eles vivem de esmolas e pequenas trapaças. Mas, Salim quer subir na vida. Criado pelas ruas, sem família e com pouca instrução, toma o caminho do crime. A grande ambição de Jamal é reencontrar Latika, seu amor de infância. Enquanto isso, sobrevive trabalhando em uma central telefônica. Um ramo econômico enorme e em expansão no país. O grande trunfo dos profissionais indianos é sua pronúncia impecável do inglês. Desse modo, podem atender clientes dos Estados Unidos e Inglaterra sem denunciar sua condição de moradores de uma ex-colônia. É a continuidade da colonização através do idioma.
Outro traço forte mostrado pelo filme é a presença da grande mídia na vida dos indianos do século 21. O pequeno Jamal mergulha literalmente na merda para conseguir o autógrafo de um ídolo do cinema. Tanto sacrifício mostra o peso do cinema na vida dos indianos. A indústria cinematográfica do país é tão poderosa que recebe o nome de “Bollywood”. Uma fusão de Bombaim (antigo nome de Mumbai) com Hollywood. A ironia é que essa mesma indústria nada teve a ver com a produção de um filme sobre a Índia que faz sucesso e é premiado no mundo todo.
Mas, a TV também está presente em todas os cantos. Tanto é que Jamal resolve participar do programa que o torna milionário apenas para reencontrar seu amor de infância. Na trama romântica do filme, ganhar o prêmio é apenas um detalhe. Jamal só quer aparecer na TV para ser encontrado por sua amada. Mas, é exatamente esse desinteresse que faz o jovem avançar no jogo. Incomodado com isso, o apresentador do programa chega a entregar o jovem à polícia sob acusação de fraude, com direito a tortura.
No final, Salim interrompe sua escalada rumo aos altos postos do crime organizado. Em nome da felicidade do irmão abandona tudo. Deixa-se matar mergulhado no dinheiro que seu irmão despreza. Jamal não precisou apelar à selvageria para vencer. Escapou de forma limpa das armadilhas do apresentador do programa. Em sua santa inocência tornou-se milionário, ídolo nacional e foi viver feliz para sempre com sua amada Latika.
É o final feliz que Hollywood queria. Só muita fantasia para abafar as contradições. E a recompensa veio tão certa como o prêmio de Jamal. O Oscar de melhor filme colocou a Índia em festa e calou os poucos críticos do filme. Mas na vida real, para vencer é preciso render-se às leis da selva capitalista. Aceitar ser parte das engrenagens que tornam selvagem a vida de centenas de milhões de pessoas. Na Índia e em quase todo o planeta.
5 de mar. de 2009
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