Em 2012, de Roland Emerich, governantes dos países ricos são os mocinhos do filme. Mais fácil acreditar em teorias apocalípticas.
O absurdo de 2012 não é a teoria de que um alinhamento de planetas causaria catástrofes capazes de destruir a Terra. Nem acreditar que o mundo acaba em 2012 por causa de uma profecia maia. As situações de falso suspense também não são tão difíceis de aceitar, pois as conhecemos de outros filmes. Heróis e heroínas sempre escapam das piores enrascadas no último momento.
Absurdo mesmo é ver governantes dos países mais ricos do mundo demonstrando compaixão por seus governados. Depois de gastar bilhões em enormes navios para salvar a si mesmos, seus familiares e auxiliares, presidentes e primeiros-ministros resolvem deixar que o povo entre em suas confortáveis arcas. O pior é que o presidente dos Estados Unidos nem mesmo sobe a bordo. Fica para trás para morrer com seus concidadãos.
O personagem de Oliver Platt é o único que faz algum sentido. Ele é Carl Anheuser, assessor frio e calculista da Casa Branca, que não cansa de dizer que somente alguns podem se salvar para “continuar a espécie”.
É esta a mentalidade reinante hoje e não deverá ser muito diferente daqui a dois anos. É este modo de pensar que prevalece cada vez mais no capitalismo e que ganhou novo impulso com o neoliberalismo dos últimos 30 anos. É esta a lógica que elegeu a grande maioria dos atuais governantes. Principalmente, nos países que mandam no mundo.
Finalmente, é esta a concepção que vem alimentando a corrida da humanidade rumo ao desastre ambiental e social. E se os povos do mundo não impedirem, não será preciso nenhum alinhamento de planetas para que a maior parte da humanidade seja condenada a miséria, fome e doenças.
Acreditar em teorias fantasiosas, tudo bem. Mas, crer em governantes de alma caridosa? Haja imaginação.
Sérgio Domingues – novembro de 2009
23 de nov. de 2009
26 de out. de 2009
Ficção científica contra o racismo é quase real
“Distrito 9”, de Neill Blomkamp, alia diversão e denúncia. É ótimo. Pena que perto do verdadeiro racismo seja quase um conto de fadas.
Em 2012, alienígenas vêm parar na Terra, mas não chegam invadindo e atirando raios. Também não são seres superiores dando lição de moral a nossa espécie. São milhões de criaturas cuja nave enguiçou sobre a cidade de Joanesburgo, na África do Sul. Resgatados pelos humanos, são colocados numa enorme favela que recebeu o nome de Distrito 9. O aspecto físico dos recém-chegados é desagradável, lembrando uma mistura de inseto com crustáceo. Por isso, recebem o apelido nada carinhoso de camarões.
Não é a primeira vez que um diretor dá aos alienígenas um aspecto repugnante. Em 1997, Paul Verhoeven realizou “Tropas Estelares”. A produção adotou como modelo a estética dos diretores de cinema da Alemanha nazista. Seus heróis eram homens e mulheres jovens, atléticos, bonitos e brancos. Leais e amigos entre si e impiedosos com os inimigos. Nada mais fácil do que ser cruel com vilões que parecem enormes baratas nojentas. Este seria o segredo da estética fascista. Transformar os inimigos em criaturas repugnantes. Não à toa, os nazistas chamavam os judeus de ratos.
Mas, o filme de Blomkamp parte desse ponto de vista para invertê-lo. As primeiras cenas mostram os alienígenas como seres violentos, sujos, viciados em ração de gato e desleais. No final da exibição, nossa simpatia vai toda para a causa dos infelizes aliens em sua luta contra a injustiça.
São vários os aspectos interessantes do filme. A maioria, ligada à denúncia do racismo. Em primeiro lugar, nada mais apropriado do que situar o drama na maior cidade de um país que viveu a vergonha do racismo institucionalizado. O diretor é branco e jovem, mas chegou a ver o Apartheid em pleno funcionamento. Afinal, o odioso regime racista só acabou há 15 anos.
O processo de favelização da colônia extraterrestre mostrado no filme também é parecido com o que ocorre nas grandes cidades do planeta. Populações recém-chegadas são isoladas em bairros distantes, sem estrutura e acesso a direitos básicos. Mas, a inevitável deterioração de suas condições de vida não é vista como conseqüência desse isolamento. Passa a ser entendida como característica natural de sua gente.
Quando uma socióloga considera preconceituoso chamar os alienígenas de camarões, um chefe de polícia diz que não vê preconceito. “Eles realmente se parecem com camarões”, diz ele. Isso é bem típico dos mecanismos que alimentam a discriminação e o racismo. Faz lembrar um trecho do romance “O sorriso do lagarto”, de João Ubaldo Ribeiro. Nele, um personagem diz que a maioria dos macacos tem traços e características que os faz mais parecidos com homens brancos do que com negros. No entanto, o racismo afirma o contrário.
O mesmo acontece quando comportamentos verificados entre populações pobres são considerados próprios de animais. É a tentativa de lhes tirar a condição de seres humanos. São o mesmo que ratos, baratas, camarões, macacos. Se for preciso, se fugirem ao controle e tornarem-se pragas, devem ser contidos ou exterminados. Basta prestar atenção no discurso da classe dominante. Ouvir o que dizem a grande mídia, governantes, parlamentares, empresários. Essa lógica está lá. Às vezes, bem aparente.
Como as idéias da classe dominante dominam a sociedade, o racismo e a discriminação também surgem entre suas próprias vítimas. Por isso, “Distrito 9” mostra negros sul-africanos a favor da perseguição aos alienígenas. Não notam que reproduzem a opressão de que também são vítimas. Afinal, nem da espécie humana eles são, diz um deles. Mas, para o racismo este é só um detalhe. Para transformar um setor da população em seu alvo, não é preciso que seus membros tenham antenas e garras. Basta escolher certas características estranhas ao senso comum e generalizar para aquele setor da população. Aí, é só excluí-lo das pessoas consideradas “corretas” e “civilizadas”.
Uma crítica que poderia ser feita ao filme é o modo como mostra uma gangue de nigerianos. Um bando criminoso cruel, ignorante, supersticioso. Mas, o filme acaba retratando a realidade sul-africana hoje. Há um grande movimento migratório da Nigéria para a África do Sul, país mais desenvolvido do continente e um dos mais injustos do mundo, também. Os nigerianos acabam formando grande parte da população pobre e moradora de favelas. São os mais recentes discriminados em uma sociedade já tão marcada pela injustiça social.
Por fim, é interessante notar como à medida que o filme se aproxima do final, começamos a enxergar os recém-chegados como vítimas. Os estranhos seres se mostram capazes de sentimentos e reações muito parecidas com as nossas. Revelam dominar uma tecnologia avançada e serem capazes de manifestar solidariedade e lealdade.
Isso acontece porque já somos capazes de contextualizar a situação dos alienígenas. Diferente do que acontecia antes, no início do filme, quando a sucessão de imagens era frenética. Imperava o ritmo típico dos diversos telejornais apelativos que mostram situações violentas sem qualquer preocupação em situar histórica e socialmente os conflitos, guerras e dificuldades vividos por explorados e oprimidos no mundo todo. O resultado é mais preconceito e visões distorcidas em relação a povos, etnias ou ao vizinho da favela ou periferia mais próxima. Mais lenha na fogueira do racismo, do ódio aos estrangeiros, da intolerância com o diferente.
O filme vale porque alia diversão e denúncia. Pena que suas cenas chocantes sejam suaves perto dos verdadeiros efeitos do racismo e da exploração capitalista pelo mundo afora. Basta assistir a um documentário como “O pesadelo de Darwin”, de Hubert Sauper, ou ler os relatos de “Planeta favela”, de Mike Davis. Deixam qualquer roteirista de terror apavorado.
Em 2012, alienígenas vêm parar na Terra, mas não chegam invadindo e atirando raios. Também não são seres superiores dando lição de moral a nossa espécie. São milhões de criaturas cuja nave enguiçou sobre a cidade de Joanesburgo, na África do Sul. Resgatados pelos humanos, são colocados numa enorme favela que recebeu o nome de Distrito 9. O aspecto físico dos recém-chegados é desagradável, lembrando uma mistura de inseto com crustáceo. Por isso, recebem o apelido nada carinhoso de camarões.
Não é a primeira vez que um diretor dá aos alienígenas um aspecto repugnante. Em 1997, Paul Verhoeven realizou “Tropas Estelares”. A produção adotou como modelo a estética dos diretores de cinema da Alemanha nazista. Seus heróis eram homens e mulheres jovens, atléticos, bonitos e brancos. Leais e amigos entre si e impiedosos com os inimigos. Nada mais fácil do que ser cruel com vilões que parecem enormes baratas nojentas. Este seria o segredo da estética fascista. Transformar os inimigos em criaturas repugnantes. Não à toa, os nazistas chamavam os judeus de ratos.
Mas, o filme de Blomkamp parte desse ponto de vista para invertê-lo. As primeiras cenas mostram os alienígenas como seres violentos, sujos, viciados em ração de gato e desleais. No final da exibição, nossa simpatia vai toda para a causa dos infelizes aliens em sua luta contra a injustiça.
São vários os aspectos interessantes do filme. A maioria, ligada à denúncia do racismo. Em primeiro lugar, nada mais apropriado do que situar o drama na maior cidade de um país que viveu a vergonha do racismo institucionalizado. O diretor é branco e jovem, mas chegou a ver o Apartheid em pleno funcionamento. Afinal, o odioso regime racista só acabou há 15 anos.
O processo de favelização da colônia extraterrestre mostrado no filme também é parecido com o que ocorre nas grandes cidades do planeta. Populações recém-chegadas são isoladas em bairros distantes, sem estrutura e acesso a direitos básicos. Mas, a inevitável deterioração de suas condições de vida não é vista como conseqüência desse isolamento. Passa a ser entendida como característica natural de sua gente.
Quando uma socióloga considera preconceituoso chamar os alienígenas de camarões, um chefe de polícia diz que não vê preconceito. “Eles realmente se parecem com camarões”, diz ele. Isso é bem típico dos mecanismos que alimentam a discriminação e o racismo. Faz lembrar um trecho do romance “O sorriso do lagarto”, de João Ubaldo Ribeiro. Nele, um personagem diz que a maioria dos macacos tem traços e características que os faz mais parecidos com homens brancos do que com negros. No entanto, o racismo afirma o contrário.
O mesmo acontece quando comportamentos verificados entre populações pobres são considerados próprios de animais. É a tentativa de lhes tirar a condição de seres humanos. São o mesmo que ratos, baratas, camarões, macacos. Se for preciso, se fugirem ao controle e tornarem-se pragas, devem ser contidos ou exterminados. Basta prestar atenção no discurso da classe dominante. Ouvir o que dizem a grande mídia, governantes, parlamentares, empresários. Essa lógica está lá. Às vezes, bem aparente.
Como as idéias da classe dominante dominam a sociedade, o racismo e a discriminação também surgem entre suas próprias vítimas. Por isso, “Distrito 9” mostra negros sul-africanos a favor da perseguição aos alienígenas. Não notam que reproduzem a opressão de que também são vítimas. Afinal, nem da espécie humana eles são, diz um deles. Mas, para o racismo este é só um detalhe. Para transformar um setor da população em seu alvo, não é preciso que seus membros tenham antenas e garras. Basta escolher certas características estranhas ao senso comum e generalizar para aquele setor da população. Aí, é só excluí-lo das pessoas consideradas “corretas” e “civilizadas”.
Uma crítica que poderia ser feita ao filme é o modo como mostra uma gangue de nigerianos. Um bando criminoso cruel, ignorante, supersticioso. Mas, o filme acaba retratando a realidade sul-africana hoje. Há um grande movimento migratório da Nigéria para a África do Sul, país mais desenvolvido do continente e um dos mais injustos do mundo, também. Os nigerianos acabam formando grande parte da população pobre e moradora de favelas. São os mais recentes discriminados em uma sociedade já tão marcada pela injustiça social.
Por fim, é interessante notar como à medida que o filme se aproxima do final, começamos a enxergar os recém-chegados como vítimas. Os estranhos seres se mostram capazes de sentimentos e reações muito parecidas com as nossas. Revelam dominar uma tecnologia avançada e serem capazes de manifestar solidariedade e lealdade.
Isso acontece porque já somos capazes de contextualizar a situação dos alienígenas. Diferente do que acontecia antes, no início do filme, quando a sucessão de imagens era frenética. Imperava o ritmo típico dos diversos telejornais apelativos que mostram situações violentas sem qualquer preocupação em situar histórica e socialmente os conflitos, guerras e dificuldades vividos por explorados e oprimidos no mundo todo. O resultado é mais preconceito e visões distorcidas em relação a povos, etnias ou ao vizinho da favela ou periferia mais próxima. Mais lenha na fogueira do racismo, do ódio aos estrangeiros, da intolerância com o diferente.
O filme vale porque alia diversão e denúncia. Pena que suas cenas chocantes sejam suaves perto dos verdadeiros efeitos do racismo e da exploração capitalista pelo mundo afora. Basta assistir a um documentário como “O pesadelo de Darwin”, de Hubert Sauper, ou ler os relatos de “Planeta favela”, de Mike Davis. Deixam qualquer roteirista de terror apavorado.
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7 de out. de 2009
O trator da grande mídia a serviço do agronegócio
Um trator derrubando pés de laranja pode pouco perto da aliança entre os controladores das ondas eletromagnéticas e os modernos latifundiários. É o monopólio do ar apoiando o monopólio da terra.
A imagem de um trator derrubando pés de laranja está em todos os telejornais. A máquina é dirigida por um militante do MST. O local é uma fazenda da Cutrale, empresa gigante do ramo de sucos. Depois de afirmar que a propriedade é produtiva, a reportagem ouve uma representante do Movimento. Ela afirma que os laranjais foram derrubados para que seja plantado feijão: “Ninguém pode viver só de laranja”.
Há uma comoção geral. Um sentimento de escândalo. Por que? Porque a cena toda apareceu fora de contexto. Trata-se de 2,7 mil hectares pertencentes à União e tomadas pela empresa ilegalmente. O plantio de laranja pode ser produtivo do ponto de vista dos lucros que vai gerar para a empresa. Mas não do ponto de vista social. No caso, trata-se de mais um exemplo de atividade típica do agronegócio. Geradora de bilhões em lucros e pouquíssimos empregos. E ainda por cima, fora da lei.
Mas, os grandes meios de comunicação não explicam nada disso. Exibem a imagem do trator derrubando árvores na Cutrale. Não mostram o exército de tratores do agronegócio que derrubam centenas de milhares de hectares de floresta amazônica e cerrado todos os anos. Não questionam o moderno latifúndio, que arrasa matas e animais, destrói comunidades, desvia rios, remove montanhas, abre crateras. Tudo em nome de uma produção para exportação, que gera poucos empregos, quase nenhum alimento e super-lucros para os de sempre.
Tudo isso poucos dias depois da divulgação dos dados do Censo Agropecuário do IBGE. Números que revelam o que já se sabe há muito tempo. O Brasil tem a maior concentração fundiária do mundo. Enquanto propriedades com até 10 hectares representam menos de 3% da área total, a parte ocupada por propriedades com mais de mil hectares concentram mais de 43%. Ao mesmo tempo, a agricultura familiar emprega 75% da força de trabalho no campo e produz 87% da mandioca, 70% do feijão, 58% do leite etc. Tudo com muito pouco apoio oficial.
Mas, nada vale tanto quanto a imagem de um trator derrubando pés de laranja. Comoção parecida ocorreu em março de 2006, quando mulheres da Via Campesina destruíram mudas de um viveiro da Aracruz. Naquela época, como agora, muita gente de esquerda, que apóia a luta dos Sem-Terra e da Via Campesina, condenou a ação. Considerou pouco tática.
Os que mais usam essa argumentação são “nossos aliados” no parlamento e no governo. Sempre tão cautelosos em relação à imagem dos movimentos sociais, não ajudaram a mostrar que as instalações da Aracruz nada tinham de cientificas. Que o plantio de eucaliptos é um dos maiores crimes ambientais e que a grilagem de terra é uma das especialidades dessa gigante do celulose.
O fato é que há questões e momentos em que os poderosos deixam pouco espaço para que a luta adote táticas sutis. Qual é a alternativa do MST à derrubada do laranjal? Distribuir panfletos nas grandes cidades denunciando as práticas de grilagem da Cutrale? Ou esperar que o Incra desaproprie a área tanto quanto espera há 29 anos que os índices de produtividade rural sejam revistos?
Os panfletos poderiam ser distribuídos aos milhões. Teriam pouco efeito frente ao apoio que uma Cutrale tem da grande mídia. Aquela que fala com milhões de pessoas a cada segundo. O caso dos índices de produtividade é um escândalo. Mas, 99,5% da população não sabem o que eles significam. Claro, a grande mídia não pautou a questão. Mal dedica meia dúzia de minutos por semana a ela. Não faz debates. E quando os faz, eles acontecem em horários inacessíveis, em canais fechados, com especialistas entendidos apenas por seus pares acadêmicos.
Enquanto poucos grupos poderosos continuarem a controlar a transmissão de informação pelas ondas eletromagnéticas a situação será esta. O monopólio do ar apóia o monopólio da terra. O monopólio da terra anda de braços dados com o grande capital. E este conta com total apoio dos vários níveis de governo. Todos unidos para manter os níveis extremos de desigualdade social no Brasil. Esta sim uma característica que dá ao Brasil um lugar no olimpo da exploração capitalista.
A imagem de um trator derrubando pés de laranja está em todos os telejornais. A máquina é dirigida por um militante do MST. O local é uma fazenda da Cutrale, empresa gigante do ramo de sucos. Depois de afirmar que a propriedade é produtiva, a reportagem ouve uma representante do Movimento. Ela afirma que os laranjais foram derrubados para que seja plantado feijão: “Ninguém pode viver só de laranja”.
Há uma comoção geral. Um sentimento de escândalo. Por que? Porque a cena toda apareceu fora de contexto. Trata-se de 2,7 mil hectares pertencentes à União e tomadas pela empresa ilegalmente. O plantio de laranja pode ser produtivo do ponto de vista dos lucros que vai gerar para a empresa. Mas não do ponto de vista social. No caso, trata-se de mais um exemplo de atividade típica do agronegócio. Geradora de bilhões em lucros e pouquíssimos empregos. E ainda por cima, fora da lei.
Mas, os grandes meios de comunicação não explicam nada disso. Exibem a imagem do trator derrubando árvores na Cutrale. Não mostram o exército de tratores do agronegócio que derrubam centenas de milhares de hectares de floresta amazônica e cerrado todos os anos. Não questionam o moderno latifúndio, que arrasa matas e animais, destrói comunidades, desvia rios, remove montanhas, abre crateras. Tudo em nome de uma produção para exportação, que gera poucos empregos, quase nenhum alimento e super-lucros para os de sempre.
Tudo isso poucos dias depois da divulgação dos dados do Censo Agropecuário do IBGE. Números que revelam o que já se sabe há muito tempo. O Brasil tem a maior concentração fundiária do mundo. Enquanto propriedades com até 10 hectares representam menos de 3% da área total, a parte ocupada por propriedades com mais de mil hectares concentram mais de 43%. Ao mesmo tempo, a agricultura familiar emprega 75% da força de trabalho no campo e produz 87% da mandioca, 70% do feijão, 58% do leite etc. Tudo com muito pouco apoio oficial.
Mas, nada vale tanto quanto a imagem de um trator derrubando pés de laranja. Comoção parecida ocorreu em março de 2006, quando mulheres da Via Campesina destruíram mudas de um viveiro da Aracruz. Naquela época, como agora, muita gente de esquerda, que apóia a luta dos Sem-Terra e da Via Campesina, condenou a ação. Considerou pouco tática.
Os que mais usam essa argumentação são “nossos aliados” no parlamento e no governo. Sempre tão cautelosos em relação à imagem dos movimentos sociais, não ajudaram a mostrar que as instalações da Aracruz nada tinham de cientificas. Que o plantio de eucaliptos é um dos maiores crimes ambientais e que a grilagem de terra é uma das especialidades dessa gigante do celulose.
O fato é que há questões e momentos em que os poderosos deixam pouco espaço para que a luta adote táticas sutis. Qual é a alternativa do MST à derrubada do laranjal? Distribuir panfletos nas grandes cidades denunciando as práticas de grilagem da Cutrale? Ou esperar que o Incra desaproprie a área tanto quanto espera há 29 anos que os índices de produtividade rural sejam revistos?
Os panfletos poderiam ser distribuídos aos milhões. Teriam pouco efeito frente ao apoio que uma Cutrale tem da grande mídia. Aquela que fala com milhões de pessoas a cada segundo. O caso dos índices de produtividade é um escândalo. Mas, 99,5% da população não sabem o que eles significam. Claro, a grande mídia não pautou a questão. Mal dedica meia dúzia de minutos por semana a ela. Não faz debates. E quando os faz, eles acontecem em horários inacessíveis, em canais fechados, com especialistas entendidos apenas por seus pares acadêmicos.
Enquanto poucos grupos poderosos continuarem a controlar a transmissão de informação pelas ondas eletromagnéticas a situação será esta. O monopólio do ar apóia o monopólio da terra. O monopólio da terra anda de braços dados com o grande capital. E este conta com total apoio dos vários níveis de governo. Todos unidos para manter os níveis extremos de desigualdade social no Brasil. Esta sim uma característica que dá ao Brasil um lugar no olimpo da exploração capitalista.
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29 de set. de 2009
Rock bom é rock pirata!
O filme “Os Piratas do Rock” mostra as origens das rádios piratas. E lembra como o rock´n roll foi subversivo. Hoje, virou mercadoria, mas ainda há muitos fazendo música contra as injustiças.
O ano é de 1966. O rock era considerado música perigosa. Afinal, o verbo rock, em inglês, quer dizer balançar. Rock and roll é algo como balançar e girar. Ou melhor, rebolar mesmo. É exatamente esse o movimento que quem dança rock faz. E como sabemos, movimentos com os quadris lembram o ato sexual. E sexo mais música é igual a prazer, não a reprodução da espécie. Um crime para os conservadores. Principalmente quando os maiores fãs da nova música eram jovens.
Por isso o rock foi tratado como algo extremamente subversivo quando nasceu. O novo ritmo só tocava duas horas por dia na maior rádio da Inglaterra, a BBC. Diante dessa censura não declarada, rádios que só tocavam rock começaram a surgir. A perseguição do governo britânico as jogou na ilegalidade. Para escapar à repressão, uma delas se instalou num barco. Como os piratas, ela atacava em alto mar. Longe das leis. Era a Rádio Rock.
Baseado em fatos reais, o filme de Richard Curtis conta a história dessa experiência. A produção passou despercebida por aqui, mas está nas locadoras. O elenco é ótimo: Philip Seymour Hoffman, Kenneth Branagh, Bill Nighy, January Jones, Gemma Arterton, Emma Thompson, Kenneth Branagh, Nick Frost. A história é boa e a trilha, melhor ainda. A caracterização da época também é interessante. Metade da Inglaterra, principalmente jovens e mulheres, ouvia as rádios piratas. Muitas vezes, a audição era feita escondida dos pais, maridos e patrões.
A produção surpreende ao retratar uma sociedade tão conservadora menos de 50 anos atrás. Como mostra o filme, a pílula já era bastante popular. Para o ódio da cúpula católica e conservadores em geral, libertava as mulheres de sua função reprodutiva. Dava a elas o direito de fazer sexo por prazer. O rock era só mais um elemento dessa liberdade. O problema é que o novo ritmo berrava isso aos quatro ventos nos sete mares.
Kenneth Branagh faz um ministro encarregado de acabar com as rádios piratas. Para isso, procura brechas na lei. Tenta usar força bruta. Mas, o que o personagem de Branagh não sabe é que a melhor maneira de acabar com alguns tipos de subversão anti-capitalista é torná-los objetos de consumo. Vivemos numa sociedade que gira em torno da mercadoria. Em que a maioria das coisas deixa de ter valor-de-uso para tornar-se valor-de-troca. Valor-de-uso tem a ver com qualidades. Valor-de-troca, com quantidade.
Manifestações culturais, como o rock, começam a perder suas qualidades subversivas ao se tornarem moda. Ao servirem para ajudar a fazer girar o mercado capitalista do entretenimento. Ao deixar sua dimensão qualitativa ser dominada pela lógica quantitativa. O que era criatividade desafiadora fica estéril e conformista. O mesmo vale para muitas outras coisas.
Che Guevara virou garoto-propaganda há muito tempo. A arte dos primeiros anos da Revolução Russa pode ser achada em comerciais de automóvel. Muita gente acha que Cuba já teria sido derrotada pelos Estados Unidos, se o boicote econômico fosse trocado pela venda de jeans e computadores para a Ilha de Fidel. A fé já tinha sua tabela de preços fixada nas igrejas muito antes dos neopentecostais existirem. E o sexo, tão temido nos anos 1960, hoje movimenta uma indústria de bilhões de dólares no mundo todo. Um ramo econômico que aprisionou em forma de mercadoria o corpo feminino que a pílula havia libertado.
No entanto, como diz o personagem Count (Philip Seymour Hoffman), enquanto houver gente fazendo música, político nenhum vai impedir. Sempre haverá a possibilidade de continuar fabricando subversão. E o próprio rock prova isso. Não são poucas as bandas surgidas para desafiar o capitalismo nos últimos 40 anos. Do “The Clash” ao “Rage Against Machine”. Da luta contra o racismo e o fascismo ao movimento contra a invasão do Iraque. É possível continuar fazendo música contra a injustiça social, a opressão e a exploração.
O grande problema do capitalismo é que ele não pode abrir mão totalmente dos seres humanos porque depende da exploração de sua força de trabalho. E a espécie humana tem a eterna mania de desobedecer leis naturais e sociais. Para o bem e para o mal. E quando se trata de rock contra o capitalismo, é para o bem!
O ano é de 1966. O rock era considerado música perigosa. Afinal, o verbo rock, em inglês, quer dizer balançar. Rock and roll é algo como balançar e girar. Ou melhor, rebolar mesmo. É exatamente esse o movimento que quem dança rock faz. E como sabemos, movimentos com os quadris lembram o ato sexual. E sexo mais música é igual a prazer, não a reprodução da espécie. Um crime para os conservadores. Principalmente quando os maiores fãs da nova música eram jovens.
Por isso o rock foi tratado como algo extremamente subversivo quando nasceu. O novo ritmo só tocava duas horas por dia na maior rádio da Inglaterra, a BBC. Diante dessa censura não declarada, rádios que só tocavam rock começaram a surgir. A perseguição do governo britânico as jogou na ilegalidade. Para escapar à repressão, uma delas se instalou num barco. Como os piratas, ela atacava em alto mar. Longe das leis. Era a Rádio Rock.
Baseado em fatos reais, o filme de Richard Curtis conta a história dessa experiência. A produção passou despercebida por aqui, mas está nas locadoras. O elenco é ótimo: Philip Seymour Hoffman, Kenneth Branagh, Bill Nighy, January Jones, Gemma Arterton, Emma Thompson, Kenneth Branagh, Nick Frost. A história é boa e a trilha, melhor ainda. A caracterização da época também é interessante. Metade da Inglaterra, principalmente jovens e mulheres, ouvia as rádios piratas. Muitas vezes, a audição era feita escondida dos pais, maridos e patrões.
A produção surpreende ao retratar uma sociedade tão conservadora menos de 50 anos atrás. Como mostra o filme, a pílula já era bastante popular. Para o ódio da cúpula católica e conservadores em geral, libertava as mulheres de sua função reprodutiva. Dava a elas o direito de fazer sexo por prazer. O rock era só mais um elemento dessa liberdade. O problema é que o novo ritmo berrava isso aos quatro ventos nos sete mares.
Kenneth Branagh faz um ministro encarregado de acabar com as rádios piratas. Para isso, procura brechas na lei. Tenta usar força bruta. Mas, o que o personagem de Branagh não sabe é que a melhor maneira de acabar com alguns tipos de subversão anti-capitalista é torná-los objetos de consumo. Vivemos numa sociedade que gira em torno da mercadoria. Em que a maioria das coisas deixa de ter valor-de-uso para tornar-se valor-de-troca. Valor-de-uso tem a ver com qualidades. Valor-de-troca, com quantidade.
Manifestações culturais, como o rock, começam a perder suas qualidades subversivas ao se tornarem moda. Ao servirem para ajudar a fazer girar o mercado capitalista do entretenimento. Ao deixar sua dimensão qualitativa ser dominada pela lógica quantitativa. O que era criatividade desafiadora fica estéril e conformista. O mesmo vale para muitas outras coisas.
Che Guevara virou garoto-propaganda há muito tempo. A arte dos primeiros anos da Revolução Russa pode ser achada em comerciais de automóvel. Muita gente acha que Cuba já teria sido derrotada pelos Estados Unidos, se o boicote econômico fosse trocado pela venda de jeans e computadores para a Ilha de Fidel. A fé já tinha sua tabela de preços fixada nas igrejas muito antes dos neopentecostais existirem. E o sexo, tão temido nos anos 1960, hoje movimenta uma indústria de bilhões de dólares no mundo todo. Um ramo econômico que aprisionou em forma de mercadoria o corpo feminino que a pílula havia libertado.
No entanto, como diz o personagem Count (Philip Seymour Hoffman), enquanto houver gente fazendo música, político nenhum vai impedir. Sempre haverá a possibilidade de continuar fabricando subversão. E o próprio rock prova isso. Não são poucas as bandas surgidas para desafiar o capitalismo nos últimos 40 anos. Do “The Clash” ao “Rage Against Machine”. Da luta contra o racismo e o fascismo ao movimento contra a invasão do Iraque. É possível continuar fazendo música contra a injustiça social, a opressão e a exploração.
O grande problema do capitalismo é que ele não pode abrir mão totalmente dos seres humanos porque depende da exploração de sua força de trabalho. E a espécie humana tem a eterna mania de desobedecer leis naturais e sociais. Para o bem e para o mal. E quando se trata de rock contra o capitalismo, é para o bem!
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24 de ago. de 2009
Tempos de paz no paraíso da tortura
O judeu Clausewitz foge do nazismo e encontra no Brasil outro inferno. Seria uma chance de denunciar o nosso secular terrorismo de Estado. Mas, Daniel Filho desperdiça a oportunidade.
"Tempos de paz" é baseado na peça de teatro “Novas Diretrizes em Tempos de Paz”, de Bosco Brasil. Sua transformação em filme oferecia muitas possibilidades boas. O máximo a que Daniel Filho chegou foi mostrar dois talentosos atores e uma denúncia tímida da ditadura getulista.
A história se passa em 1945, no dia em que a ditadura Vargas liberta seus presos políticos. Fugindo da guerra na Europa, milhares de pessoas chegam ao Rio de Janeiro. Entre elas, está o polonês Clausewitz (Dan Stulbach). Logo que avista a bela paisagem carioca, ele repete a famosa frase do poeta russo Maiakovski: “Dizem que em algum lugar, parece que no Brasil, existe um homem feliz”. Depois, durante o interrogatório a que é submetido pelo funcionário Sigismundo (Tony Ramos), o polonês diz que aprendeu o português porque lhe parecia uma língua falada por bebês. Por gente ainda sem dentes.
Essa imagem do Brasil como paraíso, lugar de inocência e felicidade, parece ser uma constante na mente dos habitantes do Velho Mundo. Remete à famosa carta de Pero Vaz Caminha, que descreve as novas terras como um éden em que “se plantando, tudo dá”. É certo que foi escrita pouco antes da pilhagem que começou e não parou mais. Incluindo o constante estupro das nativas, transformado recentemente em turismo sexual.
Para Clausewitz, artista de teatro, o Brasil era uma promessa de doçura eterna. Onde ele lavraria a terra com suas mãos finas com a mesma facilidade com que declamava textos nos palcos da Europa. O funcionário vivido por Tony Ramos logo quebra suas ilusões. Sem bagagens e bens com que subornar os funcionários, Sigismundo está pronto a fazê-lo voltar ao velho continente. Não o fará se o recém-chegado aceitar um desafio. Fazê-lo chorar contando suas dolorosas lembranças de judeu perseguido.
Clausewitz logo descobre que arrancar lágrimas de Sigismundo é missão quase impossível. O funcionário prestou dedicados e cruéis serviços de torturador para o Estado Novo. No cumprimento do dever, chegou a aleijar as mãos do médico (Daniel Filho) que salvou a vida de sua irmã. Antes disso, foi capanga no interior gaúcho, onde cometia barbaridades ordenadas por seu padrinho.
Desse modo fica claro para o judeu que o mito do paraíso tropical brasileiro foi construído sobre uma história sangrenta. Um genocídio continuado contra índios e negros e estendido aos que ousam desafiar o poder, como os comunistas e lutadores populares em geral. Um jardim sem campos de concentração, mas com os porões lotados de vítimas do terror do Estado. Um território distante da guerra, mas entregando milhares de inocentes à paz dos cemitérios.
Se o filme traz algo de positivo é uma tímida denúncia da sangrenta ditadura de Getúlio Vargas. Foram milhares de presos e torturados pelo homem que costuma ser glorificado até por muitos setores de esquerda. Na verdade um gênio político a serviço dos poderosos. Alguém que aperfeiçoou uma máquina de morte utilizada depois pela ditadura militar e que até hoje funciona em muitas delegacias de polícia, contra pobres e negros. Um dos poucos setores do Estado brasileiro que vem mantendo elevado nível de eficiência. E pronto para ser utilizado novamente contra quem ameaçar os interesses dos que mandam.
O judeu, afinal, arranca lágrimas ao torturador. Não contando suas lembranças, mas encenando o trecho de uma peça. Poderia ser a simbolização de que a arte é tão poderosa que consegue tocar o humano escondido numa besta cruel. Mas, o filme não chega a tanto. E a presença do médico na última cena, tentando intimidar seu carrasco com o olhar, acaba de estragar tudo. Um olhar de reprovação é a punição máxima que as autoridades democráticas de plantão têm coragem de adotar contra os covardes que estiveram a serviço das ditaduras de nossa história.
O inferno tupiniquim continua queimando e sob as ordens da mesma dinastia demoníaca. Às vezes, mudam seus auxiliares. Alguns cumprem suas tarefas de bom grado. Outros, sob a sombra vergonhosa da traição. O jeito é criar condições para que um dia o conflito seja assumido abertamente pelos debaixo. E as diretrizes que passem a valer sejam as da guerra da resistência popular.
"Tempos de paz" é baseado na peça de teatro “Novas Diretrizes em Tempos de Paz”, de Bosco Brasil. Sua transformação em filme oferecia muitas possibilidades boas. O máximo a que Daniel Filho chegou foi mostrar dois talentosos atores e uma denúncia tímida da ditadura getulista.
A história se passa em 1945, no dia em que a ditadura Vargas liberta seus presos políticos. Fugindo da guerra na Europa, milhares de pessoas chegam ao Rio de Janeiro. Entre elas, está o polonês Clausewitz (Dan Stulbach). Logo que avista a bela paisagem carioca, ele repete a famosa frase do poeta russo Maiakovski: “Dizem que em algum lugar, parece que no Brasil, existe um homem feliz”. Depois, durante o interrogatório a que é submetido pelo funcionário Sigismundo (Tony Ramos), o polonês diz que aprendeu o português porque lhe parecia uma língua falada por bebês. Por gente ainda sem dentes.
Essa imagem do Brasil como paraíso, lugar de inocência e felicidade, parece ser uma constante na mente dos habitantes do Velho Mundo. Remete à famosa carta de Pero Vaz Caminha, que descreve as novas terras como um éden em que “se plantando, tudo dá”. É certo que foi escrita pouco antes da pilhagem que começou e não parou mais. Incluindo o constante estupro das nativas, transformado recentemente em turismo sexual.
Para Clausewitz, artista de teatro, o Brasil era uma promessa de doçura eterna. Onde ele lavraria a terra com suas mãos finas com a mesma facilidade com que declamava textos nos palcos da Europa. O funcionário vivido por Tony Ramos logo quebra suas ilusões. Sem bagagens e bens com que subornar os funcionários, Sigismundo está pronto a fazê-lo voltar ao velho continente. Não o fará se o recém-chegado aceitar um desafio. Fazê-lo chorar contando suas dolorosas lembranças de judeu perseguido.
Clausewitz logo descobre que arrancar lágrimas de Sigismundo é missão quase impossível. O funcionário prestou dedicados e cruéis serviços de torturador para o Estado Novo. No cumprimento do dever, chegou a aleijar as mãos do médico (Daniel Filho) que salvou a vida de sua irmã. Antes disso, foi capanga no interior gaúcho, onde cometia barbaridades ordenadas por seu padrinho.
Desse modo fica claro para o judeu que o mito do paraíso tropical brasileiro foi construído sobre uma história sangrenta. Um genocídio continuado contra índios e negros e estendido aos que ousam desafiar o poder, como os comunistas e lutadores populares em geral. Um jardim sem campos de concentração, mas com os porões lotados de vítimas do terror do Estado. Um território distante da guerra, mas entregando milhares de inocentes à paz dos cemitérios.
Se o filme traz algo de positivo é uma tímida denúncia da sangrenta ditadura de Getúlio Vargas. Foram milhares de presos e torturados pelo homem que costuma ser glorificado até por muitos setores de esquerda. Na verdade um gênio político a serviço dos poderosos. Alguém que aperfeiçoou uma máquina de morte utilizada depois pela ditadura militar e que até hoje funciona em muitas delegacias de polícia, contra pobres e negros. Um dos poucos setores do Estado brasileiro que vem mantendo elevado nível de eficiência. E pronto para ser utilizado novamente contra quem ameaçar os interesses dos que mandam.
O judeu, afinal, arranca lágrimas ao torturador. Não contando suas lembranças, mas encenando o trecho de uma peça. Poderia ser a simbolização de que a arte é tão poderosa que consegue tocar o humano escondido numa besta cruel. Mas, o filme não chega a tanto. E a presença do médico na última cena, tentando intimidar seu carrasco com o olhar, acaba de estragar tudo. Um olhar de reprovação é a punição máxima que as autoridades democráticas de plantão têm coragem de adotar contra os covardes que estiveram a serviço das ditaduras de nossa história.
O inferno tupiniquim continua queimando e sob as ordens da mesma dinastia demoníaca. Às vezes, mudam seus auxiliares. Alguns cumprem suas tarefas de bom grado. Outros, sob a sombra vergonhosa da traição. O jeito é criar condições para que um dia o conflito seja assumido abertamente pelos debaixo. E as diretrizes que passem a valer sejam as da guerra da resistência popular.
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15 de ago. de 2009
A TV na cesta básica brasileira
Há algum tempo, sabemos que existem mais aparelhos de TV nas residências brasileiras do que geladeiras. Agora, começam a chegar outros meios eletrônicos, como internete e celulares. Aumenta o cerco da vida cotidiana pelos valores capitalistas.
As pesquisas do IBGE vêm demonstrando ano após ano que há residências brasileiras que possuem aparelho de TV, mas nenhuma geladeira. Agora, outras bugigangas eletrônicas também começam a chegar. Em 01 de agosto de 2009, reportagem de O Globo, dizia que o peso dos itens de tecnologia no orçamento das famílias brasileiras vem subindo. São principalmente computadores, celulares e aparelhos de DVD.
Segundo, a reportagem de Bruno Rosa, o maior crescimento aconteceu entre as famílias de classes A e B, com ganho superior a R$ 4.807,00 mensais. Claro que as famílias das chamadas classes A e B são minoria. Mas, reportagem da revista Época de 10 de agosto destaca maior acesso dos segmentos C e D a tecnologias como celulares e computadores pessoais.
Tudo isso seria muito bom. Poderia significar uma democratização no acesso aos meios de comunicação. Não fosse por um enorme detalhe: o monopólio dos meios de comunicação e dos meios de criação de conteúdo em geral. Um setor cujo tamanho explodiu na economia e na vida social. E foi a televisão que abriu caminho. No mundo e aqui, tudo começou com ela.
Aparentemente houve duas grandes explosões de venda de televisores no Brasil. Uma, nos anos 1970. Outra, pouco depois do lançamento do Plano Real. O crédito fácil parece estar na origem dos dois momentos. Porém, da Copa Mundial de Futebol de 94 para cá a TV invadiu também os espaços públicos. Já não há restaurante ou boteco que não tenha sua tela pendurada na parede. O que pode mudar é a programação, mas sempre a cargo de alguma das grandes redes do setor, seja em sinal aberto, seja por assinatura.
Não é preciso fazer um estudo sério, para concluir que tal presença na vida cotidiana da população alterou significativamente sua visão de mundo. É muito difícil que um fato seja conhecido e discutido sem ter passado antes pelas emissoras de TV e seus programas. Quem não assiste TV tem sérias dificuldades para manter algum tipo de conversação com a maioria das pessoas. Daqui a pouco, o mesmo vai acontecer com quem não tem celular e internete.
A internete, o celular e os aparelhos de DVD são bem menos presentes na vida dos brasileiros. Apesar disso, cada um a seu modo complementa o trabalho ideológico da TV.
As promessas de ampla democracia da internete esbarram em seu pouco alcance, mas principalmente em seu domínio por grandes provedores. Sem falar, na pura e simples transposição do material dos grandes produtores de notícias e entretenimentos para a rede mundial de computadores.
Os aparelhos de DVD, por sua vez, são maciçamente utilizados para reproduzir material das mesmas grandes produtoras de filmes. Os celulares nos tornaram trabalhadores em tempo integral. Através deles, ficamos presos ao trabalho quase 24 horas por dia. Mesmo os desempregados precisam de um celular para organizar seus “bicos”.
Marx chamava a predominância da mercadoria no cotidiano capitalista de fetichismo da mercadoria. As coisas ganham vida e controlam os seres humanos. Nossa incapacidade atual de falar uns com os outros sem passar por objetos intermediários, como a TV, o celular e a internete é uma demonstração desse fenômeno.
Pessoas mais idosas devem se lembrar o que era viver sem tudo isso. O espaço do dia que sobrava depois do trabalho não estava necessariamente pautado pelos grandes meios de comunicação. Assistir ao Jornal Nacional e à novela não era um ritual obrigatório. No máximo, já havia o rádio. Mas, sem o apelo arrasador da imagem em movimento.
Claro que também eram raras as reuniões de partido ou assembléias do sindicato. No entanto, relações que envolviam solidariedade e convivência eram mais fortes. Pelo menos, criavam um ambiente de resistência à intensa competição capitalista.
Hoje a TV faz parte da cesta básica. É o que mostram as milhares de antenas de TV espetadas mesmo nos bairros mais pobres. As outras bugigangas eletrônicas ainda estão longe ganhar tanto terreno. Mas, o cerco da vida cotidiana pelos limites impostos pela visão de mundo da classe dominante é cada vez maior.
Nossa sorte é que essa visão de mundo está cheia de furos e contradições. De um lado, os meios de comunicação são obrigados a defender valores como igualdade, justiça, solidariedade, liberdade. Dizer que a organização social que temos é a melhor maneira de conquistar tais valores. Por outro lado, todos os dias acontecem fatos aos montes que desmentem tudo isso. Os próprios meios de comunicação acabam sendo obrigados a mostrar que ter dinheiro, patrimônio e boas relações com o poder está acima da liberdade e da justiça que as novelas e filmes nos ensinam a perseguir.
Cabe à luta contra-hegemônica saber explorar essas contradições. E usar os avançados meios tecnológicos em seu favor. Mas, nessa luta, acabar com o monopólio dos meios de comunicação é fundamental. A mídia empresarial é grande responsável por manter a cesta básica da maioria da população pobre em quantidade e qualidade.
As pesquisas do IBGE vêm demonstrando ano após ano que há residências brasileiras que possuem aparelho de TV, mas nenhuma geladeira. Agora, outras bugigangas eletrônicas também começam a chegar. Em 01 de agosto de 2009, reportagem de O Globo, dizia que o peso dos itens de tecnologia no orçamento das famílias brasileiras vem subindo. São principalmente computadores, celulares e aparelhos de DVD.
Segundo, a reportagem de Bruno Rosa, o maior crescimento aconteceu entre as famílias de classes A e B, com ganho superior a R$ 4.807,00 mensais. Claro que as famílias das chamadas classes A e B são minoria. Mas, reportagem da revista Época de 10 de agosto destaca maior acesso dos segmentos C e D a tecnologias como celulares e computadores pessoais.
Tudo isso seria muito bom. Poderia significar uma democratização no acesso aos meios de comunicação. Não fosse por um enorme detalhe: o monopólio dos meios de comunicação e dos meios de criação de conteúdo em geral. Um setor cujo tamanho explodiu na economia e na vida social. E foi a televisão que abriu caminho. No mundo e aqui, tudo começou com ela.
Aparentemente houve duas grandes explosões de venda de televisores no Brasil. Uma, nos anos 1970. Outra, pouco depois do lançamento do Plano Real. O crédito fácil parece estar na origem dos dois momentos. Porém, da Copa Mundial de Futebol de 94 para cá a TV invadiu também os espaços públicos. Já não há restaurante ou boteco que não tenha sua tela pendurada na parede. O que pode mudar é a programação, mas sempre a cargo de alguma das grandes redes do setor, seja em sinal aberto, seja por assinatura.
Não é preciso fazer um estudo sério, para concluir que tal presença na vida cotidiana da população alterou significativamente sua visão de mundo. É muito difícil que um fato seja conhecido e discutido sem ter passado antes pelas emissoras de TV e seus programas. Quem não assiste TV tem sérias dificuldades para manter algum tipo de conversação com a maioria das pessoas. Daqui a pouco, o mesmo vai acontecer com quem não tem celular e internete.
A internete, o celular e os aparelhos de DVD são bem menos presentes na vida dos brasileiros. Apesar disso, cada um a seu modo complementa o trabalho ideológico da TV.
As promessas de ampla democracia da internete esbarram em seu pouco alcance, mas principalmente em seu domínio por grandes provedores. Sem falar, na pura e simples transposição do material dos grandes produtores de notícias e entretenimentos para a rede mundial de computadores.
Os aparelhos de DVD, por sua vez, são maciçamente utilizados para reproduzir material das mesmas grandes produtoras de filmes. Os celulares nos tornaram trabalhadores em tempo integral. Através deles, ficamos presos ao trabalho quase 24 horas por dia. Mesmo os desempregados precisam de um celular para organizar seus “bicos”.
Marx chamava a predominância da mercadoria no cotidiano capitalista de fetichismo da mercadoria. As coisas ganham vida e controlam os seres humanos. Nossa incapacidade atual de falar uns com os outros sem passar por objetos intermediários, como a TV, o celular e a internete é uma demonstração desse fenômeno.
Pessoas mais idosas devem se lembrar o que era viver sem tudo isso. O espaço do dia que sobrava depois do trabalho não estava necessariamente pautado pelos grandes meios de comunicação. Assistir ao Jornal Nacional e à novela não era um ritual obrigatório. No máximo, já havia o rádio. Mas, sem o apelo arrasador da imagem em movimento.
Claro que também eram raras as reuniões de partido ou assembléias do sindicato. No entanto, relações que envolviam solidariedade e convivência eram mais fortes. Pelo menos, criavam um ambiente de resistência à intensa competição capitalista.
Hoje a TV faz parte da cesta básica. É o que mostram as milhares de antenas de TV espetadas mesmo nos bairros mais pobres. As outras bugigangas eletrônicas ainda estão longe ganhar tanto terreno. Mas, o cerco da vida cotidiana pelos limites impostos pela visão de mundo da classe dominante é cada vez maior.
Nossa sorte é que essa visão de mundo está cheia de furos e contradições. De um lado, os meios de comunicação são obrigados a defender valores como igualdade, justiça, solidariedade, liberdade. Dizer que a organização social que temos é a melhor maneira de conquistar tais valores. Por outro lado, todos os dias acontecem fatos aos montes que desmentem tudo isso. Os próprios meios de comunicação acabam sendo obrigados a mostrar que ter dinheiro, patrimônio e boas relações com o poder está acima da liberdade e da justiça que as novelas e filmes nos ensinam a perseguir.
Cabe à luta contra-hegemônica saber explorar essas contradições. E usar os avançados meios tecnológicos em seu favor. Mas, nessa luta, acabar com o monopólio dos meios de comunicação é fundamental. A mídia empresarial é grande responsável por manter a cesta básica da maioria da população pobre em quantidade e qualidade.
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3 de ago. de 2009
Trama Internacional poupa o verdadeiro vilão
Um filme que tem como vilão um banco poderia ter mostrado os crimes do capitalismo contra a humanidade. Ficou apenas na denúncia de alguns banqueiros maus.
Tom Twyker diz que não fez Trama Internacional pensando na atual crise capitalista. Segundo ele, as filmagens começaram bem antes do estouro da “bolha das hipotecas” nos Estados Unidos. A própria trama mostra que ele diz a verdade. Está longe de ter algo a ver com a crise.
O vilão da história é um banco internacional que financia organizações de espionagem, traficantes, mafiosos e ditadores de países pobres. Clive Owen é o agente da Interpol, Louis Salinger. Ele está em busca de provas contra o poderoso banco junto com a assistente da promotoria de Manhattan, Eleanor Whitman (Naomi Watts).
Seguindo o rastro de operações ilegais, Salinger e Whitman vão dos Estados Unidos à Turquia, passando por Alemanha e Itália. A cena mais marcante é a do tiroteio no famoso Museu Guggenheim, em Manhattan. São 15 minutos de tiros que transformam o lugar num queijo suíço. Correrias e tiros. O filme quase se reduz a esse tipo de ação.
Há um momento no filme em que um executivo do banco negocia com um militar da Libéria, país africano. O banqueiro oferece ao liberiano armas para a tomada do poder e a instalação de uma ditadura no país. O general africano pergunta quanto o banco cobraria por isso. O executivo diz que não cobraria nada porque dinheiro não é a única moeda de troca de seu banco.
Deveria ter dito que nenhum banco trabalha só com dinheiro. Aliás, nem o capitalismo funciona só com dinheiro. Funciona com capital. Que é dinheiro que se transforma em mais dinheiro. Melhor dizendo, valor-de-troca que se transforma em mais valor-de-troca. E valores-de-troca se diferenciam dos valores-de-uso exatamente por não terem uma finalidade determinada. Só existem para serem trocados.
É assim desde os tempos das primeiras atividades comerciais. Só que no capitalismo, a produção de valor-de-troca passa a dominar a vida social. É por isso que as crises capitalistas são causadas por abundância e não por escassez. Não faltam valores-de-uso. Os estoque estão cheios. Falta gente com valor-de-troca suficiente para comprar os valores-de-uso. Os bolsos estão vazios.
Esse processo de circulação tem invadido a vida humana de forma intensa nos últimos 150 anos. Quase tudo ganhou um preço. Da fé religiosa aos créditos de carbono. Ou seja, o acesso à espiritualidade e ao ar que respiramos torna-se cada vez mais uma questão de possuir valor-de-troca. Pode ser dinheiro, mas aceitam-se cartões, cheques pré-datados e ações na bolsa.
Os bancos são só parte mais aparente desse sistema todo. Afinal, são eles que cuidam da compra e da venda de dinheiro em suas mais variadas formas. No entanto, já não é possível separar bancos de empresas. Capital bancário e capital industrial estão juntos há mais de um século. Bancos têm representantes nas direções das grandes empresas para as quais emprestam dinheiro. Empresas têm seus próprios bancos e financeiras. Não há mais separação entre capital produtivo e "capital parasitário". À medida que o valor-de-troca invadiu a vida humana, espalhou seu "parasitismo".
A verdade é que para a circulação do capital pouco importa se o comércio de drogas é ilegal ou não. Ou se o fornecimento de armas é para governos de ditadores ou não. Tabaco e álcool matam mais do que cocaína e maconha, sem disparar um só tiro. Os governos dos Estados Unidos, Inglaterra e Israel são responsáveis por mais mortes violentas no planeta do que todas as ditaduras estúpidas do mundo pobre. E a produção capitalista de alimentos, plástico, automóveis está ameaçando a vida humana sem praticamente desobedecer nenhuma lei.
Transformar os bancos nos únicos vilões é um bom negócio para o capitalismo. Com isso, parece que um dia o sistema pode funcionar bem. O problema é que o filme de Twyker nem isso faz. Os bandidos são apenas alguns banqueiros maus. O que poderia ser uma denúncia do próprio funcionamento do capitalismo vira só uma história sobre homens maus usando um banco para fins criminosos. O verdadeiro vilão, o sistema, escapa sem arranhões. Talvez, porque seu funcionamento torne possível obras como Trama Internacional. E vice-versa...
Tom Twyker diz que não fez Trama Internacional pensando na atual crise capitalista. Segundo ele, as filmagens começaram bem antes do estouro da “bolha das hipotecas” nos Estados Unidos. A própria trama mostra que ele diz a verdade. Está longe de ter algo a ver com a crise.
O vilão da história é um banco internacional que financia organizações de espionagem, traficantes, mafiosos e ditadores de países pobres. Clive Owen é o agente da Interpol, Louis Salinger. Ele está em busca de provas contra o poderoso banco junto com a assistente da promotoria de Manhattan, Eleanor Whitman (Naomi Watts).
Seguindo o rastro de operações ilegais, Salinger e Whitman vão dos Estados Unidos à Turquia, passando por Alemanha e Itália. A cena mais marcante é a do tiroteio no famoso Museu Guggenheim, em Manhattan. São 15 minutos de tiros que transformam o lugar num queijo suíço. Correrias e tiros. O filme quase se reduz a esse tipo de ação.
Há um momento no filme em que um executivo do banco negocia com um militar da Libéria, país africano. O banqueiro oferece ao liberiano armas para a tomada do poder e a instalação de uma ditadura no país. O general africano pergunta quanto o banco cobraria por isso. O executivo diz que não cobraria nada porque dinheiro não é a única moeda de troca de seu banco.
Deveria ter dito que nenhum banco trabalha só com dinheiro. Aliás, nem o capitalismo funciona só com dinheiro. Funciona com capital. Que é dinheiro que se transforma em mais dinheiro. Melhor dizendo, valor-de-troca que se transforma em mais valor-de-troca. E valores-de-troca se diferenciam dos valores-de-uso exatamente por não terem uma finalidade determinada. Só existem para serem trocados.
É assim desde os tempos das primeiras atividades comerciais. Só que no capitalismo, a produção de valor-de-troca passa a dominar a vida social. É por isso que as crises capitalistas são causadas por abundância e não por escassez. Não faltam valores-de-uso. Os estoque estão cheios. Falta gente com valor-de-troca suficiente para comprar os valores-de-uso. Os bolsos estão vazios.
Esse processo de circulação tem invadido a vida humana de forma intensa nos últimos 150 anos. Quase tudo ganhou um preço. Da fé religiosa aos créditos de carbono. Ou seja, o acesso à espiritualidade e ao ar que respiramos torna-se cada vez mais uma questão de possuir valor-de-troca. Pode ser dinheiro, mas aceitam-se cartões, cheques pré-datados e ações na bolsa.
Os bancos são só parte mais aparente desse sistema todo. Afinal, são eles que cuidam da compra e da venda de dinheiro em suas mais variadas formas. No entanto, já não é possível separar bancos de empresas. Capital bancário e capital industrial estão juntos há mais de um século. Bancos têm representantes nas direções das grandes empresas para as quais emprestam dinheiro. Empresas têm seus próprios bancos e financeiras. Não há mais separação entre capital produtivo e "capital parasitário". À medida que o valor-de-troca invadiu a vida humana, espalhou seu "parasitismo".
A verdade é que para a circulação do capital pouco importa se o comércio de drogas é ilegal ou não. Ou se o fornecimento de armas é para governos de ditadores ou não. Tabaco e álcool matam mais do que cocaína e maconha, sem disparar um só tiro. Os governos dos Estados Unidos, Inglaterra e Israel são responsáveis por mais mortes violentas no planeta do que todas as ditaduras estúpidas do mundo pobre. E a produção capitalista de alimentos, plástico, automóveis está ameaçando a vida humana sem praticamente desobedecer nenhuma lei.
Transformar os bancos nos únicos vilões é um bom negócio para o capitalismo. Com isso, parece que um dia o sistema pode funcionar bem. O problema é que o filme de Twyker nem isso faz. Os bandidos são apenas alguns banqueiros maus. O que poderia ser uma denúncia do próprio funcionamento do capitalismo vira só uma história sobre homens maus usando um banco para fins criminosos. O verdadeiro vilão, o sistema, escapa sem arranhões. Talvez, porque seu funcionamento torne possível obras como Trama Internacional. E vice-versa...
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23 de jul. de 2009
Turma da Mônica, jovem e consumista
Mônica e sua turma ficaram adolescentes e agradaram. É grande sucesso de vendas. Mas, continua mostrando uma sociedade que existe para poucos.
Em outubro de 2008, Mauricio de Souza completou 50 anos de carreira. Mostrou que continua talentoso e com ótimo faro para negócios. Lançou a Turma da Mônica Jovem. Renovou seu grande sucesso nacional e internacional. A primeira edição vendeu 200 mil exemplares. Os outros dois números venderam, juntos, 500 mil. A publicação ficou várias semanas entre as mais vendidas.
As razões são muitas. O estilo mangá, inspirado nos quadrinhos japoneses é uma delas. Trata-se de uma linguagem que caiu no gosto das crianças e adolescentes no mundo todo. A excelente equipe de roteiristas é outro trunfo há muitos anos. As histórias são dinâmicas, engraçadas, ligadas aos modismos do momento e em linguagem idêntica àquela falada pela maioria dos jovens.
As devidas adaptações foram feitas. E elas revelam muita coisa. Cascão agora toma banho. Sua atração pela sujeira transferiu-se para um jeitão bagunceiro e simpático. Cebolinha só troca letras quando fica nervoso. O que dá um certo charme ao homem em que ele vai se tornando. Magali continua faminta, mas segura a gula para cuidar do corpo. Mônica ainda é forte e mandona, só que sua personalidade a transformou numa líder.
Ou seja, as manias e características da turma mirim não a tornaram um bando de jovens problemáticos. Magali teria tudo para sofrer de obesidade mórbida. Cascão poderia ser o cara que não vai bem na escola e anda em más companhias. Cebolinha poderia transformar-se num jovem tímido e solitário. Mônica, uma pessoa autoritária e insuportável.
As preocupações com consumo também estão mais presentes. Nem tanto nas tramas. Passeios a lojas e shoppings até aparecem. Mas é mais sutil que isso. Continuam os episódios que mostram a luta do bem contra o mal e as confusões envolvendo situações cotidianas. A turma infantil usava sempre as mesmas roupas simples.
Já, a tribo adolescente veste roupas diferentes e bonitas em suas aventuras. Não é preciso convidar diretamente ao consumo. Basta mostrar que o padrão de beleza e dignidade que vale depende mais daquilo que se tem e não daquilo se é ou faz. Combater o mal e resolver os problemas do dia-a-dia, tudo bem. Mas com roupas de grife.
Claro que Mauricio e sua equipe não iriam retratar Mônica e seus amigos como jovens problemáticos. Não seria uma aposta feliz em termos de mercado. E o apelo ao consumo tem tudo a ver com um empreendimento que sempre soube vender sua marca. Em termos de qualidade de produção e capacidade de vendas, Maurício de Souza é o Walt Disney brasileiro.
Desde seus primeiros trabalhos em revista em quadrinhos, Mauricio soube se adequar ao mercado que nascia. Crescendo junto com a urbanização da sociedade brasileira. Acompanhando a ampliação da dimensão do consumo na sociedade. Beneficiando-se de uma expansão da indústria editorial que praticamente o tornou o único grande produtor nacional de quadrinhos. Um gênio criativo e comercial, sem dúvida.
Mas para chegar tão longe, sua obra só podia vender uma visão conformista da sociedade. O fato é que a Turma da Mônica sempre retratou uma realidade que nunca foi a da maioria das crianças e adolescentes. O bairro do Limoeiro não é rico, mas não é favela, nem periferia pobre. Quase toda a turma é formada por crianças brancas. Elas estudam em escolas bem arrumadas e contam com lazer e diversão. Vão a médicos e dentistas sem maiores dificuldades. Pra completar, Cascão, o garoto bom de bola e que não gosta de tomar banho, tem todo jeito de ser negro.
Não se trata de considerar Maurício um racista e sua equipe um bando de conservadores. No entanto, o mercado impõe condições duras para o sucesso. Não é preciso mais do que ficar no nível do senso comum para fazer o jogo dos poderosos. Muitas vezes uma certa crítica social aparece nas histórias. O problema é que isso é muito pouco em uma das sociedades mais injustas do planeta. É muito mais caridade que denúncia.
A verdade é que a turminha da Mônica tem sua parte de responsabilidade na manutenção da sociedade brasileira. Agora, ela se atualizou e o sucesso continua. Até porque as crianças e adolescentes têm cada vez mais poder nas decisões sobre o que a família consome. Infelizmente, é isso que acaba restando. Ensinar jovens e crianças a consumir, mesmo que isso lhes custe ficar cada vez mais cegos aos problemas sociais que as cercam.
Leia também:
Superman e Stálin, em defesa do capitalismo
Asterix ajuda a entender o capitalismo
Em outubro de 2008, Mauricio de Souza completou 50 anos de carreira. Mostrou que continua talentoso e com ótimo faro para negócios. Lançou a Turma da Mônica Jovem. Renovou seu grande sucesso nacional e internacional. A primeira edição vendeu 200 mil exemplares. Os outros dois números venderam, juntos, 500 mil. A publicação ficou várias semanas entre as mais vendidas.
As razões são muitas. O estilo mangá, inspirado nos quadrinhos japoneses é uma delas. Trata-se de uma linguagem que caiu no gosto das crianças e adolescentes no mundo todo. A excelente equipe de roteiristas é outro trunfo há muitos anos. As histórias são dinâmicas, engraçadas, ligadas aos modismos do momento e em linguagem idêntica àquela falada pela maioria dos jovens.
As devidas adaptações foram feitas. E elas revelam muita coisa. Cascão agora toma banho. Sua atração pela sujeira transferiu-se para um jeitão bagunceiro e simpático. Cebolinha só troca letras quando fica nervoso. O que dá um certo charme ao homem em que ele vai se tornando. Magali continua faminta, mas segura a gula para cuidar do corpo. Mônica ainda é forte e mandona, só que sua personalidade a transformou numa líder.
Ou seja, as manias e características da turma mirim não a tornaram um bando de jovens problemáticos. Magali teria tudo para sofrer de obesidade mórbida. Cascão poderia ser o cara que não vai bem na escola e anda em más companhias. Cebolinha poderia transformar-se num jovem tímido e solitário. Mônica, uma pessoa autoritária e insuportável.
As preocupações com consumo também estão mais presentes. Nem tanto nas tramas. Passeios a lojas e shoppings até aparecem. Mas é mais sutil que isso. Continuam os episódios que mostram a luta do bem contra o mal e as confusões envolvendo situações cotidianas. A turma infantil usava sempre as mesmas roupas simples.
Já, a tribo adolescente veste roupas diferentes e bonitas em suas aventuras. Não é preciso convidar diretamente ao consumo. Basta mostrar que o padrão de beleza e dignidade que vale depende mais daquilo que se tem e não daquilo se é ou faz. Combater o mal e resolver os problemas do dia-a-dia, tudo bem. Mas com roupas de grife.
Claro que Mauricio e sua equipe não iriam retratar Mônica e seus amigos como jovens problemáticos. Não seria uma aposta feliz em termos de mercado. E o apelo ao consumo tem tudo a ver com um empreendimento que sempre soube vender sua marca. Em termos de qualidade de produção e capacidade de vendas, Maurício de Souza é o Walt Disney brasileiro.
Desde seus primeiros trabalhos em revista em quadrinhos, Mauricio soube se adequar ao mercado que nascia. Crescendo junto com a urbanização da sociedade brasileira. Acompanhando a ampliação da dimensão do consumo na sociedade. Beneficiando-se de uma expansão da indústria editorial que praticamente o tornou o único grande produtor nacional de quadrinhos. Um gênio criativo e comercial, sem dúvida.
Mas para chegar tão longe, sua obra só podia vender uma visão conformista da sociedade. O fato é que a Turma da Mônica sempre retratou uma realidade que nunca foi a da maioria das crianças e adolescentes. O bairro do Limoeiro não é rico, mas não é favela, nem periferia pobre. Quase toda a turma é formada por crianças brancas. Elas estudam em escolas bem arrumadas e contam com lazer e diversão. Vão a médicos e dentistas sem maiores dificuldades. Pra completar, Cascão, o garoto bom de bola e que não gosta de tomar banho, tem todo jeito de ser negro.
Não se trata de considerar Maurício um racista e sua equipe um bando de conservadores. No entanto, o mercado impõe condições duras para o sucesso. Não é preciso mais do que ficar no nível do senso comum para fazer o jogo dos poderosos. Muitas vezes uma certa crítica social aparece nas histórias. O problema é que isso é muito pouco em uma das sociedades mais injustas do planeta. É muito mais caridade que denúncia.
A verdade é que a turminha da Mônica tem sua parte de responsabilidade na manutenção da sociedade brasileira. Agora, ela se atualizou e o sucesso continua. Até porque as crianças e adolescentes têm cada vez mais poder nas decisões sobre o que a família consome. Infelizmente, é isso que acaba restando. Ensinar jovens e crianças a consumir, mesmo que isso lhes custe ficar cada vez mais cegos aos problemas sociais que as cercam.
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10 de jul. de 2009
Jean Charles é correto, mas sua denúncia é limitada
Henrique Goldman fez um bom filme sobre a morte do jovem brasileiro, em Londres. Serve como denúncia. Mas, poderia ter deixado mais claro o papel do terrorismo de Estado e da intolerância racial.
Jean Charles é um filme bem feito. Realista, com o ritmo certo, roteiro redondo e bons atores. No elenco, destacam-se o sempre talentoso Selton Mello no papel-título e Luis Miranda, como Alex. O final do filme deixa claro quanta injustiça e covardia envolveram o caso. O que não fica tão evidente é o papel do Estado e do conservadorismo da sociedade inglesa em toda a tragédia.
O diretor optou corretamente por retratar Jean Charles tal como ele devia ser. Um jovem vindo de um país periférico, de família pobre, se virando para sobreviver em uma sociedade muito diferente da sua e pouco amigável em relação a estrangeiros. Nesse meio, Jean Charles usa todas as suas habilidades para se dar bem. É o caso da cena inicial em que ele mente descaradamente para conseguir o visto de entrada para sua prima. É o caso da traição que comete contra seu empregador e amigo. Para não falar da confusão que criou com os passaportes dos colegas de trabalho.
A seu jeito, o próprio Jean Charles explica a razão maior para isso tudo: “o sistema é bruto”. As dificuldades para chegar e se instalar em um país europeu considerado rico são enormes. Os recém-chegados são praticamente empurrados para a ilegalidade e para a utilização de expedientes pouco éticos. Ao mesmo tempo, há tolerância suficiente para que os patrões locais se aproveitem da situação e explorem a força-de-trabalho barata de pessoas com medo de ter sua condição irregular descoberta.
É a cara da globalização capitalista. A circulação de mercadorias é muito mais livre que a de seres humanos. E só fica menos complicada se as pessoas forem reduzidas a algo que deveria ser apenas parte delas: a força-de-trabalho.
E isso tudo se agravou depois dos ataques às Torres Gêmeas. Mais do que nunca, os que têm o cabelo crespo, usam turbante ou um véu, tornaram-se alvo fácil para todo tipo de ofensas. É o que mostra o filme, quando o cozinheiro italiano cospe nos sanduíches antes de servi-los a uma família com roupas muçulmanas.
Em alguns momentos, a obra de Goldman mostra toda essa brutalidade. Mas, não aborda, por exemplo, a dura escolha que, freqüentemente, se impõe a muitos imigrantes pobres que moram no chamado “Primeiro Mundo”.
Por um lado, há imigrantes que optam por permanecer entre seus semelhantes. Às vezes, há bairros inteiros em que vivem pessoas da mesma origem nacional. Formam comunidades em torno dos valores e hábitos que compartilham. Algo que aparece claramente quando os personagens do filme assistem a um programa de Raul Gil e vão a um show de Sidney Magal. Tudo isso lhes dá uma sensação de segurança e conforto. Mas, os afasta ainda mais dos nativos, de sua língua e costumes.
Por outro lado, há os que conseguem se integrar à vida social local. Começam a dominar a língua, a cultura e os hábitos do país anfitrião. Fazem amigos, conseguem empregos formais, casam, têm filhos. Mas, o preço é alto. As chances de receber ataques preconceituosos e racistas quando menos esperam são grandes. E eles podem vir de sogros, cunhados, colegas de trabalho, colegas de escola dos filhos etc. Ao mesmo tempo, também podem ser tratados como traidores pela comunidade de seus conterrâneos.
A encruzilhada entre esses dois caminhos parece estar simbolizada no nome que o personagem principal recebeu de seus pais. Menezes de família, mas Jean Charles para fazer fortuna no estrangeiro. Este aspecto o filme não abordou, apesar de dar sinais de que o personagem de Selton Mello pretendia entrar num mundo em que seu nome de batismo tivesse mais importância que seu sobrenome. O assassinato covarde no vagão do metrô acabou sendo uma demonstração bem exagerada de que conquistar algo assim é muito difícil.
Outra dimensão que mal aparece no filme é a natureza abertamente racista das operações do aparelho repressivo britânico. Somente no final, um manifestante faz essa afirmação. Mas é pouco diante da brutalidade da morte de Jean Charles.
A ausência elementos mais esclarecedores pode dar margem a interpretações que justifiquem o que aconteceu. Não em relação ao personagem principal, diretamente, mas ao que ele representa. Jean Charles era estrangeiro, nascido no “Terceiro Mundo”, malandro e ambicioso. Não era um terrorista. Dificilmente alguém diria que merecia a morte que teve. Mas, pertencia a uma parte da população cuja conduta é desaprovada por puro preconceito. E isso é o bastante para torná-la alvo fácil da violência policial. A conclusão conservadora diria que é essa parte da população que deve mudar sua forma de agir e não a polícia.
A possibilidade de que seja esta a moral da história deduzida pelo público é grande. E é alimentada pelos racismos espalhados pelo planeta. Não apenas contra estrangeiros e não brancos. Há também os preconceitos regionais, como é o caso de nordestinos no Brasil. Uma parcela da população brasileira que muitas vezes é tratada como estrangeira dentro de seu país. Somente levando em conta o clima de enorme intolerância em que vivemos, é possível apontar os limites de Jean Charles, o filme.
Jean Charles é um filme bem feito. Realista, com o ritmo certo, roteiro redondo e bons atores. No elenco, destacam-se o sempre talentoso Selton Mello no papel-título e Luis Miranda, como Alex. O final do filme deixa claro quanta injustiça e covardia envolveram o caso. O que não fica tão evidente é o papel do Estado e do conservadorismo da sociedade inglesa em toda a tragédia.
O diretor optou corretamente por retratar Jean Charles tal como ele devia ser. Um jovem vindo de um país periférico, de família pobre, se virando para sobreviver em uma sociedade muito diferente da sua e pouco amigável em relação a estrangeiros. Nesse meio, Jean Charles usa todas as suas habilidades para se dar bem. É o caso da cena inicial em que ele mente descaradamente para conseguir o visto de entrada para sua prima. É o caso da traição que comete contra seu empregador e amigo. Para não falar da confusão que criou com os passaportes dos colegas de trabalho.
A seu jeito, o próprio Jean Charles explica a razão maior para isso tudo: “o sistema é bruto”. As dificuldades para chegar e se instalar em um país europeu considerado rico são enormes. Os recém-chegados são praticamente empurrados para a ilegalidade e para a utilização de expedientes pouco éticos. Ao mesmo tempo, há tolerância suficiente para que os patrões locais se aproveitem da situação e explorem a força-de-trabalho barata de pessoas com medo de ter sua condição irregular descoberta.
É a cara da globalização capitalista. A circulação de mercadorias é muito mais livre que a de seres humanos. E só fica menos complicada se as pessoas forem reduzidas a algo que deveria ser apenas parte delas: a força-de-trabalho.
E isso tudo se agravou depois dos ataques às Torres Gêmeas. Mais do que nunca, os que têm o cabelo crespo, usam turbante ou um véu, tornaram-se alvo fácil para todo tipo de ofensas. É o que mostra o filme, quando o cozinheiro italiano cospe nos sanduíches antes de servi-los a uma família com roupas muçulmanas.
Em alguns momentos, a obra de Goldman mostra toda essa brutalidade. Mas, não aborda, por exemplo, a dura escolha que, freqüentemente, se impõe a muitos imigrantes pobres que moram no chamado “Primeiro Mundo”.
Por um lado, há imigrantes que optam por permanecer entre seus semelhantes. Às vezes, há bairros inteiros em que vivem pessoas da mesma origem nacional. Formam comunidades em torno dos valores e hábitos que compartilham. Algo que aparece claramente quando os personagens do filme assistem a um programa de Raul Gil e vão a um show de Sidney Magal. Tudo isso lhes dá uma sensação de segurança e conforto. Mas, os afasta ainda mais dos nativos, de sua língua e costumes.
Por outro lado, há os que conseguem se integrar à vida social local. Começam a dominar a língua, a cultura e os hábitos do país anfitrião. Fazem amigos, conseguem empregos formais, casam, têm filhos. Mas, o preço é alto. As chances de receber ataques preconceituosos e racistas quando menos esperam são grandes. E eles podem vir de sogros, cunhados, colegas de trabalho, colegas de escola dos filhos etc. Ao mesmo tempo, também podem ser tratados como traidores pela comunidade de seus conterrâneos.
A encruzilhada entre esses dois caminhos parece estar simbolizada no nome que o personagem principal recebeu de seus pais. Menezes de família, mas Jean Charles para fazer fortuna no estrangeiro. Este aspecto o filme não abordou, apesar de dar sinais de que o personagem de Selton Mello pretendia entrar num mundo em que seu nome de batismo tivesse mais importância que seu sobrenome. O assassinato covarde no vagão do metrô acabou sendo uma demonstração bem exagerada de que conquistar algo assim é muito difícil.
Outra dimensão que mal aparece no filme é a natureza abertamente racista das operações do aparelho repressivo britânico. Somente no final, um manifestante faz essa afirmação. Mas é pouco diante da brutalidade da morte de Jean Charles.
A ausência elementos mais esclarecedores pode dar margem a interpretações que justifiquem o que aconteceu. Não em relação ao personagem principal, diretamente, mas ao que ele representa. Jean Charles era estrangeiro, nascido no “Terceiro Mundo”, malandro e ambicioso. Não era um terrorista. Dificilmente alguém diria que merecia a morte que teve. Mas, pertencia a uma parte da população cuja conduta é desaprovada por puro preconceito. E isso é o bastante para torná-la alvo fácil da violência policial. A conclusão conservadora diria que é essa parte da população que deve mudar sua forma de agir e não a polícia.
A possibilidade de que seja esta a moral da história deduzida pelo público é grande. E é alimentada pelos racismos espalhados pelo planeta. Não apenas contra estrangeiros e não brancos. Há também os preconceitos regionais, como é o caso de nordestinos no Brasil. Uma parcela da população brasileira que muitas vezes é tratada como estrangeira dentro de seu país. Somente levando em conta o clima de enorme intolerância em que vivemos, é possível apontar os limites de Jean Charles, o filme.
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16 de jun. de 2009
Escondendo os demônios da religião e da ciência
Anjos e demônios, de Dan Brown, destaca os conflitos entre religião e ciência. Seria muito melhor se mostrasse como as instituições que controlam essas duas áreas sabem se unir quando se trata de defender os interesses dos poderosos.
Em 2006, Ron Howard já havia feito a adaptação de outro livro de Brown, O Código da Vinci. A trama defendia a teoria de que Maria Madalena foi mulher de Jesus e com ele teve filhos. O Vaticano tentou boicotar a produção, mas só conseguiu chamar mais atenção para o filme. A arrecadação das bilheterias chegou a 760 milhões de dólares.
A cúpula católica não se manifestou sobre Anjos e Demônios. Mas, o silêncio talvez não tenha ocorrido apenas devido ao fracasso anterior. O fato é que a imagem da instituição papal sai sem maiores manchas dessa nova história contada pela produção de Howard.
O filme começa com a morte de João Paulo 2º e a eleição do papa que vai sucedê-lo. Quatro cardeais são seqüestrados pelos Illuminati (Iluminados). Trata-se de uma organização secreta fundada ainda nos tempos da Idade Média. Seus integrantes seriam cientistas em busca de vingança. Uma resposta às perseguições que a Igreja Católica faz contra as atividades científicas há séculos.
O objetivo era matar quatro cardeais e explodir uma bomba que arrasaria boa parte do Vaticano. A tal bomba não passa de algumas partículas de antimatéria obtidas num super-acelerador atômico. Se elas entrarem em contato com a matéria comum, provocariam uma explosão equivalente à de uma bomba atômica..
A missão do herói, Robert Langdon (Tom Hanks) é ajudar a salvar os cardeais e desarmar a bomba. Sua presença não é bem-vinda pelos poderosos cardeais. Afinal, ele é responsável pela ampla divulgação da teoria sobre Maria Madalena. Por outro lado, como é um gênio da simbologia, Langdon saberá decifrar as pistas deixadas pelos Illuminati.
Como se vê, o enredo mostra a forte oposição entre ciência e religião. Realmente, o Vaticano sempre questionou avanços científicos que pudessem colocar em dúvida a fé católica. Um exemplo famoso é a recusa da teoria da evolução das espécies. Somente em setembro de 2008, quase 150 anos depois da divulgação do trabalho de Darwin, a cúpula do catolicismo romano admitiu a correção de sua teoria.
Mas, há posturas da Igreja que têm conseqüências mais graves e imediatas. É o caso dos ataques do papa ao uso de preservativos para combater doenças sexualmente transmissíveis. Algo que pode causar sérios prejuízos à saúde de milhões de católicos que acreditam no mito do papa infalível.
Por outro lado, nada disso autoriza a ciência a se enfiar confortavelmente no papel de anjo. A neutralidade do trabalho científico é um mito que só não é tão velho quanto as idéias da cúpula católica. Pra começar, é só dar uma olhada em volta. A vida humana está seriamente ameaçada de extinção. E os chamados “avanços científicos” têm grande responsabilidade nisso. Toda a agressão ambiental cometida pelas grandes empresas só é possível graças a pesados investimentos em pesquisas feitas nas universidades e nos laboratórios industriais.
Além disso, há casos em que a atividade científica está descaradamente voltada para o lucro. A indústria farmacêutica é um exemplo. Milhões de pessoas pobres morrem todos os anos no mundo porque não podem pagar os altos preços dos remédios vendidos pelos grandes laboratórios. O principal objetivo da indústria farmacêutica não é produzir remédios para curar ou evitar doenças. Seu objetivo maior é ganhar dinheiro fazendo isso. O resto é detalhe.
Ciência e religião são duas formas com que o ser humano tenta explicar o universo e seu lugar nele. É natural que haja divergências entre elas, pois partem de pontos de vista diferentes. Mas, trata-se de um debate legítimo e importante. Os problemas começam quando ciência e religião passam a ser usadas para justificar a dominação e a exploração de uma parte da sociedade pela outra. Geralmente, isso acontece quando são dominadas por grandes instituições.
Desde que a sociedade de classes passou a existir, as instituições sociais tendem a se aliar à classe dominante. Grande parte de seus dirigentes tem como objetivo maior fazer parte do grupo socialmente privilegiado.
As disputas envolvendo as igrejas entre si ou com outras áreas, como a academia, são reais e muito duras. Porém, elas têm pouco a ver com a busca pela revelação divina ou pela certeza científica absoluta. É muito mais uma briga para conquistar influência social e poder político e econômico.
Claro que nem Howard nem Brown pretendiam fazer esse debate. Mas, o final do filme dá a entender que o problema do Vaticano não é sua estrutura autoritária, conservadora, repressora. O problema são só alguns sacerdotes mal-intencionados no meio de bondosos cardeais e bispos. A moral do filme é a de que as diferenças entre ciência e religião podem ser superadas em nome da defesa do bem comum.
O fato é que o cinema comercial também tem seu papel institucional: ajudar a manter a ordem atual. Faz parte disso mostrar anjos e demônios se entendendo e esconder aquilo que realmente os une. E o que é capaz de unir as cúpulas da academia e das igrejas é a manutenção da atual sociedade, injusta e destruidora da vida.
Em 2006, Ron Howard já havia feito a adaptação de outro livro de Brown, O Código da Vinci. A trama defendia a teoria de que Maria Madalena foi mulher de Jesus e com ele teve filhos. O Vaticano tentou boicotar a produção, mas só conseguiu chamar mais atenção para o filme. A arrecadação das bilheterias chegou a 760 milhões de dólares.
A cúpula católica não se manifestou sobre Anjos e Demônios. Mas, o silêncio talvez não tenha ocorrido apenas devido ao fracasso anterior. O fato é que a imagem da instituição papal sai sem maiores manchas dessa nova história contada pela produção de Howard.
O filme começa com a morte de João Paulo 2º e a eleição do papa que vai sucedê-lo. Quatro cardeais são seqüestrados pelos Illuminati (Iluminados). Trata-se de uma organização secreta fundada ainda nos tempos da Idade Média. Seus integrantes seriam cientistas em busca de vingança. Uma resposta às perseguições que a Igreja Católica faz contra as atividades científicas há séculos.
O objetivo era matar quatro cardeais e explodir uma bomba que arrasaria boa parte do Vaticano. A tal bomba não passa de algumas partículas de antimatéria obtidas num super-acelerador atômico. Se elas entrarem em contato com a matéria comum, provocariam uma explosão equivalente à de uma bomba atômica..
A missão do herói, Robert Langdon (Tom Hanks) é ajudar a salvar os cardeais e desarmar a bomba. Sua presença não é bem-vinda pelos poderosos cardeais. Afinal, ele é responsável pela ampla divulgação da teoria sobre Maria Madalena. Por outro lado, como é um gênio da simbologia, Langdon saberá decifrar as pistas deixadas pelos Illuminati.
Como se vê, o enredo mostra a forte oposição entre ciência e religião. Realmente, o Vaticano sempre questionou avanços científicos que pudessem colocar em dúvida a fé católica. Um exemplo famoso é a recusa da teoria da evolução das espécies. Somente em setembro de 2008, quase 150 anos depois da divulgação do trabalho de Darwin, a cúpula do catolicismo romano admitiu a correção de sua teoria.
Mas, há posturas da Igreja que têm conseqüências mais graves e imediatas. É o caso dos ataques do papa ao uso de preservativos para combater doenças sexualmente transmissíveis. Algo que pode causar sérios prejuízos à saúde de milhões de católicos que acreditam no mito do papa infalível.
Por outro lado, nada disso autoriza a ciência a se enfiar confortavelmente no papel de anjo. A neutralidade do trabalho científico é um mito que só não é tão velho quanto as idéias da cúpula católica. Pra começar, é só dar uma olhada em volta. A vida humana está seriamente ameaçada de extinção. E os chamados “avanços científicos” têm grande responsabilidade nisso. Toda a agressão ambiental cometida pelas grandes empresas só é possível graças a pesados investimentos em pesquisas feitas nas universidades e nos laboratórios industriais.
Além disso, há casos em que a atividade científica está descaradamente voltada para o lucro. A indústria farmacêutica é um exemplo. Milhões de pessoas pobres morrem todos os anos no mundo porque não podem pagar os altos preços dos remédios vendidos pelos grandes laboratórios. O principal objetivo da indústria farmacêutica não é produzir remédios para curar ou evitar doenças. Seu objetivo maior é ganhar dinheiro fazendo isso. O resto é detalhe.
Ciência e religião são duas formas com que o ser humano tenta explicar o universo e seu lugar nele. É natural que haja divergências entre elas, pois partem de pontos de vista diferentes. Mas, trata-se de um debate legítimo e importante. Os problemas começam quando ciência e religião passam a ser usadas para justificar a dominação e a exploração de uma parte da sociedade pela outra. Geralmente, isso acontece quando são dominadas por grandes instituições.
Desde que a sociedade de classes passou a existir, as instituições sociais tendem a se aliar à classe dominante. Grande parte de seus dirigentes tem como objetivo maior fazer parte do grupo socialmente privilegiado.
As disputas envolvendo as igrejas entre si ou com outras áreas, como a academia, são reais e muito duras. Porém, elas têm pouco a ver com a busca pela revelação divina ou pela certeza científica absoluta. É muito mais uma briga para conquistar influência social e poder político e econômico.
Claro que nem Howard nem Brown pretendiam fazer esse debate. Mas, o final do filme dá a entender que o problema do Vaticano não é sua estrutura autoritária, conservadora, repressora. O problema são só alguns sacerdotes mal-intencionados no meio de bondosos cardeais e bispos. A moral do filme é a de que as diferenças entre ciência e religião podem ser superadas em nome da defesa do bem comum.
O fato é que o cinema comercial também tem seu papel institucional: ajudar a manter a ordem atual. Faz parte disso mostrar anjos e demônios se entendendo e esconder aquilo que realmente os une. E o que é capaz de unir as cúpulas da academia e das igrejas é a manutenção da atual sociedade, injusta e destruidora da vida.
26 de mai. de 2009
Star Trek: a jornada parou no meio do caminho
A série Jornada nas Estrelas denunciava injustiças e preconceitos. Mas, jamais a ordem social que os produz. Por isso, sempre ficou no meio do caminho. O novo filme de J.J. Abrams quase dá meia-volta.
Jornada nas Estrelas é uma marca de grande sucesso na ficção científica do cinema e da TV. O seriado chegou à TV em 1966. O cenário americano da época incluía a Guerra do Vietnam, a Guerra Fria, a luta contra o racismo, um movimento feminista cada vez mais forte, uma juventude contestadora e, claro, a corrida espacial entre Estados Unidos e União Soviética.
Gene Roddenberry criou a série de olho em tudo isso. A espaçonave de Kirk voava pelo futuro, mas seus episódios falavam de temas muito presentes. O nome Enterprise batizou vários navios de guerra americanos. A nave tinha como missão “buscar novas formas de vida, novas civilizações”. Sempre com objetivos pacíficos. Em plena Guerra Fria, o aspecto militar só aparecia em segundo plano.
Era o auge da luta pelos direitos civis para os negros. A tripulação comandada por Kirk incluía uma oficial negra eficiente e com personalidade. Era a tenente Uhura, cujo nome, em Suahili, quer dizer “Liberdade”. Um agrado para a causa dos negros e para a luta feminista.
Em um dos episódios, os habitantes de um planeta estão em guerra. Todos eles têm metade do corpo negra e a outra branca. Mas, os que são negros no lado esquerdo desprezam os que são brancos do mesmo lado. Este é o motivo da guerra. Kirk e sua tripulação não conseguem convencê-los do absurdo dessa situação. Eles acabam se destruindo, transformando o episódio numa condenação à intolerância racial.
A Enterprise está a serviço da Federação dos Planetas Unidos, “uma organização política econômica, social e cultural fundamentada no conceito da diversidade”. Por isso, a série deve ter sido a primeira a mostrar a convivência pacífica e tolerante entre seres de espécies e planetas totalmente diferentes. Entre suas rígidas regras está a primeira diretriz. Ela proíbe a interferência em outras civilizações, seja política e ideológica, seja como mera presença física. Uma espécie de respeito às culturas jamais observado pelos impérios em geral.
Por outro lado, toda essa boa vontade era mal engolida pelos executivos da NBC, rede que lançou o seriado. Muitos episódios com temas radicais ficaram moderados antes de ir ao ar. Essas dificuldades e o medo de perder audiência mais conservadora, limitaram as possibilidades de denúncia social da série.
Todas as mulheres da tripulação vestiam mini-saias. A maioria fazia o gênero “loira burra” e dificilmente ocupava postos de comando. Reinava a ordem masculina, mesmo entre os alienígenas. Ao mesmo tempo, os vilões mais tradicionais eram os Klingons. Tinham a pele escura e, podiam ser facilmente confundidos com povos considerados selvagens pela visão imperialista. Ou seja, os africanos e não brancos em geral.
Portanto, é verdade que o seriado denunciava o racismo, o machismo, a violência militar etc. O problema é que isso só ia até certo ponto. Defesa da diversidade cultural, da igualdade entre sexos e do respeito às etnias, tudo bem. Mas, a ordem tem que ser mantida. Mesmo que seja a mesma ordem que alimenta o racismo, o machismo, o desprezo a culturas diferentes etc. Parece a organização em guetos da sociedade americana. Respeita os diferentes desde que eles fiquem nos lugares que lhes são destinados.
As grandes produções cinematográficas que vieram depois também andaram nessa direção. Sempre fazendo o discurso politicamente correto, mas justificando a ordem geral. De um lado, salvamentos de baleias e dispositivos que recriam a vida natural destruída pela estupidez humana. De outro, seres estranhos que ameaçam a paz, a ordem e o progresso da Federação. Frota Estelar neles!
O mais recente filme da série foi dirigido por J.J Abrams. Seu desafio é conquistar novas gerações para uma criação quarentona. O resultado é bem sintomático. Kirk (Chris Pine), Spock (Zachary Quinto), McCoy (Karl Urban), Uhura (Zoe Saldana), Sulu (John Cho), Scott (Simon Pegg) e Chekov (Anton Yelchin) estão saindo da adolescência. Apesar de sua juventude, todos eles acabam assumindo o comando da Enterprise meio no susto. Mas, não há problema. Saem-se muito bem na missão.
Por outro lado, o talento de Kirk está no sangue da família. Seu pai morreu como herói de guerra ainda jovem. Por isso, o capitão Pike (Bruce Greenwood) não tem dúvidas de que Kirk também será um sucesso. E estava correto. No mundo esclarecido e avançado de Jornada nas Estrelas, a coragem e talentos hereditários continuam valendo.
O vilão da vez veio do passado. O romulano Nero (Eric Bana) é o próprio bárbaro ignorante e estúpido. É o bastante para que o trapaceiro Kirk e o correto Spock deixem suas diferenças de lado e se unam. Tudo em nome do combate ao desordeiro da vez.
Tudo isso parece realmente voltado para os jovens atuais. É como boa parte deles se acostumou a ver as coisas. Não é preciso se preparar para nada. É só chegar e assumir o comando. Muitos jovens pensam que é possível saltar das telas dos videogames para a vida real sem fases intermediárias. Não à toa, Kirk utiliza seu talento de hacker para trapacear na simulação por computador do treinamento da Academia da Frota.
Esse tipo de atitude é diariamente reforçado pelo consumismo reinante. Principalmente, pelo consumo do prazer. E este cada vez mais só é atingido pelo ato de consumir. Um círculo viciado que não leva a lugar algum. Sensações sem reflexão. Só sensações. Como os mais novos e belos efeitos do filme de Abrams.
A série Jornada nas Estrelas trouxe idéias belas e interessantes. Olhou para a raça humana com esperança. Imaginou avançados recursos tecnológicos combinados com relações sociais justas e solidárias. Mas, nunca deixou de ser um produto comercial. Como tal, ficou presa ao circuito do capital, que para se reproduzir precisa de relações desiguais e egoístas.
“Audaciosamente indo aonde nenhum homem jamais esteve”, diz o lema de Jornada nas Estrelas. Uma frase que já foi interpretada positivamente. Mas, em tempos neoliberais, tornados ainda mais feios pela desgraça militarista de George Bush, o último dos filmões parece muito mais pragmático do que otimista. Star Trek não apenas parou no meio do caminho. Trocou a audácia pela covardia de permanecer no lugar em que a raça humana estancou paralisada: os tempos atuais.
Jornada nas Estrelas é uma marca de grande sucesso na ficção científica do cinema e da TV. O seriado chegou à TV em 1966. O cenário americano da época incluía a Guerra do Vietnam, a Guerra Fria, a luta contra o racismo, um movimento feminista cada vez mais forte, uma juventude contestadora e, claro, a corrida espacial entre Estados Unidos e União Soviética.
Gene Roddenberry criou a série de olho em tudo isso. A espaçonave de Kirk voava pelo futuro, mas seus episódios falavam de temas muito presentes. O nome Enterprise batizou vários navios de guerra americanos. A nave tinha como missão “buscar novas formas de vida, novas civilizações”. Sempre com objetivos pacíficos. Em plena Guerra Fria, o aspecto militar só aparecia em segundo plano.
Era o auge da luta pelos direitos civis para os negros. A tripulação comandada por Kirk incluía uma oficial negra eficiente e com personalidade. Era a tenente Uhura, cujo nome, em Suahili, quer dizer “Liberdade”. Um agrado para a causa dos negros e para a luta feminista.
Em um dos episódios, os habitantes de um planeta estão em guerra. Todos eles têm metade do corpo negra e a outra branca. Mas, os que são negros no lado esquerdo desprezam os que são brancos do mesmo lado. Este é o motivo da guerra. Kirk e sua tripulação não conseguem convencê-los do absurdo dessa situação. Eles acabam se destruindo, transformando o episódio numa condenação à intolerância racial.
A Enterprise está a serviço da Federação dos Planetas Unidos, “uma organização política econômica, social e cultural fundamentada no conceito da diversidade”. Por isso, a série deve ter sido a primeira a mostrar a convivência pacífica e tolerante entre seres de espécies e planetas totalmente diferentes. Entre suas rígidas regras está a primeira diretriz. Ela proíbe a interferência em outras civilizações, seja política e ideológica, seja como mera presença física. Uma espécie de respeito às culturas jamais observado pelos impérios em geral.
Por outro lado, toda essa boa vontade era mal engolida pelos executivos da NBC, rede que lançou o seriado. Muitos episódios com temas radicais ficaram moderados antes de ir ao ar. Essas dificuldades e o medo de perder audiência mais conservadora, limitaram as possibilidades de denúncia social da série.
Todas as mulheres da tripulação vestiam mini-saias. A maioria fazia o gênero “loira burra” e dificilmente ocupava postos de comando. Reinava a ordem masculina, mesmo entre os alienígenas. Ao mesmo tempo, os vilões mais tradicionais eram os Klingons. Tinham a pele escura e, podiam ser facilmente confundidos com povos considerados selvagens pela visão imperialista. Ou seja, os africanos e não brancos em geral.
Portanto, é verdade que o seriado denunciava o racismo, o machismo, a violência militar etc. O problema é que isso só ia até certo ponto. Defesa da diversidade cultural, da igualdade entre sexos e do respeito às etnias, tudo bem. Mas, a ordem tem que ser mantida. Mesmo que seja a mesma ordem que alimenta o racismo, o machismo, o desprezo a culturas diferentes etc. Parece a organização em guetos da sociedade americana. Respeita os diferentes desde que eles fiquem nos lugares que lhes são destinados.
As grandes produções cinematográficas que vieram depois também andaram nessa direção. Sempre fazendo o discurso politicamente correto, mas justificando a ordem geral. De um lado, salvamentos de baleias e dispositivos que recriam a vida natural destruída pela estupidez humana. De outro, seres estranhos que ameaçam a paz, a ordem e o progresso da Federação. Frota Estelar neles!
O mais recente filme da série foi dirigido por J.J Abrams. Seu desafio é conquistar novas gerações para uma criação quarentona. O resultado é bem sintomático. Kirk (Chris Pine), Spock (Zachary Quinto), McCoy (Karl Urban), Uhura (Zoe Saldana), Sulu (John Cho), Scott (Simon Pegg) e Chekov (Anton Yelchin) estão saindo da adolescência. Apesar de sua juventude, todos eles acabam assumindo o comando da Enterprise meio no susto. Mas, não há problema. Saem-se muito bem na missão.
Por outro lado, o talento de Kirk está no sangue da família. Seu pai morreu como herói de guerra ainda jovem. Por isso, o capitão Pike (Bruce Greenwood) não tem dúvidas de que Kirk também será um sucesso. E estava correto. No mundo esclarecido e avançado de Jornada nas Estrelas, a coragem e talentos hereditários continuam valendo.
O vilão da vez veio do passado. O romulano Nero (Eric Bana) é o próprio bárbaro ignorante e estúpido. É o bastante para que o trapaceiro Kirk e o correto Spock deixem suas diferenças de lado e se unam. Tudo em nome do combate ao desordeiro da vez.
Tudo isso parece realmente voltado para os jovens atuais. É como boa parte deles se acostumou a ver as coisas. Não é preciso se preparar para nada. É só chegar e assumir o comando. Muitos jovens pensam que é possível saltar das telas dos videogames para a vida real sem fases intermediárias. Não à toa, Kirk utiliza seu talento de hacker para trapacear na simulação por computador do treinamento da Academia da Frota.
Esse tipo de atitude é diariamente reforçado pelo consumismo reinante. Principalmente, pelo consumo do prazer. E este cada vez mais só é atingido pelo ato de consumir. Um círculo viciado que não leva a lugar algum. Sensações sem reflexão. Só sensações. Como os mais novos e belos efeitos do filme de Abrams.
A série Jornada nas Estrelas trouxe idéias belas e interessantes. Olhou para a raça humana com esperança. Imaginou avançados recursos tecnológicos combinados com relações sociais justas e solidárias. Mas, nunca deixou de ser um produto comercial. Como tal, ficou presa ao circuito do capital, que para se reproduzir precisa de relações desiguais e egoístas.
“Audaciosamente indo aonde nenhum homem jamais esteve”, diz o lema de Jornada nas Estrelas. Uma frase que já foi interpretada positivamente. Mas, em tempos neoliberais, tornados ainda mais feios pela desgraça militarista de George Bush, o último dos filmões parece muito mais pragmático do que otimista. Star Trek não apenas parou no meio do caminho. Trocou a audácia pela covardia de permanecer no lugar em que a raça humana estancou paralisada: os tempos atuais.
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13 de mai. de 2009
Piratas e fantasmas contra o capitalismo
A pirataria vai continuar crescendo e assustando os donos da indústria de diversão. Ela é produto do próprio desenvolvimento capitalista, que depende cada vez mais do trabalho morto e seus fantasmas.
Em abril passado, a justiça sueca condenou os responsáveis pelo site The Pirate Bay a um ano de prisão por pirataria. Internautas utilizam o site para enviar e receber arquivos de todo tipo, principalmente de músicas e filmes de graça.
Mais ou menos na mesma época, uma cópia de X-Men Origins: Wolverine foi parar na internete. Milhões de pessoas tiveram acesso gratuito ao filme antes de ele ir para os cinemas.
Tanto num caso, como no outro, os empresários da cultura e diversão arrancam os cabelos. Querem repressão, multas, cadeia. Porém, a pirataria é produto da própria lógica de produção da indústria cultural. É sua veloz modernização tecnológica que facilita cada vez mais os casos de pirataria.
É só pensar na possibilidade de piratear um filme como “E o vento levou” na época de seu lançamento. Em 1939, daria algum trabalho roubar uma cópia do filme. Seria preciso surrupiar do laboratório do estúdio duas ou três latas do tamanho de caixas de pizza. Depois disso, sair por aí com várias pilhas de “caixas de pizza” de lata anunciando “assista E o vento levou antes do lançamento”. Impossível.
A pirataria foi bastante facilitada pelo fato de que grandes quantidades de informação vêm em embalagens pequenas, leves e baratas. Fitas de vídeo eram bem mais práticas do que latões de filmes. Mas, as cópias perdiam qualidade e podiam causar danos nos aparelhos de reprodução.
Hoje, um filme digital pode ser copiado várias vezes com a mesma qualidade. O material já quase não apresenta problemas de reprodução e não danifica equipamentos. As mídias são cada vez mais baratas, assim como os aparelhos utilizados para reproduzi-las.
E à medida que o tempo passa, fica menos complicado gravar, copiar, comercializar ou apenas trocar esse tipo de material. Praticamente tudo nessa área já pode circular pelos cabos utilizados pela internete.
Nada disso seria possível sem o avanço tecnológico da indústria cultural. Como explicar isso? Como entender que a própria indústria cultural tenha facilitado tanto a pirataria de seus produtos? E por que continua fazendo isso?
Pistas para responder a estas questões podem ser encontradas no próprio modo de funcionamento da economia capitalista, segundo a teoria marxista.
Em primeiro lugar, é preciso entender que os lucros capitalistas vêm da exploração do trabalho vivo. Trabalho vivo é a força-de-trabalho humana, principalmente. Trabalho morto é aquilo que o trabalho vivo já criou. São as máquinas, ferramentas, instalações e mercadorias em geral.
Trabalho vivo gera mais valor (mercadorias) do que o necessário para comprá-lo (salários). Ele gera valor novo. Trabalho morto não gera valor novo. As mercadorias que o trabalho morto cria representam apenas o valor de seu desgaste.
O problema é que a busca capitalista por corte de custos leva ao corte de trabalho vivo no processo produtivo. É só comparar uma linha de montagem de automóveis de 60 anos atrás com sua correspondente atual. Na primeira, havia muitos homens trabalhando. Na segunda, quase só aparecem robôs. Na primeira, muito trabalho vivo. Na segunda, muito trabalho morto. A força física e intelectual dos antigos operários transformou-se em aço, fluidos, molas e programas de computador. O trabalho vivo da primeira foi transformado no trabalho morto da segunda.
O mesmo vale para uma categoria como os bancários, por exemplo. Desde os anos 1990, eles vêm sendo substituídos pelos caixas-eletrônicos. Quase 200 mil empregos desapareceram no setor.
Essa troca de trabalho vivo por trabalho morto barateia o valor das mercadorias e serviços. Mas, como o lucro sai do trabalho vivo, seu volume geral cai. Os lucros podem ser bilionários, mas a taxa de retorno em relação ao investimento tende a diminuir. É preciso muito mais investimento para obter o mesmo retorno em lucros. É o que Marx chamou de queda tendencial da taxa-de-lucro. Um limite que o capitalismo não consegue superar.
Pra piorar, a feroz competição capitalista aumenta a velocidade das inovações tecnológicas. Com isso, muito trabalho morto é descartado antes de repassar todo o seu valor às mercadorias. Como um espírito desencarnado antes da hora, o trabalho morto fica vagando por aí. Pesando na economia.
Uma das maneiras de compensar essa queda na taxa dos lucros é vender muito mais mercadorias. Tentar compensar a queda do lucro através do aumento de unidades vendidas. Mas, como fazer isso num processo produtivo que utiliza cada vez menos força-de-trabalho humana? Baixando ao máximo o preço das mercadorias.
É por isso que coisas que eram tão caras antes, já não são mais. Entre elas, aparelhos-de-som, tocadores de DVDs e as próprias mídias que tocam neles. São acessíveis até para quem não tem emprego fixo. O problema é que baixar os preços significa cortar custos com... trabalho vivo. E o ciclo recomeça e se mantém.
Na verdade, este é um caso típico do que Marx chamou de contradição entre forças produtivas e relações de produção. As forças produtivas se desenvolvem, mas as relações de produção continuam as mesmas. Chega um momento em que elas entram em choque.
Hoje em dia, a produção de material audiovisual em larga escala para o mercado é uma importante força produtiva. Milhões de pessoas são responsáveis por seu desenvolvimento. São cientistas dos laboratórios das empresas, pesquisadores das universidades, jovens gênios da computação etc. Mas também são os trabalhadores que tiveram seu saber vivo e criador transformado na ciência morta e enterrada em chips eletrônicos.
Além disso, a computação gráfica (trabalho morto) vem substituindo o trabalho (vivo) de quem antes fazia cenários, efeitos especiais, maquiagem, criaturas monstruosas, filmagens externas, cenas perigosas etc. E personagens animados por computador tomam o lugar de atores humanos. Tudo isso tem altos custos. Só ficam no mercado as poucas empresas que são capazes de arcar com eles. Então, cada vez menos gente encontra emprego. E os que encontram, trabalham para algumas poucas corporações gigantes.
Ou seja, de um lado, temos as relações de produção baseadas numa propriedade privada dos meios-de-produção que se concentra fortemente. Do outro, forças produtivas representadas pelo desenvolvimento tecnológico que é resultado de um trabalho social de milhares de pessoas por décadas. Os conflitos em torno da pirataria representam um momento em que umas e outras entram em choque.
A atual tecnologia de produção e troca de produtos audiovisuais é muito mais adequada a uma sociedade sem a propriedade privada dos meios-de-produção. Não à toa, alguns dos movimentos culturais e políticos que mais crescem ultimamente são aqueles que questionam o direito de propriedade sobre programas de computador e produção audiovisual.
A decisão judicial contra os donos da Pirate Bay fez dobrar o número de filiados ao Partido Pirata. Esta organização sueca defende uma reforma radical na legislação de direitos autorais, fim do sistema de patentes e garantia dos direitos à privacidade de internautas que baixam arquivos. Só que isso implica questionar um princípio sagrado do capitalismo: o controle privado dos meios-de-produção. Significa questionar o próprio capitalismo.
No famoso trecho em que Marx trata dessas contradições, ele diz que quando as forças produtivas entram em choque com as relações de produção, abre-se uma era de revoluções. Se elas virão ou não, é outra história. São muitas as contradições. Entre elas, o fato de que a disputa de que estamos falando envolve produtos ideológicos que justamente ajudam a manter a dominação capitalista. A maioria das pessoas está lutando para ter direito de ver ou ouvir coisas que justificam a sociedade injusta em que vivemos. Ou alguém já viu camelôs vendendo cópias piratas de filmes e documentários de esquerda?
De qualquer maneira, os fantasmas do trabalho morto começam a incomodar. Vêm sendo usados como armas pelos piratas do mundo virtual na luta contra as grandes organizações capitalistas. É como aquela cena de Piratas do Caribe. Centenas de mortos-vivos avançam marchando por baixo d´água. Que esse pesadelo se torne real para os donos da indústria de diversão!
Em abril passado, a justiça sueca condenou os responsáveis pelo site The Pirate Bay a um ano de prisão por pirataria. Internautas utilizam o site para enviar e receber arquivos de todo tipo, principalmente de músicas e filmes de graça.
Mais ou menos na mesma época, uma cópia de X-Men Origins: Wolverine foi parar na internete. Milhões de pessoas tiveram acesso gratuito ao filme antes de ele ir para os cinemas.
Tanto num caso, como no outro, os empresários da cultura e diversão arrancam os cabelos. Querem repressão, multas, cadeia. Porém, a pirataria é produto da própria lógica de produção da indústria cultural. É sua veloz modernização tecnológica que facilita cada vez mais os casos de pirataria.
É só pensar na possibilidade de piratear um filme como “E o vento levou” na época de seu lançamento. Em 1939, daria algum trabalho roubar uma cópia do filme. Seria preciso surrupiar do laboratório do estúdio duas ou três latas do tamanho de caixas de pizza. Depois disso, sair por aí com várias pilhas de “caixas de pizza” de lata anunciando “assista E o vento levou antes do lançamento”. Impossível.
A pirataria foi bastante facilitada pelo fato de que grandes quantidades de informação vêm em embalagens pequenas, leves e baratas. Fitas de vídeo eram bem mais práticas do que latões de filmes. Mas, as cópias perdiam qualidade e podiam causar danos nos aparelhos de reprodução.
Hoje, um filme digital pode ser copiado várias vezes com a mesma qualidade. O material já quase não apresenta problemas de reprodução e não danifica equipamentos. As mídias são cada vez mais baratas, assim como os aparelhos utilizados para reproduzi-las.
E à medida que o tempo passa, fica menos complicado gravar, copiar, comercializar ou apenas trocar esse tipo de material. Praticamente tudo nessa área já pode circular pelos cabos utilizados pela internete.
Nada disso seria possível sem o avanço tecnológico da indústria cultural. Como explicar isso? Como entender que a própria indústria cultural tenha facilitado tanto a pirataria de seus produtos? E por que continua fazendo isso?
Pistas para responder a estas questões podem ser encontradas no próprio modo de funcionamento da economia capitalista, segundo a teoria marxista.
Em primeiro lugar, é preciso entender que os lucros capitalistas vêm da exploração do trabalho vivo. Trabalho vivo é a força-de-trabalho humana, principalmente. Trabalho morto é aquilo que o trabalho vivo já criou. São as máquinas, ferramentas, instalações e mercadorias em geral.
Trabalho vivo gera mais valor (mercadorias) do que o necessário para comprá-lo (salários). Ele gera valor novo. Trabalho morto não gera valor novo. As mercadorias que o trabalho morto cria representam apenas o valor de seu desgaste.
O problema é que a busca capitalista por corte de custos leva ao corte de trabalho vivo no processo produtivo. É só comparar uma linha de montagem de automóveis de 60 anos atrás com sua correspondente atual. Na primeira, havia muitos homens trabalhando. Na segunda, quase só aparecem robôs. Na primeira, muito trabalho vivo. Na segunda, muito trabalho morto. A força física e intelectual dos antigos operários transformou-se em aço, fluidos, molas e programas de computador. O trabalho vivo da primeira foi transformado no trabalho morto da segunda.
O mesmo vale para uma categoria como os bancários, por exemplo. Desde os anos 1990, eles vêm sendo substituídos pelos caixas-eletrônicos. Quase 200 mil empregos desapareceram no setor.
Essa troca de trabalho vivo por trabalho morto barateia o valor das mercadorias e serviços. Mas, como o lucro sai do trabalho vivo, seu volume geral cai. Os lucros podem ser bilionários, mas a taxa de retorno em relação ao investimento tende a diminuir. É preciso muito mais investimento para obter o mesmo retorno em lucros. É o que Marx chamou de queda tendencial da taxa-de-lucro. Um limite que o capitalismo não consegue superar.
Pra piorar, a feroz competição capitalista aumenta a velocidade das inovações tecnológicas. Com isso, muito trabalho morto é descartado antes de repassar todo o seu valor às mercadorias. Como um espírito desencarnado antes da hora, o trabalho morto fica vagando por aí. Pesando na economia.
Uma das maneiras de compensar essa queda na taxa dos lucros é vender muito mais mercadorias. Tentar compensar a queda do lucro através do aumento de unidades vendidas. Mas, como fazer isso num processo produtivo que utiliza cada vez menos força-de-trabalho humana? Baixando ao máximo o preço das mercadorias.
É por isso que coisas que eram tão caras antes, já não são mais. Entre elas, aparelhos-de-som, tocadores de DVDs e as próprias mídias que tocam neles. São acessíveis até para quem não tem emprego fixo. O problema é que baixar os preços significa cortar custos com... trabalho vivo. E o ciclo recomeça e se mantém.
Na verdade, este é um caso típico do que Marx chamou de contradição entre forças produtivas e relações de produção. As forças produtivas se desenvolvem, mas as relações de produção continuam as mesmas. Chega um momento em que elas entram em choque.
Hoje em dia, a produção de material audiovisual em larga escala para o mercado é uma importante força produtiva. Milhões de pessoas são responsáveis por seu desenvolvimento. São cientistas dos laboratórios das empresas, pesquisadores das universidades, jovens gênios da computação etc. Mas também são os trabalhadores que tiveram seu saber vivo e criador transformado na ciência morta e enterrada em chips eletrônicos.
Além disso, a computação gráfica (trabalho morto) vem substituindo o trabalho (vivo) de quem antes fazia cenários, efeitos especiais, maquiagem, criaturas monstruosas, filmagens externas, cenas perigosas etc. E personagens animados por computador tomam o lugar de atores humanos. Tudo isso tem altos custos. Só ficam no mercado as poucas empresas que são capazes de arcar com eles. Então, cada vez menos gente encontra emprego. E os que encontram, trabalham para algumas poucas corporações gigantes.
Ou seja, de um lado, temos as relações de produção baseadas numa propriedade privada dos meios-de-produção que se concentra fortemente. Do outro, forças produtivas representadas pelo desenvolvimento tecnológico que é resultado de um trabalho social de milhares de pessoas por décadas. Os conflitos em torno da pirataria representam um momento em que umas e outras entram em choque.
A atual tecnologia de produção e troca de produtos audiovisuais é muito mais adequada a uma sociedade sem a propriedade privada dos meios-de-produção. Não à toa, alguns dos movimentos culturais e políticos que mais crescem ultimamente são aqueles que questionam o direito de propriedade sobre programas de computador e produção audiovisual.
A decisão judicial contra os donos da Pirate Bay fez dobrar o número de filiados ao Partido Pirata. Esta organização sueca defende uma reforma radical na legislação de direitos autorais, fim do sistema de patentes e garantia dos direitos à privacidade de internautas que baixam arquivos. Só que isso implica questionar um princípio sagrado do capitalismo: o controle privado dos meios-de-produção. Significa questionar o próprio capitalismo.
No famoso trecho em que Marx trata dessas contradições, ele diz que quando as forças produtivas entram em choque com as relações de produção, abre-se uma era de revoluções. Se elas virão ou não, é outra história. São muitas as contradições. Entre elas, o fato de que a disputa de que estamos falando envolve produtos ideológicos que justamente ajudam a manter a dominação capitalista. A maioria das pessoas está lutando para ter direito de ver ou ouvir coisas que justificam a sociedade injusta em que vivemos. Ou alguém já viu camelôs vendendo cópias piratas de filmes e documentários de esquerda?
De qualquer maneira, os fantasmas do trabalho morto começam a incomodar. Vêm sendo usados como armas pelos piratas do mundo virtual na luta contra as grandes organizações capitalistas. É como aquela cena de Piratas do Caribe. Centenas de mortos-vivos avançam marchando por baixo d´água. Que esse pesadelo se torne real para os donos da indústria de diversão!
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25 de abr. de 2009
Uma dança solitária denuncia as guerras imperialistas
“Valsa com Bashir” utiliza o simbolismo do desenho animado para mostrar que loucura mesmo é acreditar nas justificativas para o massacre do povo palestino.
Ari Folman fez “Valsa com Bashir” para acertar contas com seu passado. Ele foi soldado das tropas israelenses que invadiram o Líbano em 1982, quando aconteceu o massacre de Sabra e Chatila. Trata-se de dois campos de refugiados palestinos que foram invadidos por milícias cristãs. Milhares de homens, mulheres e crianças foram mortos covardemente. As tropas israelenses receberam ordens de não intervir.
No filme, Folman afirma não conseguir lembrar de detalhes desses acontecimentos. Sua mente parece ter bloqueado as lembranças daqueles momentos. Ele se sente incomodado com isso. Começa, então, a tentar recolher elementos para recuperar a memória daqueles dias. Para isso, recorre a um amigo psicólogo e a entrevistas com ex-combatentes que faziam parte de seu batalhão.
A combinação de dois elementos chama a atenção na produção. Em primeiro lugar, o documentário reconstrói fatos a partir de lembranças do personagem principal e dos entrevistados. Apenas isso já daria ao filme um caráter de recorte da realidade muito específico. Os depoentes e o protagonista vão fixando a narrativa aos poucos. Sem pretensões de retratar a realidade tal como ela é ou foi. Isso acaba obrigando os ex-combatentes a expressar opiniões. E não escondem sua incerteza quanto à justiça do que o Estado de Israel os obrigou a fazer.
Em segundo lugar, o diretor utilizou desenho animado para contar sua história. Segundo ele, porque faltavam muitas cenas de arquivo. Uma opção arriscada, pois poderia colocar sob suspeita a seriedade do filme. Mas, o resultado final é o contrário disso.
A animação prende a atenção e possibilita a interpretação simbólica de muitos momentos, sem que elas percam a verdade do que pretendem significar. É o caso da cena que dá nome ao filme. Não seria possível na realidade. Mas, faz todo sentido no documentário. Um soldado dança sozinho em meio aos tiros. É como se perguntasse que sentido fazem guerras em que a enorme maioria dos envolvidos ignora suas causas reais. Lutam em nome do patriotismo quando o verdadeiro objetivo é o domínio imperialista dos povos do mundo.
Como esta, há outras seqüências. A mulher nua gigante que sai do mar, um soldado tocando guitarra com sua metralhadora. São momentos que mostram que delírio mesmo é a guerra declarada pelo Estado de Israel a um povo inteiro. Ao mesmo tempo, tornam claro o fato de que nenhum documentário retrata a verdade tal como ela é. Utilizar animação acaba servindo para denunciar que acreditar nisso é cair na conversa fiada da objetividade do jornalismo empresarial. Algo bastante útil na justificação do uso do poder militar e repressivo.
A opção arriscada pelo desenho animado transforma-se na maior força da produção. E o final em imagens filmadas deixa para trás qualquer dúvida quanto à tragédia que representou Sabra e Chatila. “Valsa com Bashir” é mais um passo importante na produção de documentários que não escondem que têm lado. O da denúncia da exploração e da dominação.
Ari Folman fez “Valsa com Bashir” para acertar contas com seu passado. Ele foi soldado das tropas israelenses que invadiram o Líbano em 1982, quando aconteceu o massacre de Sabra e Chatila. Trata-se de dois campos de refugiados palestinos que foram invadidos por milícias cristãs. Milhares de homens, mulheres e crianças foram mortos covardemente. As tropas israelenses receberam ordens de não intervir.
No filme, Folman afirma não conseguir lembrar de detalhes desses acontecimentos. Sua mente parece ter bloqueado as lembranças daqueles momentos. Ele se sente incomodado com isso. Começa, então, a tentar recolher elementos para recuperar a memória daqueles dias. Para isso, recorre a um amigo psicólogo e a entrevistas com ex-combatentes que faziam parte de seu batalhão.
A combinação de dois elementos chama a atenção na produção. Em primeiro lugar, o documentário reconstrói fatos a partir de lembranças do personagem principal e dos entrevistados. Apenas isso já daria ao filme um caráter de recorte da realidade muito específico. Os depoentes e o protagonista vão fixando a narrativa aos poucos. Sem pretensões de retratar a realidade tal como ela é ou foi. Isso acaba obrigando os ex-combatentes a expressar opiniões. E não escondem sua incerteza quanto à justiça do que o Estado de Israel os obrigou a fazer.
Em segundo lugar, o diretor utilizou desenho animado para contar sua história. Segundo ele, porque faltavam muitas cenas de arquivo. Uma opção arriscada, pois poderia colocar sob suspeita a seriedade do filme. Mas, o resultado final é o contrário disso.
A animação prende a atenção e possibilita a interpretação simbólica de muitos momentos, sem que elas percam a verdade do que pretendem significar. É o caso da cena que dá nome ao filme. Não seria possível na realidade. Mas, faz todo sentido no documentário. Um soldado dança sozinho em meio aos tiros. É como se perguntasse que sentido fazem guerras em que a enorme maioria dos envolvidos ignora suas causas reais. Lutam em nome do patriotismo quando o verdadeiro objetivo é o domínio imperialista dos povos do mundo.
Como esta, há outras seqüências. A mulher nua gigante que sai do mar, um soldado tocando guitarra com sua metralhadora. São momentos que mostram que delírio mesmo é a guerra declarada pelo Estado de Israel a um povo inteiro. Ao mesmo tempo, tornam claro o fato de que nenhum documentário retrata a verdade tal como ela é. Utilizar animação acaba servindo para denunciar que acreditar nisso é cair na conversa fiada da objetividade do jornalismo empresarial. Algo bastante útil na justificação do uso do poder militar e repressivo.
A opção arriscada pelo desenho animado transforma-se na maior força da produção. E o final em imagens filmadas deixa para trás qualquer dúvida quanto à tragédia que representou Sabra e Chatila. “Valsa com Bashir” é mais um passo importante na produção de documentários que não escondem que têm lado. O da denúncia da exploração e da dominação.
13 de abr. de 2009
“Rebobine” parece besteira, mas é denúncia
Michel Gondry fez um filme com cara de besteirol. Mas é só prestar atenção, para ver que é uma denúncia contra a indústria do cinema. E um chamado à resistência cultural popular.
“Rebobine, por favor” acaba de sair em DVD. Foi mal de bilheteria nos cinemas. O filme parece uma comédia sem pretensões, mas pode ser entendido como denúncia da indústria do cinema. De um modo ou de outro, a tendência é ficar esquecido nas prateleiras das locadoras. É uma pena.
O cenário do filme é Passaic, uma pequena cidade perto de Nova Iorque. É lá que lroy Fletcher (Danny Glover) tem sua locadora de fitas de vídeo. Num prédio em que nasceu o cantor de jazz Fats Waller. Pelo menos é o que ele diz. O problema é que Fletcher deve uma fortuna em impostos e o local está para ser desapropriado pela prefeitura. Será demolido se a dívida não for paga. Além disso, a locadora está às moscas. A clientela procura cada vez mais os DVDs das grandes lojas.
Fletcher resolve passar uma temporada em Nova Iorque para pensar em soluções para o problema. Deixa a loja aos cuidados de Mike (Mos Def), seu dedicado empregado. Mas, as coisas complicam quando o melhor amigo de Mike entra em cena. Trata-se de um maluco chamado Jerry (Jack Black).
Jerry acha que uma estação de energia próxima de sua casa está cozinhando seu cérebro. Ao tentar sabotá-la, leva uma tremenda descarga elétrica. O acidente magnetiza seu corpo. Ainda tonto, ele entra na locadora e o magnetismo acaba apagando todas as fitas. Desesperado, Mike resolve filmar novamente as produções mais procuradas pela clientela.
Seguem-se cenas de reproduções caseiras de filmes como “Caça-Fantasmas”, “Robocop”, “Conduzindo Miss Daisy”. Tudo com uma velha câmera de vídeo, péssimos efeitos especiais, maquiagem e figurino de dar dó. Mas, as adaptações começam a fazer sucesso. Quando Fletcher retorna encontra uma enorme fila na porta de sua locadora.
Quando tudo parece estar melhorando, Fletcher é processado e condenado. As grandes produtoras de filmes consideram que as adaptações caracterizam crime de pirataria. Exigem o pagamento de milhões de dólares em direitos autorais. As fitas são destruídas. É marcada a data para a demolição do prédio. O desânimo é geral.
Mas Jerry tem uma idéia. Por que eles não produzem seu próprio filme? Por que não filmam a vida de Fats Waller, famoso morador do prédio que está para ser demolido? Ele e Mike fazem a proposta ao dono da locadora. Mas ele confessa que Waller nunca havia morado no local. Nesse momento, uma amiga e cliente interpretada por Mia Farrow responde: “E daí? O passado é nosso. Podemos modificá-lo”. É como se dissesse: os empresários da indústria cultural contam a história segundo o ponto de vista de seus interesses. Por que não podemos fazer o mesmo?
As filmagens começam. Muita gente da cidade se envolve. Quase sem dinheiro, a produção utiliza recursos pobres, mas criativos. A estréia é um sucesso e um acaso leva a um final feliz típico de Hollywood.
O recado do filme de Gondry parece claro. Por que a criatividade das pessoas tem que se limitar ao que a indústria da diversão oferece? Quando Mike e Jerry refilmam os clássicos, o resultado é ridículo. Mas colocam nele seu toque pessoal. É isso que atrai os clientes. Além disso, a própria vizinhança começa a participar das adaptações, fazendo pontas e colaborando para os “efeitos especiais”. Sentem a enorme diferença entre olhar e fazer. Os espectadores tornam-se produtores. É tosco, grosseiro, ridículo, mas é feito por eles.
Isso fica mais claro na produção do filme sobre Waller. Já não se trata de refazer uma grande produção. Agora, contam sua própria história. Escolheram seu próprio herói para homenagear. Um artista do jazz, arte de resistência popular. Tornaram o ato de filmar um trabalho coletivo. Deixaram de ter vergonha do que são capazes de fazer.
Ainda tentam imitar o “cinemão”, seus truques, ritmo e efeitos? Sim, é inevitável. Mas já deram um passo em direção a um caminho diferente. Isso acontece com mais freqüência do que parece. São manifestações que vão do grafite nos muros a filmes caseiros colocados na internete.
Para tornar esses produtos elementos de resistência, é preciso fazer como no filme. Seus personagens finalmente reconheceram que têm o direito de contar seu próprio passado. Por que não pensar mudar o futuro, também?
Leia também:
"Linha de passe" fica longe de quem interessa
A gente não quer só comida, quer som e imagem
“Rebobine, por favor” acaba de sair em DVD. Foi mal de bilheteria nos cinemas. O filme parece uma comédia sem pretensões, mas pode ser entendido como denúncia da indústria do cinema. De um modo ou de outro, a tendência é ficar esquecido nas prateleiras das locadoras. É uma pena.
O cenário do filme é Passaic, uma pequena cidade perto de Nova Iorque. É lá que lroy Fletcher (Danny Glover) tem sua locadora de fitas de vídeo. Num prédio em que nasceu o cantor de jazz Fats Waller. Pelo menos é o que ele diz. O problema é que Fletcher deve uma fortuna em impostos e o local está para ser desapropriado pela prefeitura. Será demolido se a dívida não for paga. Além disso, a locadora está às moscas. A clientela procura cada vez mais os DVDs das grandes lojas.
Fletcher resolve passar uma temporada em Nova Iorque para pensar em soluções para o problema. Deixa a loja aos cuidados de Mike (Mos Def), seu dedicado empregado. Mas, as coisas complicam quando o melhor amigo de Mike entra em cena. Trata-se de um maluco chamado Jerry (Jack Black).
Jerry acha que uma estação de energia próxima de sua casa está cozinhando seu cérebro. Ao tentar sabotá-la, leva uma tremenda descarga elétrica. O acidente magnetiza seu corpo. Ainda tonto, ele entra na locadora e o magnetismo acaba apagando todas as fitas. Desesperado, Mike resolve filmar novamente as produções mais procuradas pela clientela.
Seguem-se cenas de reproduções caseiras de filmes como “Caça-Fantasmas”, “Robocop”, “Conduzindo Miss Daisy”. Tudo com uma velha câmera de vídeo, péssimos efeitos especiais, maquiagem e figurino de dar dó. Mas, as adaptações começam a fazer sucesso. Quando Fletcher retorna encontra uma enorme fila na porta de sua locadora.
Quando tudo parece estar melhorando, Fletcher é processado e condenado. As grandes produtoras de filmes consideram que as adaptações caracterizam crime de pirataria. Exigem o pagamento de milhões de dólares em direitos autorais. As fitas são destruídas. É marcada a data para a demolição do prédio. O desânimo é geral.
Mas Jerry tem uma idéia. Por que eles não produzem seu próprio filme? Por que não filmam a vida de Fats Waller, famoso morador do prédio que está para ser demolido? Ele e Mike fazem a proposta ao dono da locadora. Mas ele confessa que Waller nunca havia morado no local. Nesse momento, uma amiga e cliente interpretada por Mia Farrow responde: “E daí? O passado é nosso. Podemos modificá-lo”. É como se dissesse: os empresários da indústria cultural contam a história segundo o ponto de vista de seus interesses. Por que não podemos fazer o mesmo?
As filmagens começam. Muita gente da cidade se envolve. Quase sem dinheiro, a produção utiliza recursos pobres, mas criativos. A estréia é um sucesso e um acaso leva a um final feliz típico de Hollywood.
O recado do filme de Gondry parece claro. Por que a criatividade das pessoas tem que se limitar ao que a indústria da diversão oferece? Quando Mike e Jerry refilmam os clássicos, o resultado é ridículo. Mas colocam nele seu toque pessoal. É isso que atrai os clientes. Além disso, a própria vizinhança começa a participar das adaptações, fazendo pontas e colaborando para os “efeitos especiais”. Sentem a enorme diferença entre olhar e fazer. Os espectadores tornam-se produtores. É tosco, grosseiro, ridículo, mas é feito por eles.
Isso fica mais claro na produção do filme sobre Waller. Já não se trata de refazer uma grande produção. Agora, contam sua própria história. Escolheram seu próprio herói para homenagear. Um artista do jazz, arte de resistência popular. Tornaram o ato de filmar um trabalho coletivo. Deixaram de ter vergonha do que são capazes de fazer.
Ainda tentam imitar o “cinemão”, seus truques, ritmo e efeitos? Sim, é inevitável. Mas já deram um passo em direção a um caminho diferente. Isso acontece com mais freqüência do que parece. São manifestações que vão do grafite nos muros a filmes caseiros colocados na internete.
Para tornar esses produtos elementos de resistência, é preciso fazer como no filme. Seus personagens finalmente reconheceram que têm o direito de contar seu próprio passado. Por que não pensar mudar o futuro, também?
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"Linha de passe" fica longe de quem interessa
A gente não quer só comida, quer som e imagem
4 de abr. de 2009
Che: entre a revolução e a auto-ajuda
O maior problema do filme de Soderbergh não é o que ele mostra. É o que a maioria do público tende a ver. A revolução pode parecer mais questão de empenho individual do que resultado da ação coletiva.
Os admiradores de Che Guevara e socialistas em geral não têm o que reclamar de “Che: uma vida revolucionária”. Trata-se da primeira parte de uma produção do ator porto-riquenho Benicio del Toro, sob direção do norte-americano Steven Soderbergh. Essa primeira metade das quatro horas totais mostra a luta que levaria Guevara, Fidel e seus companheiros ao poder em Cuba.
Para começar, é preciso coragem para fazer um filme simpático a Guevara nos Estados Unidos. O país acaba de eleger para presidente um negro de nome muçulmano. Mas, a grande maioria de sua população continua considerando Che e Fidel nada mais que terroristas. Seguem o que diz a o governo e a mídia empresarial do país.
A produção também é bastante fiel aos relatos que o próprio Che fez da guerrilha na Sierra Maestra. Assim como de suas relações com Fidel. Guevara é retratado como homem justo, coerente com os valores que defendia e muito duro quando necessário. A cena do fuzilamento de dois traidores e a do episódio do automóvel conversível são exemplos de sua moral revolucionária.
Como explicar, então, que um filme simpático à luta do Che chegue ao grande público? Talvez, a resposta esteja no tom heróico que a produção acaba ganhando. São as cenas que mostram as terríveis condições da luta nas matas. As dificuldades de Guevara com a asma. Sua enorme força de vontade e certeza quanto à justiça da luta em que se envolveu. Os conflitos armados contra as forças militares muito superiores do governo.
Claro que os líderes da Revolução Cubana foram responsáveis por atos de coragem e grandeza. Mas, processos revolucionários não são feitos só de momentos gloriosos. Ao contrário, grande parte da atividade de quem quer transformar a sociedade é feita de trabalho cotidiano. De atividade paciente, cheia de contratempos, grandes derrotas contra pequenas vitórias. Junto aos setores sociais mais explorados, desorganizados e com pouca formação política e teórica.
Por outro lado, não é o poder militar que decide um processo revolucionário. Se fosse assim, as revoluções estariam todas condenadas a morrer antes de nascer. O arsenal e as tropas à disposição dos poderosos são muito superiores a qualquer capacidade militar popular. Quanto a conquistar o apoio de generais para a causa socialista, basta lembrar a experiência desastrosa de Allende, em 73. Seu homem de confiança nas Forças Armadas chamava-se Pinochet.
Não há dúvida de que a dimensão militar foi fundamental no processo cubano. No entanto, uma cena do próprio filme mostra que muito mais importante foi a autoridade moral da causa. Trata-se do momento em que um revolucionário entra num quartel das forças do governo, em Santa Clara. Com algumas poucas palavras enérgicas, ele convence os soldados a abandonarem suas armas e apoiarem a rebelião. Eles sabiam que estavam lutando do lado errado.
A necessidade de conquistar o apoio dos camponeses e ganhá-los para a luta. As costuras com forças políticas das cidades feitas pelo habilidoso Fidel. A capacidade de tornar-se alternativa real para todo o descontentamento popular com um governo corrupto e violento. Tudo isso também recebeu atenção no filme.
Mas, o que se destaca mesmo é a determinação de Che, o herói. São os guerrilheiros armados com sua coragem. Tem-se a impressão de que à gente comum, resta assistir e apoiar, admirada e agradecida. Isso tudo acaba servindo à lógica do típico heroísmo burguês. Quem vai mudar o mundo? Algumas pessoas dedicadas, com fortes convicções, grande inteligência e muitas habilidades. Ao restante, sobra o papel de platéia. E a existência de uma platéia em política faz parte da lógica que mantém todas as dominações.
Além disso, para o capitalismo não há terreno sagrado. Há muito tempo, Guevara transformou-se em marca publicitária. Recentemente, começou a ser veiculada na TV uma propaganda da lanchonete Habib’s. O anúncio mostra atores imitando Fidel e seus companheiros anunciando promoções. Nas lojas da rede, estão expostos folhetos com esfihas e quibes usando a boina do Che e o boné de Castro.
Na final de março, o Jornal do Brasil anunciou na capa de sua revista o que seria a nova moda carioca. Ouvir músicas, consumir bebidas e fumar charutos de origem cubana. Tudo embalado pelo lançamento do filme. Só falta aparecer gente que dá palestra sobre motivação profissional usando a Revolução Cubana como exemplo.
Em tal contexto, o filme de Soderbegh, faz pouco efeito do ponto de vista da propaganda do socialismo. Claro que é possível utilizá-lo como elemento provocador de debates. Até porque são raras as boas produções que abordem de maneira positiva a Revolução Cubana. No entanto, o movimento anticapitalista precisa produzir seus próprios materiais de divulgação e formação política. Produtos de mídia que mostrem que é a ação coletiva dos explorados que orienta suas lideranças revolucionárias e não o contrário.
Sérgio Domingues – abril de 2009
Leia também:
Disputando nossos símbolos com a direita
A travessia de Che Guevara
Os admiradores de Che Guevara e socialistas em geral não têm o que reclamar de “Che: uma vida revolucionária”. Trata-se da primeira parte de uma produção do ator porto-riquenho Benicio del Toro, sob direção do norte-americano Steven Soderbergh. Essa primeira metade das quatro horas totais mostra a luta que levaria Guevara, Fidel e seus companheiros ao poder em Cuba.
Para começar, é preciso coragem para fazer um filme simpático a Guevara nos Estados Unidos. O país acaba de eleger para presidente um negro de nome muçulmano. Mas, a grande maioria de sua população continua considerando Che e Fidel nada mais que terroristas. Seguem o que diz a o governo e a mídia empresarial do país.
A produção também é bastante fiel aos relatos que o próprio Che fez da guerrilha na Sierra Maestra. Assim como de suas relações com Fidel. Guevara é retratado como homem justo, coerente com os valores que defendia e muito duro quando necessário. A cena do fuzilamento de dois traidores e a do episódio do automóvel conversível são exemplos de sua moral revolucionária.
Como explicar, então, que um filme simpático à luta do Che chegue ao grande público? Talvez, a resposta esteja no tom heróico que a produção acaba ganhando. São as cenas que mostram as terríveis condições da luta nas matas. As dificuldades de Guevara com a asma. Sua enorme força de vontade e certeza quanto à justiça da luta em que se envolveu. Os conflitos armados contra as forças militares muito superiores do governo.
Claro que os líderes da Revolução Cubana foram responsáveis por atos de coragem e grandeza. Mas, processos revolucionários não são feitos só de momentos gloriosos. Ao contrário, grande parte da atividade de quem quer transformar a sociedade é feita de trabalho cotidiano. De atividade paciente, cheia de contratempos, grandes derrotas contra pequenas vitórias. Junto aos setores sociais mais explorados, desorganizados e com pouca formação política e teórica.
Por outro lado, não é o poder militar que decide um processo revolucionário. Se fosse assim, as revoluções estariam todas condenadas a morrer antes de nascer. O arsenal e as tropas à disposição dos poderosos são muito superiores a qualquer capacidade militar popular. Quanto a conquistar o apoio de generais para a causa socialista, basta lembrar a experiência desastrosa de Allende, em 73. Seu homem de confiança nas Forças Armadas chamava-se Pinochet.
Não há dúvida de que a dimensão militar foi fundamental no processo cubano. No entanto, uma cena do próprio filme mostra que muito mais importante foi a autoridade moral da causa. Trata-se do momento em que um revolucionário entra num quartel das forças do governo, em Santa Clara. Com algumas poucas palavras enérgicas, ele convence os soldados a abandonarem suas armas e apoiarem a rebelião. Eles sabiam que estavam lutando do lado errado.
A necessidade de conquistar o apoio dos camponeses e ganhá-los para a luta. As costuras com forças políticas das cidades feitas pelo habilidoso Fidel. A capacidade de tornar-se alternativa real para todo o descontentamento popular com um governo corrupto e violento. Tudo isso também recebeu atenção no filme.
Mas, o que se destaca mesmo é a determinação de Che, o herói. São os guerrilheiros armados com sua coragem. Tem-se a impressão de que à gente comum, resta assistir e apoiar, admirada e agradecida. Isso tudo acaba servindo à lógica do típico heroísmo burguês. Quem vai mudar o mundo? Algumas pessoas dedicadas, com fortes convicções, grande inteligência e muitas habilidades. Ao restante, sobra o papel de platéia. E a existência de uma platéia em política faz parte da lógica que mantém todas as dominações.
Além disso, para o capitalismo não há terreno sagrado. Há muito tempo, Guevara transformou-se em marca publicitária. Recentemente, começou a ser veiculada na TV uma propaganda da lanchonete Habib’s. O anúncio mostra atores imitando Fidel e seus companheiros anunciando promoções. Nas lojas da rede, estão expostos folhetos com esfihas e quibes usando a boina do Che e o boné de Castro.
Na final de março, o Jornal do Brasil anunciou na capa de sua revista o que seria a nova moda carioca. Ouvir músicas, consumir bebidas e fumar charutos de origem cubana. Tudo embalado pelo lançamento do filme. Só falta aparecer gente que dá palestra sobre motivação profissional usando a Revolução Cubana como exemplo.
Em tal contexto, o filme de Soderbegh, faz pouco efeito do ponto de vista da propaganda do socialismo. Claro que é possível utilizá-lo como elemento provocador de debates. Até porque são raras as boas produções que abordem de maneira positiva a Revolução Cubana. No entanto, o movimento anticapitalista precisa produzir seus próprios materiais de divulgação e formação política. Produtos de mídia que mostrem que é a ação coletiva dos explorados que orienta suas lideranças revolucionárias e não o contrário.
Sérgio Domingues – abril de 2009
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Disputando nossos símbolos com a direita
A travessia de Che Guevara
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15 de mar. de 2009
Quando os quadrinhos são superiores ao cinema
Zack Snyder não conseguiu adaptar "Watchmen" para as telas mantendo toda a riqueza da versão original. Pelo menos, chamou a atenção para uma obra-prima dos quadrinhos.
Adaptar Watchmen para as telas era um fracasso anunciado. O escritor Alan Moore e o desenhista Dave Gibbons exploraram possibilidades que só os quadrinhos permitem. A obra é dividida em doze partes. Cada uma tem um motivo dominante que se repete da primeira à ultima página. As capas, a disposição dos quadrinhos, estórias paralelas, elementos gráficos. Tudo contribui para criar um quebra-cabeças que se revela aos poucos. Características que muito dificilmente seriam traduzidas para a linguagem cinematográfica.
Mas, quem quiser saber mais sobre esse aspecto da obra, clique aqui. Vamos ao filme.
Os Watchmen (Vigilantes) são justiceiros mascarados que surgiram nos anos 1930. Na verdade, são um bando de pessoas fortes e ágeis com todos os problemas de gente normal. Desde alcoolismo até violências sexuais. E são conservadoras, também. Durante uma greve de policiais, por exemplo, os mascarados assumem a manutenção da ordem, incluindo repressão a uma passeata.
Mas, como não fazem parte do aparelho de Estado, também não contam com a confiança do poder institucional. Por isso, são colocados na ilegalidade. Todos menos o Dr. Manhatann, um cientista que por acidente tornou-se uma criatura azul e poderosa. Tanto que ganhou a Guerra do Vietnã para os Estados Unidos e, com isso, garantiu várias reeleições para Nixon.
Moore escreveu a obra em 1986. Reagan estava no poder. Os pesadelos que pareciam ter sido enterrados com o governo Nixon estavam de volta: conservadorismo, menos serviços públicos e impostos menores para os ricos, repressão aos movimentos populares, ameaça de guerra mundial e financiamento de guerrilhas de direita, incluindo a de Bin-Laden.
Já o filme de Snyder foi produzido durante mais uma edição do pesadelo americano: o governo Bush. Aquele que foi eleito dizendo que os Estados Unidos são os vigilantes do mundo. Na versão em quadrinhos uma pichação aparece nas paredes várias vezes. Ela pergunta: “Quem vigia os vigilantes?” Uma questão que deveria receber mais atenção na versão filmada.
Manhatann é quase um deus e se afasta cada vez mais das paixões humanas. Mas, não vacila na hora de matar por sua pátria. A cena em que o gigante azul pulveriza vietnamitas disparando raios de seus dedos é assustadora. Parece simbolizar uma ciência que se pretende neutra e superior, mas está a serviço de um poder imperial. Não à toa, Manhatann ganhou o nome do projeto que criou a bomba atômica.
Outra figura marcante é Rorschach. O sombrio personagem tem um forte código de moral. Não tem dúvidas sobre o que é certo e errado. Por isso, também não vacila na hora de quebrar alguns ossos e rachar cabeças. Acaba lutando pela justiça em nome dela mesma. Não em nome das pessoas a quem ela deveria servir. Um pouco como a extrema-direita americana. Não gosta de governo, menos ainda do povo.
Os dois parecem representar a classe dominante americana. Um e outro usam papéis de cores diferentes para embrulhar a mesma intolerância. O democrata Truman atacou Hiroshima. Kennedy, seu colega de partido, começou a guerra do Vietnã. A política de terror dos republicanos dispensa maiores comentários.
A trama de Moore retrata um momento tenso da Guerra Fria. Estados Unidos e União Soviética estão cada vez mais próximos da terceira guerra mundial. Para evitar o apocalipse um plano está em andamento. Um susto para impedir o pior. O truque inclui a morte de milhões de pessoas. Mas o que são alguns milhões de vidas a menos quando se trata de salvar toda a população mundial, pergunta o idealizador de tudo.
Diante disso, o que restou dos Watchmen resolvem colaborar. Menos Rorschach. Com toda seu desprezo pelas pessoas, prefere os velhos métodos. Se a humanidade é podre, a única saída é afogá-la na própria podridão. Nada de jogos de ilusão. Um republicano legítimo.
O plano funciona. Mas, o sucesso é provisório. Logo tudo deve recomeçar. Daí, a grandeza da obra de Moore e Gibbons. Eles usam os quadrinhos, seus super-heróis e estórias fantásticas para denunciar a própria indústria de diversão. Mostrar como uma linguagem cheia de possibilidades transforma-se em mais um elemento de reprodução de uma lógica destruidora.
O mal, o crime, a crueldade parecem cada vez mais assustadores. Mas, não serão justiceiros, mascarados ou não, que vão eliminá-los. Ao contrário, é a crença nesse tipo de solução que os tornam cada vez mais presentes. O final do filme não é tão explícito em relação a isso. A mensagem perde força. Mas, se ajudar a redescobrir essa obra-prima em quadrinhos, valeu a intenção.
Adaptar Watchmen para as telas era um fracasso anunciado. O escritor Alan Moore e o desenhista Dave Gibbons exploraram possibilidades que só os quadrinhos permitem. A obra é dividida em doze partes. Cada uma tem um motivo dominante que se repete da primeira à ultima página. As capas, a disposição dos quadrinhos, estórias paralelas, elementos gráficos. Tudo contribui para criar um quebra-cabeças que se revela aos poucos. Características que muito dificilmente seriam traduzidas para a linguagem cinematográfica.
Mas, quem quiser saber mais sobre esse aspecto da obra, clique aqui. Vamos ao filme.
Os Watchmen (Vigilantes) são justiceiros mascarados que surgiram nos anos 1930. Na verdade, são um bando de pessoas fortes e ágeis com todos os problemas de gente normal. Desde alcoolismo até violências sexuais. E são conservadoras, também. Durante uma greve de policiais, por exemplo, os mascarados assumem a manutenção da ordem, incluindo repressão a uma passeata.
Mas, como não fazem parte do aparelho de Estado, também não contam com a confiança do poder institucional. Por isso, são colocados na ilegalidade. Todos menos o Dr. Manhatann, um cientista que por acidente tornou-se uma criatura azul e poderosa. Tanto que ganhou a Guerra do Vietnã para os Estados Unidos e, com isso, garantiu várias reeleições para Nixon.
Moore escreveu a obra em 1986. Reagan estava no poder. Os pesadelos que pareciam ter sido enterrados com o governo Nixon estavam de volta: conservadorismo, menos serviços públicos e impostos menores para os ricos, repressão aos movimentos populares, ameaça de guerra mundial e financiamento de guerrilhas de direita, incluindo a de Bin-Laden.
Já o filme de Snyder foi produzido durante mais uma edição do pesadelo americano: o governo Bush. Aquele que foi eleito dizendo que os Estados Unidos são os vigilantes do mundo. Na versão em quadrinhos uma pichação aparece nas paredes várias vezes. Ela pergunta: “Quem vigia os vigilantes?” Uma questão que deveria receber mais atenção na versão filmada.
Manhatann é quase um deus e se afasta cada vez mais das paixões humanas. Mas, não vacila na hora de matar por sua pátria. A cena em que o gigante azul pulveriza vietnamitas disparando raios de seus dedos é assustadora. Parece simbolizar uma ciência que se pretende neutra e superior, mas está a serviço de um poder imperial. Não à toa, Manhatann ganhou o nome do projeto que criou a bomba atômica.
Outra figura marcante é Rorschach. O sombrio personagem tem um forte código de moral. Não tem dúvidas sobre o que é certo e errado. Por isso, também não vacila na hora de quebrar alguns ossos e rachar cabeças. Acaba lutando pela justiça em nome dela mesma. Não em nome das pessoas a quem ela deveria servir. Um pouco como a extrema-direita americana. Não gosta de governo, menos ainda do povo.
Os dois parecem representar a classe dominante americana. Um e outro usam papéis de cores diferentes para embrulhar a mesma intolerância. O democrata Truman atacou Hiroshima. Kennedy, seu colega de partido, começou a guerra do Vietnã. A política de terror dos republicanos dispensa maiores comentários.
A trama de Moore retrata um momento tenso da Guerra Fria. Estados Unidos e União Soviética estão cada vez mais próximos da terceira guerra mundial. Para evitar o apocalipse um plano está em andamento. Um susto para impedir o pior. O truque inclui a morte de milhões de pessoas. Mas o que são alguns milhões de vidas a menos quando se trata de salvar toda a população mundial, pergunta o idealizador de tudo.
Diante disso, o que restou dos Watchmen resolvem colaborar. Menos Rorschach. Com toda seu desprezo pelas pessoas, prefere os velhos métodos. Se a humanidade é podre, a única saída é afogá-la na própria podridão. Nada de jogos de ilusão. Um republicano legítimo.
O plano funciona. Mas, o sucesso é provisório. Logo tudo deve recomeçar. Daí, a grandeza da obra de Moore e Gibbons. Eles usam os quadrinhos, seus super-heróis e estórias fantásticas para denunciar a própria indústria de diversão. Mostrar como uma linguagem cheia de possibilidades transforma-se em mais um elemento de reprodução de uma lógica destruidora.
O mal, o crime, a crueldade parecem cada vez mais assustadores. Mas, não serão justiceiros, mascarados ou não, que vão eliminá-los. Ao contrário, é a crença nesse tipo de solução que os tornam cada vez mais presentes. O final do filme não é tão explícito em relação a isso. A mensagem perde força. Mas, se ajudar a redescobrir essa obra-prima em quadrinhos, valeu a intenção.
5 de mar. de 2009
Quem quer ser selvagem
“Quem quer ser milionário” não ganhou o Oscar à toa. Foi feito para agradar o público formado pela indústria cinematográfica. Sem querer, também acabou mostrando como o capitalismo rasga uma sociedade.
O filme de David Boyle tem vários elementos diferentes, mas bem combinados. A curiosidade em torno da cultura indiana. Ritmo veloz, ótimos atores, música bem escolhida. Muita miséria, crueldade e um final feliz graças ao amor. Aquele sentimento que pode tudo na indústria cultural e quase nada na vida real.
Mas, alguns momentos da produção são reveladores. Mostram bem os estragos que faz o capitalismo em um país milenar. A favela em que foram filmadas muitas cenas do filme é Dharavi, a maior da Ásia. Seus moradores fazem parte dos 8 milhões de favelados de Mumbai. Metade da população da cidade vive em bairros desse tipo. O filme não fala nada disso, mas as imagens de miséria mostram o resultado de alguns séculos de desenvolvimento capitalista. Um progresso que quase sempre beneficia uma minoria e marginaliza o restante.
A obra de Boyle também não fala diretamente dos conflitos religiosos. No entanto, a mãe dos garotos Jamal e Salim é morta a pauladas por ser muçulmana. É nas favelas que moram trabalhadores que ganham pouco, não contam com serviços públicos e convivem com o crime organizado. Tudo isso explode através de intolerâncias diversas.
A competição capitalista é outro elemento desorganizador na sociedade indiana. Até o século 19, a estrutura social indiana era dividida em castas. Os membros de uma casta nasciam e morriam dentro dela. Não podiam se misturar. Até as profissões eram definidas pelo nascimento. Os ingleses chegaram para mudar tudo isso.
Com eles, veio o capitalismo e sua feroz competição de mercado. Algo que não combina com o sistema de castas. Sem disputa por empregos, por exemplo, fica mais difícil diminuir o valor dos salários. Ao mesmo tempo, não interessa à nova ordem acabar totalmente com as tradições. A discriminação por origem de casta tornou-se ilegal. Mas, é amplamente tolerada. Afinal, sempre serviu para dividir os dominados. Atualmente, ajuda o sistema de exploração econômica a funcionar em paz. O antigo encontra-se com o moderno e ambos mantêm a dominação da maioria pela minoria.
Em meio a tudo isso, Jamal e Salim procuram sair da miséria. Órfãos e abandonados, eles vivem de esmolas e pequenas trapaças. Mas, Salim quer subir na vida. Criado pelas ruas, sem família e com pouca instrução, toma o caminho do crime. A grande ambição de Jamal é reencontrar Latika, seu amor de infância. Enquanto isso, sobrevive trabalhando em uma central telefônica. Um ramo econômico enorme e em expansão no país. O grande trunfo dos profissionais indianos é sua pronúncia impecável do inglês. Desse modo, podem atender clientes dos Estados Unidos e Inglaterra sem denunciar sua condição de moradores de uma ex-colônia. É a continuidade da colonização através do idioma.
Outro traço forte mostrado pelo filme é a presença da grande mídia na vida dos indianos do século 21. O pequeno Jamal mergulha literalmente na merda para conseguir o autógrafo de um ídolo do cinema. Tanto sacrifício mostra o peso do cinema na vida dos indianos. A indústria cinematográfica do país é tão poderosa que recebe o nome de “Bollywood”. Uma fusão de Bombaim (antigo nome de Mumbai) com Hollywood. A ironia é que essa mesma indústria nada teve a ver com a produção de um filme sobre a Índia que faz sucesso e é premiado no mundo todo.
Mas, a TV também está presente em todas os cantos. Tanto é que Jamal resolve participar do programa que o torna milionário apenas para reencontrar seu amor de infância. Na trama romântica do filme, ganhar o prêmio é apenas um detalhe. Jamal só quer aparecer na TV para ser encontrado por sua amada. Mas, é exatamente esse desinteresse que faz o jovem avançar no jogo. Incomodado com isso, o apresentador do programa chega a entregar o jovem à polícia sob acusação de fraude, com direito a tortura.
No final, Salim interrompe sua escalada rumo aos altos postos do crime organizado. Em nome da felicidade do irmão abandona tudo. Deixa-se matar mergulhado no dinheiro que seu irmão despreza. Jamal não precisou apelar à selvageria para vencer. Escapou de forma limpa das armadilhas do apresentador do programa. Em sua santa inocência tornou-se milionário, ídolo nacional e foi viver feliz para sempre com sua amada Latika.
É o final feliz que Hollywood queria. Só muita fantasia para abafar as contradições. E a recompensa veio tão certa como o prêmio de Jamal. O Oscar de melhor filme colocou a Índia em festa e calou os poucos críticos do filme. Mas na vida real, para vencer é preciso render-se às leis da selva capitalista. Aceitar ser parte das engrenagens que tornam selvagem a vida de centenas de milhões de pessoas. Na Índia e em quase todo o planeta.
O filme de David Boyle tem vários elementos diferentes, mas bem combinados. A curiosidade em torno da cultura indiana. Ritmo veloz, ótimos atores, música bem escolhida. Muita miséria, crueldade e um final feliz graças ao amor. Aquele sentimento que pode tudo na indústria cultural e quase nada na vida real.
Mas, alguns momentos da produção são reveladores. Mostram bem os estragos que faz o capitalismo em um país milenar. A favela em que foram filmadas muitas cenas do filme é Dharavi, a maior da Ásia. Seus moradores fazem parte dos 8 milhões de favelados de Mumbai. Metade da população da cidade vive em bairros desse tipo. O filme não fala nada disso, mas as imagens de miséria mostram o resultado de alguns séculos de desenvolvimento capitalista. Um progresso que quase sempre beneficia uma minoria e marginaliza o restante.
A obra de Boyle também não fala diretamente dos conflitos religiosos. No entanto, a mãe dos garotos Jamal e Salim é morta a pauladas por ser muçulmana. É nas favelas que moram trabalhadores que ganham pouco, não contam com serviços públicos e convivem com o crime organizado. Tudo isso explode através de intolerâncias diversas.
A competição capitalista é outro elemento desorganizador na sociedade indiana. Até o século 19, a estrutura social indiana era dividida em castas. Os membros de uma casta nasciam e morriam dentro dela. Não podiam se misturar. Até as profissões eram definidas pelo nascimento. Os ingleses chegaram para mudar tudo isso.
Com eles, veio o capitalismo e sua feroz competição de mercado. Algo que não combina com o sistema de castas. Sem disputa por empregos, por exemplo, fica mais difícil diminuir o valor dos salários. Ao mesmo tempo, não interessa à nova ordem acabar totalmente com as tradições. A discriminação por origem de casta tornou-se ilegal. Mas, é amplamente tolerada. Afinal, sempre serviu para dividir os dominados. Atualmente, ajuda o sistema de exploração econômica a funcionar em paz. O antigo encontra-se com o moderno e ambos mantêm a dominação da maioria pela minoria.
Em meio a tudo isso, Jamal e Salim procuram sair da miséria. Órfãos e abandonados, eles vivem de esmolas e pequenas trapaças. Mas, Salim quer subir na vida. Criado pelas ruas, sem família e com pouca instrução, toma o caminho do crime. A grande ambição de Jamal é reencontrar Latika, seu amor de infância. Enquanto isso, sobrevive trabalhando em uma central telefônica. Um ramo econômico enorme e em expansão no país. O grande trunfo dos profissionais indianos é sua pronúncia impecável do inglês. Desse modo, podem atender clientes dos Estados Unidos e Inglaterra sem denunciar sua condição de moradores de uma ex-colônia. É a continuidade da colonização através do idioma.
Outro traço forte mostrado pelo filme é a presença da grande mídia na vida dos indianos do século 21. O pequeno Jamal mergulha literalmente na merda para conseguir o autógrafo de um ídolo do cinema. Tanto sacrifício mostra o peso do cinema na vida dos indianos. A indústria cinematográfica do país é tão poderosa que recebe o nome de “Bollywood”. Uma fusão de Bombaim (antigo nome de Mumbai) com Hollywood. A ironia é que essa mesma indústria nada teve a ver com a produção de um filme sobre a Índia que faz sucesso e é premiado no mundo todo.
Mas, a TV também está presente em todas os cantos. Tanto é que Jamal resolve participar do programa que o torna milionário apenas para reencontrar seu amor de infância. Na trama romântica do filme, ganhar o prêmio é apenas um detalhe. Jamal só quer aparecer na TV para ser encontrado por sua amada. Mas, é exatamente esse desinteresse que faz o jovem avançar no jogo. Incomodado com isso, o apresentador do programa chega a entregar o jovem à polícia sob acusação de fraude, com direito a tortura.
No final, Salim interrompe sua escalada rumo aos altos postos do crime organizado. Em nome da felicidade do irmão abandona tudo. Deixa-se matar mergulhado no dinheiro que seu irmão despreza. Jamal não precisou apelar à selvageria para vencer. Escapou de forma limpa das armadilhas do apresentador do programa. Em sua santa inocência tornou-se milionário, ídolo nacional e foi viver feliz para sempre com sua amada Latika.
É o final feliz que Hollywood queria. Só muita fantasia para abafar as contradições. E a recompensa veio tão certa como o prêmio de Jamal. O Oscar de melhor filme colocou a Índia em festa e calou os poucos críticos do filme. Mas na vida real, para vencer é preciso render-se às leis da selva capitalista. Aceitar ser parte das engrenagens que tornam selvagem a vida de centenas de milhões de pessoas. Na Índia e em quase todo o planeta.
20 de fev. de 2009
O nazismo, de farda e à paisana
Vários filmes denunciando o nazismo foram lançados nos últimos meses. Mostram pessoas comuns colaborando com o regime de Hitler. Também podem servir para mostrar que o fascismo não anda apenas vestido de farda.
“O menino do pijama listrado”, “Um homem bom”, “Operação Valquíria”, “O leitor”. Todos estes filmes lançados recentemente têm relação com a Alemanha nazista. Todos mostram os dramas de pessoas que de um jeito ou outro colaboraram com o regime de Hitler.
Um pai tenta manter sua família longe da crueldade do regime em relação aos judeus. Mas, vê seu próprio filho tornar-se vítima da máquina de morte para a qual trabalha. Um escritor tenta subir na vida fingindo concordar com os ideais nazistas. Acaba cúmplice da morte de seu melhor amigo. Oficiais do alto-comando alemão tramam o assassinato de Hitler para antecipar uma rendição menos vergonhosa frente aos aliados. Acabam fuzilados. No Pós-Guerra, um adolescente tem um belo caso amoroso com uma mulher mais velha. Depois de alguns anos, descobre que ela trabalhou em um campo-de-concentração, auxiliando na matança de centenas de pessoas.
Essas produções mostram uma aparente contradição. Pessoas honradas, amorosas, sensíveis, leais, bons cidadãos e pais de família colaboraram com um dos maiores exemplos de crueldade da história da humanidade. Como diz um personagem de “O leitor”, no campo de Auschwitz trabalhavam 8 mil pessoas. Somente 19 delas foram processadas. Afinal, condenar todas as outras implicaria condenar a grande maioria do próprio povo alemão.
Na verdade, honra, lealdade, amor familiar não são valores que estão acima das sujeiras do mundo. Ao contrário, podem estar a serviço do que há de mais conservador e autoritário. Para se manter no poder toda classe dominante reproduz e mantém antigos e novos preconceitos. Faz isso para manter acesos os ódios e intolerâncias entre os dominados. É o antigo truque de dividir para governar.
Os regimes nazistas e fascistas revelam esse tipo de mecanismo à luz do dia. Eles incentivam as piores taras sociais. Permitem que elas se espalhem entre amplos setores da população. Estimulam a ocorrência de ações violentas entre os próprios setores populares. Procuram desviar a revolta popular para longe do sistema de dominação e exploração da burguesia. Culpam conspiradores quase satânicos pelas misérias em que a maioria das pessoas vive sob o capitalismo. Principalmente, judeus, negros, homossexuais, ciganos, contestadores em geral.
Não é pouca a diferença entre um governo ditatorial e governos com liberdades políticas. Mas, os valores dominantes são praticamente os mesmos. Um cidadão pacato pode tratar cordialmente pessoas que despreza em um momento. Sob um governo de extrema direita, esse mesmo cidadão torna-se o feroz defensor da eliminação desses “seres inferiores”.
Além disso, aprendemos desde cedo a cumprir ordens. Se elas partem de governos democráticos ou de ditaduras é coisa que pode ficar confusa em determinadas épocas e lugares. E na confusão, somos treinados a escolher a obediência quase cega.
Estamos vivendo uma das maiores crises econômicas de todos os tempos. Muito desemprego, salários baixos, desesperança e revolta. Uma situação bastante favorável ao fascismo. É o ovo da cobra sendo chocado.
O problema é que a intolerância fascista não anda por aí fardada e usando bigodes ridículos. Pode assumir várias formas. Também não precisa aprovar leis contra pessoas que se “desviam do padrão”, como fizeram os nazistas em relação a judeus, comunistas e ciganos. Basta que consigam tornar suas perseguições e agressões aceitáveis para a maioria da sociedade.
Contra isso não adianta confiar só nas leis, nos governos e nas autoridades. Hitler e Mussolini tomaram o poder sem quebrar a lei. E o Estado já se mostrou preguiçoso e incompetente várias vezes quando se tratou de reprimir a extrema-direita.
Somente a resistência popular organizada e baseada na luta dos explorados pode matar essa serpente. Convencer as pessoas comuns a desobedecer aos senhores de sempre para defender a dignidade e a liberdade da vida humana. Impedir que milhares de pequenos ditadores sejam usados por alguns poucos e poderosos tiranos de farda.
“O menino do pijama listrado”, “Um homem bom”, “Operação Valquíria”, “O leitor”. Todos estes filmes lançados recentemente têm relação com a Alemanha nazista. Todos mostram os dramas de pessoas que de um jeito ou outro colaboraram com o regime de Hitler.
Um pai tenta manter sua família longe da crueldade do regime em relação aos judeus. Mas, vê seu próprio filho tornar-se vítima da máquina de morte para a qual trabalha. Um escritor tenta subir na vida fingindo concordar com os ideais nazistas. Acaba cúmplice da morte de seu melhor amigo. Oficiais do alto-comando alemão tramam o assassinato de Hitler para antecipar uma rendição menos vergonhosa frente aos aliados. Acabam fuzilados. No Pós-Guerra, um adolescente tem um belo caso amoroso com uma mulher mais velha. Depois de alguns anos, descobre que ela trabalhou em um campo-de-concentração, auxiliando na matança de centenas de pessoas.
Essas produções mostram uma aparente contradição. Pessoas honradas, amorosas, sensíveis, leais, bons cidadãos e pais de família colaboraram com um dos maiores exemplos de crueldade da história da humanidade. Como diz um personagem de “O leitor”, no campo de Auschwitz trabalhavam 8 mil pessoas. Somente 19 delas foram processadas. Afinal, condenar todas as outras implicaria condenar a grande maioria do próprio povo alemão.
Na verdade, honra, lealdade, amor familiar não são valores que estão acima das sujeiras do mundo. Ao contrário, podem estar a serviço do que há de mais conservador e autoritário. Para se manter no poder toda classe dominante reproduz e mantém antigos e novos preconceitos. Faz isso para manter acesos os ódios e intolerâncias entre os dominados. É o antigo truque de dividir para governar.
Os regimes nazistas e fascistas revelam esse tipo de mecanismo à luz do dia. Eles incentivam as piores taras sociais. Permitem que elas se espalhem entre amplos setores da população. Estimulam a ocorrência de ações violentas entre os próprios setores populares. Procuram desviar a revolta popular para longe do sistema de dominação e exploração da burguesia. Culpam conspiradores quase satânicos pelas misérias em que a maioria das pessoas vive sob o capitalismo. Principalmente, judeus, negros, homossexuais, ciganos, contestadores em geral.
Não é pouca a diferença entre um governo ditatorial e governos com liberdades políticas. Mas, os valores dominantes são praticamente os mesmos. Um cidadão pacato pode tratar cordialmente pessoas que despreza em um momento. Sob um governo de extrema direita, esse mesmo cidadão torna-se o feroz defensor da eliminação desses “seres inferiores”.
Além disso, aprendemos desde cedo a cumprir ordens. Se elas partem de governos democráticos ou de ditaduras é coisa que pode ficar confusa em determinadas épocas e lugares. E na confusão, somos treinados a escolher a obediência quase cega.
Estamos vivendo uma das maiores crises econômicas de todos os tempos. Muito desemprego, salários baixos, desesperança e revolta. Uma situação bastante favorável ao fascismo. É o ovo da cobra sendo chocado.
O problema é que a intolerância fascista não anda por aí fardada e usando bigodes ridículos. Pode assumir várias formas. Também não precisa aprovar leis contra pessoas que se “desviam do padrão”, como fizeram os nazistas em relação a judeus, comunistas e ciganos. Basta que consigam tornar suas perseguições e agressões aceitáveis para a maioria da sociedade.
Contra isso não adianta confiar só nas leis, nos governos e nas autoridades. Hitler e Mussolini tomaram o poder sem quebrar a lei. E o Estado já se mostrou preguiçoso e incompetente várias vezes quando se tratou de reprimir a extrema-direita.
Somente a resistência popular organizada e baseada na luta dos explorados pode matar essa serpente. Convencer as pessoas comuns a desobedecer aos senhores de sempre para defender a dignidade e a liberdade da vida humana. Impedir que milhares de pequenos ditadores sejam usados por alguns poucos e poderosos tiranos de farda.
23 de jan. de 2009
Se eu fosse de classe média
A comédia “Se Eu Fosse Você 2” é um sucesso. Assim como faz sucesso a idéia de conseguir sair da pobreza mesmo ficando longe da riqueza. Enquanto isso, o andar de cima fica tranqüilo.
Nas três primeiras semanas de exibição a comédia "Se Eu Fosse Você 2" já havia ultrapassado 1,5 milhão de espectadores. À frente de filmes nacionais de sucesso como "Tropa de Elite" e "Meu Nome Não é Johnny".
Boa parte desse sucesso se deve ao talento dos dois atores principais. A idéia de fazer um casal trocar de corpos é muito bem aproveitada por Tony Ramos e Glória Pires. A direção de Daniel Filho também é competente.
Mas ajuda muito o tipo de vida levado pelo casal principal da estória. Helena e Cláudio são de classe média. De classe média, mesmo. Com direito a um belo casarão, piano de cauda na sala e piscina. É daqueles que curam depressões e tristezas consumindo num shopping luxuoso.
Os apartamentos são decorados segundo “o melhor bom gosto” urbano brasileiro. As cenas de rua têm as praias do Rio como cenário. Ninguém usa a mesma roupa mais de uma vez. O casamento da filha do casal custou algumas centenas de milhares de reais.
Na verdade, nada disso fica muito distante da realidade mostrada pelas novelas da Globo. A diferença é que o único personagem pobre é a empregada (Maria Gladys). Sempre a postos para fazer tudo o que os patrões querem.
É antiga a tese de que a chamada “classe média” serve como elemento amortecedor entre a pobreza e a riqueza. Queiram ou não seus realizadores, o filme defende aquilo que as classes dominantes acham que deve ser o ideal de vida para todos. É impossível que a maioria venha a se tornar parte do clube dos milionários. Porém, não é tão difícil que muitos cheguem à metade do caminho. Do ponto de vista ideológico, isso sempre acalma os mais pobres e faz com que os nem tão pobres tentem se aproximar dos mais ricos. Estes últimos agradecem. Enquanto uns e outros brigam para subir, tudo fica bem no andar de cima.
O interessante é que ultimamente fala-se muito sobre o crescimento da classe média brasileira. Em setembro passado, por exemplo, um estudo do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) dizia que de 2001 para 2007, cerca de 10 milhões de pessoas teriam saltado “da camada de baixa renda para a de renda média”.
O detalhe é que essa “subida” significou superar a faixa de renda familiar que fica entre R$ 545,66 e R$ 1.350,92. E o problema é que passar a ganhar pouco mais que R$ 1.350,00 não permite a ninguém ter um estilo de vida parecido com o de Helena e Cláudio. Por outro lado, se não é fácil ser de classe média, hoje em dia ficou mais fácil recorrer à imitação. Afinal, o que não faltam são vendedores ambulantes oferecendo bolsas, óculos escuros, relógios, roupas em geral, de marcas famosas. Todos falsos, mas a preços bem melhores que as altas quantias pagas pelos originais.
Ou seja, longe de ser definida pela renda, a idéia de pertencer à classe média tem a ver com muitas outras coisas. Os hábitos de consumo, a cor da pele, o vocabulário. E principalmente, as idéias. Diferente do que pode parecer, a sociedade ideal não seria composta só de pessoas de classe média.
É muito bom ter uma casa própria, com piscina, poder jantar fora todas as semanas e viajar todos os anos. Melhor do que morar de aluguel e ter um orçamento que não cabe no salário. Mas, basta olhar para as neuroses que Cláudio e Helena deixam transparecer. Cláudio é machista, egoísta e autoritário. Helena é consumista, fútil e vive às custas do marido. Só se agüentam porque de vez em quando um vai passear com o corpo do outro. Pertencem ao pedaço do meio de uma sociedade que é inteiramente doente.
Como no filme, não adianta trocar de corpo se a cabeça continua a mesma. Pouco muda se permanecemos escravos do horizonte ideológico que a classe dominante nos impõe.
Nas três primeiras semanas de exibição a comédia "Se Eu Fosse Você 2" já havia ultrapassado 1,5 milhão de espectadores. À frente de filmes nacionais de sucesso como "Tropa de Elite" e "Meu Nome Não é Johnny".
Boa parte desse sucesso se deve ao talento dos dois atores principais. A idéia de fazer um casal trocar de corpos é muito bem aproveitada por Tony Ramos e Glória Pires. A direção de Daniel Filho também é competente.
Mas ajuda muito o tipo de vida levado pelo casal principal da estória. Helena e Cláudio são de classe média. De classe média, mesmo. Com direito a um belo casarão, piano de cauda na sala e piscina. É daqueles que curam depressões e tristezas consumindo num shopping luxuoso.
Os apartamentos são decorados segundo “o melhor bom gosto” urbano brasileiro. As cenas de rua têm as praias do Rio como cenário. Ninguém usa a mesma roupa mais de uma vez. O casamento da filha do casal custou algumas centenas de milhares de reais.
Na verdade, nada disso fica muito distante da realidade mostrada pelas novelas da Globo. A diferença é que o único personagem pobre é a empregada (Maria Gladys). Sempre a postos para fazer tudo o que os patrões querem.
É antiga a tese de que a chamada “classe média” serve como elemento amortecedor entre a pobreza e a riqueza. Queiram ou não seus realizadores, o filme defende aquilo que as classes dominantes acham que deve ser o ideal de vida para todos. É impossível que a maioria venha a se tornar parte do clube dos milionários. Porém, não é tão difícil que muitos cheguem à metade do caminho. Do ponto de vista ideológico, isso sempre acalma os mais pobres e faz com que os nem tão pobres tentem se aproximar dos mais ricos. Estes últimos agradecem. Enquanto uns e outros brigam para subir, tudo fica bem no andar de cima.
O interessante é que ultimamente fala-se muito sobre o crescimento da classe média brasileira. Em setembro passado, por exemplo, um estudo do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) dizia que de 2001 para 2007, cerca de 10 milhões de pessoas teriam saltado “da camada de baixa renda para a de renda média”.
O detalhe é que essa “subida” significou superar a faixa de renda familiar que fica entre R$ 545,66 e R$ 1.350,92. E o problema é que passar a ganhar pouco mais que R$ 1.350,00 não permite a ninguém ter um estilo de vida parecido com o de Helena e Cláudio. Por outro lado, se não é fácil ser de classe média, hoje em dia ficou mais fácil recorrer à imitação. Afinal, o que não faltam são vendedores ambulantes oferecendo bolsas, óculos escuros, relógios, roupas em geral, de marcas famosas. Todos falsos, mas a preços bem melhores que as altas quantias pagas pelos originais.
Ou seja, longe de ser definida pela renda, a idéia de pertencer à classe média tem a ver com muitas outras coisas. Os hábitos de consumo, a cor da pele, o vocabulário. E principalmente, as idéias. Diferente do que pode parecer, a sociedade ideal não seria composta só de pessoas de classe média.
É muito bom ter uma casa própria, com piscina, poder jantar fora todas as semanas e viajar todos os anos. Melhor do que morar de aluguel e ter um orçamento que não cabe no salário. Mas, basta olhar para as neuroses que Cláudio e Helena deixam transparecer. Cláudio é machista, egoísta e autoritário. Helena é consumista, fútil e vive às custas do marido. Só se agüentam porque de vez em quando um vai passear com o corpo do outro. Pertencem ao pedaço do meio de uma sociedade que é inteiramente doente.
Como no filme, não adianta trocar de corpo se a cabeça continua a mesma. Pouco muda se permanecemos escravos do horizonte ideológico que a classe dominante nos impõe.
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